"Quando isto acabar, podíamos ir jantar, boa?!"
- ... E lá estava a rapariga, cheia de sacos e mais sacos, à procura da chave para abrir a porta do prédio. Caramba, somos vizinhos, já nos cumprimentámos uma série de vezes no elevador, já concordámos e discordámos em Assembleias de Condomínio, sempre fomos cordiais, ia agora deixar a moça às aranhas? Claro que ajudei. Alguma coisa de anormal nisso?
- Até agora, nada. Mas o problema é esse?
- Quer dizer, não propriamente. Carreguei um monte de sacos para o elevador e ainda sobraram uns três ou quatro para ela, mais a chave de casa e a mala e o raio que a parta. Prontifiquei-me para lhe deixar a carga em casa, naturalmente. A tipa abriu a porta e disse: ponha tudo na cozinha, por favor. Ai obrigada, obrigada, desculpe e desculpe, que incómodo e renheunheunheu, enfim, o típico. E olha que aquilo pesava, chiça. Haviam de ser toneladas de comida para a besta gorda do marido, cabrão de merda. Bem, até transpirei.
- Estou a ficar ensonado. Saltas para a parte gira ou vou limpar as mesas?
- Não sejas parvo Silva, isto é sério! Ora, como manda a boa educação, a tipa pergunta se não quero um café, uma cerveja, um copo de água. E eu, estúpido!, aceitei o café...
- Mas não estavas a transpirar do esforço?! Café quente?!
- Também aceitei a água, não me interrompas! Lá ficámos na cozinha, a trocar dois dedos de conversa enquanto ela preparava o café e ia arrumando as compras nos armários.
- Pois, falaram acerca de elevadores e da limpeza do átrio e assim, aposto.
- És mesmo estúpido, Silva! Não se pode desabafar contigo, foda-se pá! Para que saibas, falámos de coisas completamente inocentes. Livros, viagens, preços das mercearias. Bom, o problema foi quando ela se lembrou de guardar os enlatados na despensa. Tu nem acreditas homem! Nunca tinha visto uma coisa assim. Uma infestação de pulgas, mas aos milhões. A parede branca estava preta!
- Puxa, que coisa...
- Mesmo! A mulher deu um grito, eu aproximei-me para ver o que era e pumbas, atacados pelos bichos como se fossem leões e nós indefesos bambis. Tu sabes lá o que é sentir milhões de picadas ao mesmo tempo, pelo corpo todo. Desatei a contorcer-me e a bater em mim próprio, desesperado.
- E ela?
- Queria lá saber da gaja! Também devia estar a fazer o mesmo, acho. Pelo resultado, estava. Só sei que no meio do desespero comecei a desapertar a camisa e acabei por fazer o mesmo ás calças e coçava-me ferozmente. Tenho marcas no peito e nas coxas que mostram a força com que me arranhava!
- Pois, cálculo...
- Com isto tudo, ninguém se tinha lembrado de fechar a porta da rua. Tínhamos os dois acabado de nos encharcar com água, da pia da cozinha, quando ouvimos alguém gritar "COMO??!! A SÉRIO??!!".
- O marido, está claro.
- Pois, o marido. Que situação pá! Eu e a mulher em roupa interior, molhados nós e o chão e a porta da despensa fechada, a esconder a causa de tudo, e o café entornado na mesa, as compras espalhadas por onde calhasse.
- Cristo! De facto... E disseste o quê?
- A verdade, óbvio! Disse-lhe: Trata-se de uma desagradável coincidência. Tudo isto é bastante inocente, como perceberá quando lhe explicarmos...