Livre Arbítrio, credo. - Abana a Grande Cabeça, um tanto incrédulo, um tanto desiludido. - Sinto uma ânsia cada dia maior de corrigir este pequeno erro.
- Passou ainda muito pouco tempo, Senhor. Somos uma espécie muito jovem, é natural que sejamos parvos. - Tenta amenizar, o factor corporativo a falar mais alto.
- Talvez, talvez. Não deixo de sentir que correria melhor se tenho apostado nas centopeias. - Cofia as barbas.
- Argh, Senhor, tão feias, cheias de patas. Olhe a experiência em Znodar... - Arrisca.
- Que tem? Já viste as gavetas das meias e cuecas dos Znodarianos? Im-pe-cá-beis, pá!
- Vai-se a ver é porque não há assim muitos Znodarianos... - Entre dentes.
- Kié? Outra vez isso de ficarem sem a cabeça à primeira queca? Um detalhe, Pedro, um detalhe. Para além de que Louva-a-Deus é um nome muito feliz para uma espécie. Eu acho. E olha, não sei, mas cá pra mim, os teus amiguinhos lá de baixo não andam longe de pensar que isso é boa ideia. Equidade a sério é ser a fêmea montada à canzana, para nem ter que ver o macho, e quando estiver assegurada a continuidade da espécie, zás, arranca-se-lhe a cabeça à dentada. Aposto que ainda aprovavam uns subsídios para isto. - Esboça um sorriso.
- É a juventude, Senhor, verá. E talvez pudéssemos usar outros termos. - Olha em volta, preocupado. - Não é lá muito boa altura para dizer macho e fêmea, é um bocado confuso. Coisas de jovens, já se vê.
- Mas foda-se, oh Pedro, em tão pouco milénio já fizeram merda de caraças, não? Não há paciência. E depois é esta soberba que não se entende. Consideram-se tanto e tão e tudo, que lhes parece sempre adequado perderem tempo com as merdas mais inimagináveis. Vou é acabar com as subtilezas. Ai agora um maluco no poder a ver se entendem, ai agora umas catástrofes naturais a ver se acordam, e nada. Nadica! Uma praga é que vai ser. Manda-se os de Znodar invadir aquela trampa e comer-lhes as cabeças a todos. A eles e a elas e aos entretantos, a ver se não acham logo estupendo serem os géneros diferentes.
- É isso que o irrita, Senhor? A sério? - Indignado. - A fome, a guerra, as criancinhas, a Maria Leal a cantar, enfim, toda uma cornucópia de desgraças a pedirem a atenção Divina e é com isso que se preocupa?
- Pois claro! Eu tenho um Universo para manter em equilíbrio. Lá tenho tempo para pormenores? Agora, o género é um factor crítico da Criação. E o Criador sou Eu!
- É um pedacinho culpa Sua, havemos de convir. - A muito medo. - Com essa coisa de “à imagem e semelhança” e da Santíssima Trindade, que é 3 em 1, melhor que o champô das estrelas de cinema. É sempre Ele, o Senhor? Se sim, como é que Ela é “à imagem e semelhança”? E a mulher do Zé? Pelos vistos a Mãe não era da Trindade. Não parece lá muito equitativo em termos de género, não...
- Muito engraçadinho, o senhor Pedro. É pena o cancro terminal que o manda da Vida Eterna para melhor, não é?
- Hã? Isso pode-se? - Em pânico.
- Pergunta parva, hein? Mas não tenhas medo, com a dificuldade em arranjar criadagem em condições nesta Eternidade, desculpo-te mais esta, oh pescador. Pá, à imagem e semelhança é uma metáfora. Também é sabido que Sou todas as coisas e não vês malta a defender o direito de se sentir uma bolota, apesar de ter sido batizado Maria, pois não? E não me apetece agora falar disso do Espírito Santo ser Pai de Si Próprio. Foram tempos complicados... - Pensativo. - Caramba, não me rala que se engalfinhem por qualquer disparate e que se ponham a discutir pintelhos até à exaustão, mas pilas são pilas e con... - Interrompido:
- Senhor!! - De olhos muito abertos.
- Ora Pedro, queres que lhe chame o quê? Senaita? Rata? Pipi? Isso é que são lindas palavras, é? Opá, fartinho até aos colh... - Interrompido:
- Senhor!!
- Enfim, como se fazer a luta pela igualdade fosse igual a abolir toda a diferença. Como se o primado da tolerância pudesse ter raiz na intolerância ao contraditório. Cansado, eu estou.
- Pois, está claro que eu sou um mero Santo, não posso compreender o Grande Plano Cósmico na sua infinita totalidade, mas ainda assim, que não sei, pensei que o preocupava mais a Eutanásia do que quem é que é contra rapar as sovaqueiras e outras pilosidades quejandas.
- Qual Tânia? Não conheço nenhuma Tânia, era concerteza alguém muito parecido comigo. Nunca lá estive.
- Não, Senhor, não é Tânia nenhuma. É aquela coisa do suicídio assistido, da morte programada.
- Naturalmente, Pedro. É sempre programada. É nascer que já se fica logo com ela agendada, qual é a questão?
- Ora, Senhor, o direito sobre a Vida e a Morte é só Seu, não podem agora os vivos, ou os mortos, para o que importa, virem decidir se... - Detém-se perante a grande manápula levantada.
- Quero lá saber! Morrerão, assim tenham nascido. É esse o Meu Desígnio, nada mais.
- Mas...mas... a Doutrina... é sabido que é Pecado Mortal porem-se as pessoas...
- Poupa-me pá, não me metas nessas picuinhices. Aiai que isso é Eu que mando e ninguém mais mete a pata, vai já tudo para o Inferno, sem passar pelo Purgatório e receber dois contos, se não for Eu a mandar. Vais quinar anyway, mas só quando eu disser, pumbas bem feito. Soa um pedacinho a falta de confiança, não? Parece a Divindade que tem que ser um ditadorzeco no trabalho, para compensar a porrada que leva em casa e isso tudo. Eu Sou. Ponto. É quanto basta. E estou muito abatido de vos aturar, mais aos vossos disparates. - Deixa cair a cabeça entre as mãos.
- Pronto, pronto. - Passa-Lhe um braço pelas costas. - Também precisa de se distrair um bocado. Olhe, aproveitemos o feriado e vamos fazer qualquer coisa diferente. Sei lá, criar uma nova espécie ou assim.
- Feriado? É feriado de quê?
- Corpo de Deus, Senhor.
- Hã? Mas se Sou incorpóreo! Como assim o Meu Corpo? Era o que faltava! Ainda me meto numa série de chatices por ter as pernas depiladas à conta de andar de bicicleta ou assim. Nem pensar, quais Corpo de Mim quais carapuça!
- É o que diz aqui, Senhor, eu não tenho a culpa.
- Gafanhotos. São amorosos, os gafanhotos, mais aos seus saltinhos. Upa, upa, poing, poing. - Salta á roda do outro. - Não achas, Pedro?
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