segunda-feira, 13 de abril de 2020

CLSVO II

Se fosse um jogo de adivinhar, tiraria, ao menos, algum proveito em diversão. É muito divertido jogar, mesmo quando se joga sozinho. Não é assunto para agora, mas é inegável que ainda que jogue em circuito fechado este jogo de um, tomo partido e escolho um lado. E no fim ganho Eu contra Mim. Ou perco, depende do estado de espírito.

Adiante, não é consciente, acho eu, esta coisa de saber o propósito, a intenção, o que se esconde por detrás do que dizem e até do que não dizem. E é absolutamente frustrante tentar explicar-lhes que percebo porque ficam furiosos, como miúdos apanhados na sua mentira, na incongruência do seu argumento adolescente ou na armadilha da falsa piedade, da bondade a metro, do desapego material de barriga cheia ou do conhecimento profundo que sai como verniz, basta esgravatar um pedacinho.

As coisas vão de mal a pior porque não coloco sequer a possibilidade de estar redondamente enganado. Imaginemos por um minuto - vá, hipótese académica, cala-te, deixa acabar o raciocínio - que falho completamente. Não sabes o que está a pessoa a pensar sob aquilo que expressa, muito menos como se sente em relação a ti ou aos outros. Façamos de conta que as fraquezas expostas não buscam apenas colo, que existem e que há quem não se dê ao trabalho de as esconder e busque honestamente alivio nessa partilha. É claro que não estamos no território da intimidade muito intima, dos amantes, dos irmãos, dos filhos, dos amigos muito próximos
                                                                                                        (cinco, numa vida toda? admitimos o número para a nossa tese? ou deixamos passar como irrelevante, por conveniência do momento e porque, se foda, é a minha voz a conversar comigo e diz o que bem me apetecer?)
                                                                                                                                   é mais no âmbito do jantar com gente que mal se conhece, da rede social, das plataformas quotidianas, o elevador que seja, em que buscam reconhecimento, ainda que por um estropio da Alma, do conhecimento ou do corpo.

Empatiza, anda lá, deixa-te de ser cagão, junta-te. Buscamos, pronto, buscamos, satisfeito? Não me lixes, não é como se escondesse que me agrada, pois não? Mas desta maneira? Em bastando juntarem o molho instantâneo do momento e assim é o seu gosto ? Argh, tu por favor avisa-me se me apanhares nisso. De resto, nenhum receio em reconhecer perante ti, mim, que é bom que me apapariquem. Aliás, porque raio estaria a perder o meu tempo com aquilo do suposto romance se não fosse por esse motivo? Ah a urgência da criatividade, o apelo da veia do escritor. Deixa-me rir, essa história não é tua. Mas qual apelo, amigo? Esforço, muito esforço para vencer a preguiça. Tanta coisa que me apetecia mais - e, por inerência, te apetecia mais também - do que horas à volta de um provável chorrilho de disparates que nem sabemos lá muito bem para onde se dirige.

Oh, está bem, deixa lá, não era este o tema. Se te faz feliz que confesse, que me confesse, também não é por aí que nos zangamos. Dá gozo. É como um 2 Cavalos, demora um bom bocado a arrancar, mas quando entra naquela velocidade de cruzeiro a vapor, desliza suavemente. Para além de que ajuda a ocupar os dias. Pronto, serve para ocupar o tempo que não é de noite e se trabalha, se é que podemos chamar trabalho aquilo.

De todo o modo, o que dizia é que não se trata de um jogo de adivinhar. Espera, tenho que atender. Temos. Sim, mesmo com pouca vontade. E podes tirar esse sorriso parvo, uma vez que nem cara tens. De plástico somos todos. Se queres brincar de novo à honestidade brutal, vamos a isso. Avançamos mais uma vez, correu tão bem de todas as outras, não foi? Não, não, agora fazemos isto como deve de ser e não me voltas a chamar cínico. A nós.

Olá, desculpa mas agora não me apetece falar contigo. Até porque me parece evidente que me ligas a esta hora por mero hábito. Que temos para dizer que seja diferente de ontem? Não te incomodes a responder, eu sei que nada. E de momento não me consigo obrigar a esta conversa de circunstância, ainda para mais a ter que fingir ser doce, por inerência da relação que nos atribuímos. O que eu mais queria era que tu simplesmente reconhecesses este facto, sem tretas, e não levasses a mal. Manda-me um sms a dizer que queres foder e a combinar horas. Sabes o meu horário, olá se sabes, não pode ser tão complicado assim programares o teu dia neste sentido. O meu está definido e haverá sempre esse tempo para nos enfiarmos na cama. Depois podemos ficar em silêncio até eu ter que sair para o trabalho. Porque raio havemos de nos exigir embrulhos para isto? Que necessidade de acrescentar coisas, momentos, ligações, correntes, para lhe darmos uma forma com menos arestas? Isto é algum ovo de Páscoa? Gostamos de nos meter nas cuecas um do outro, talvez porque não tenhamos paciência para procurar diferente. Pode ser só assim?

Vês? É a culpa que desce, esticando os seus longos e escanzelados braços, como uma sombra na parede, e nos envolve a todo Eu. Raios me partam se sei se é pelos outros ou por nós. Se bem te lembras, nunca descartámos completamente a possibilidade de ser somente a nossa incapacidade de lidar com o facto de não nos terem na melhor conta possível. É mesmo muito provável que nos limitemos a não querer sequer pensar. Fica assim: é para não magoar alguém que nos deixamos embrenhar em tantos faz de conta, até tudo ser apenas uma consequência e já não ser preciso preocupares-te. Ah a minha bela vida, à qual te condeno porque és Eu.

Vem, deixa que nos abrace, que nos afague o alto da cabeça, apertando-nos com força o peito, de medo e de raiva. Sentes como é familiar esta culpa que nos explicaram com tanto detalhe que já não a distinguimos de nós? De Mim. O telefone.

- Olá, amor. Não, não, quando atendi já tinhas desligado. Estava a acabar de fazer a barba. Sim, são quase horas de sair. E tu, já jantaste?

...

Honestamente, esta vida de turnos convém-me, do ponto de vista da ambição: um ordenado pequeno, um apartamento a condizer, um carro muito velho, um ou dois amigos muito longe, a família dentro do telefone, mesmo os mortos, uma namorada estranhamente bonita e os horários desencontrados das pessoas. Até gostamos de pessoas, sobretudo lá nas suas lufa-lufas. Por outro lado, é muito inconveniente quanto às desculpas: tenho tempo para o livro, não há vizinhos barulhentos, nem dramas de faca e alguidar com mulher e filhos e o Diabo a quatro.

Em resumo, deveria ser não só mais feliz, como também mais bem sucedido. Está claro que estamos aqui a adotar os critérios de avaliação mais populares. Digamos que estugar agora o passo,  compensando os 2 minutos que não deveríamos ter perdido a fumar um cigarro à porta do café, para conseguir apanhar o comboio, não é o mesmo que inspirar fundo antes de entrar numa reunião muito importante. Mas caramba, aposto que consigo apanhar o suburbano e não tenho a certeza se o senhor doutor não acaba no olho da rua. Corra-lhe mal a apresentação e quero-me rir. Upa, mesmo a tempo, já pode sair da linha quatro. Incha.

Calmamente, o mundo regressará ao seu tom cinza. Que é como quem diz pó. Regressará, mal se escorra o Sábado.
             


sábado, 4 de abril de 2020

CLSVO - I .1


...

Se fossemos mais do que meros observadores passivos, imaginemos antropólogos ou outro qualquer logista, teríamos tido a sorte de apanhar o CLSVO no seu melhor dia. Sabemos que sétimo é o filho clarividente, a onda final, sete os escorpiões de Isis, as plêiades - bem boas, por sinal - sétimo o dia em que Ulisses deu com Calypso e em que o Senhor descansou.

Pelo contrário, perante os nossos impotentes olhos a vida borbulha. Tomemos a vista de um hóspede num apartamento mais elevado do hotel em frente. A varanda acima do muro do CLSVO, o cigarro a queimar lentamente enquanto o café arrefece. Ah os dias de chinelo de dedo, um calção qualquer e cotão no umbigo. Mais cedo do que o resto dos comparsas deste veraneio, aproveitando dois ou três momentos de si próprio, sem ter que gargalhar ou emendar ou instruir ou puta que pariu mais os papéis que lhe estão atribuídos, por Graça de um Deus. Nesta solidão, pode sentir sem culpa que lhe comicham os tomates, soltos na cueca de rede embutida nos calções. Pode coçá-los, essa é que é essa, sem se preocupar com mais nada senão o alivio. Deixar o pensamento assim, boçal, vazio, bestial, e os olhos, elétricos, a varrerem o território. A mente canta-lhe: up here in space, i'm looking down on you. My lasers trace everything you do.

Entra-se por uma passagem estreita, espremida entre a parede do Restaurante e um muro sem serventia. À esquerda, a Ilha dos Gelados, com o seu metro quadrado de relva amarela, onde se apinham os velhos de lenço na cabeça e banquinhos articulados de assentos às riscas, à sombra de uma palmeira antiga. Por detrás dela, a loja ínfima das guloseimas e pedaços de gelo com muito corante. A Meca dos bandos de pardais, quais putos à solta. Ou talvez seja ao contrário, por vezes falha-me o Ary.

Para a direita o País das Escadas, mesmo em frente às grandes portas de caixilharia de alumínio da sala de refeições, eternamente vazia. As escadas, seis degraus corridos em três metros de comprido, são a terra dos escorraçados. Das famílias que vieram atrasadas ao chamamento da espreguiçadeira, dos banhistas arreliados com os seus descendentes, dos descendentes fugidos dos seus arreliados progenitores, dos bandidos que entraram sem cartão, aproveitando um momento de distração dos zelosos funcionários, e dos nómadas. Aqueles que vêm logo antes de almoço, com sacos de plástico cheios de pão e geleiras com bolas de queijo e cervejas mini. E comem às escondidas, benzendo-se em pecado, cabeça ao alto em busca das forças militares da Esplanada, e a Alma, perdida para sempre, a repetir-lhes em letra de forma: "Não é permitido o consumo de bebidas ou comidas ou outros quaisquer mantimentos do corpo, senão os adquiridos no nosso Templo, ámen". Dos que trazem sandes de chouriço para os petizes e lhas dão dissimuladas entre um mergulho e uma chapada e os mandam ir comer para longe. O País das Escadas é um campo de refugiados abastados, uma Alcatraz de prisioneiros pouco perigosos, paredes meias com a Esplanada, Zona 1.

É logo outra vida, outro planeta. O colorido amarelo dos chapéus de Sol chá gelado, a contrastar com o vermelho desbotado das mesas e cadeiras de cevada e lúpulo. Ali postadas em pleno cimento, vanguarda das suas irmãs finas, em tábua de madeira, que se abrigam no alpendre elevado do Restaurante. Se nas primeiras é o bulício dos salpicos, a revoada de toalhas molhadas, as banhas a cobrirem as cuecas dos biquínis nas posições sentadas, o tilintar das garrafas de cerveja; mais acima é o reino do páreo, do chinelo de piscina com pêlo farfalhudo, dos óculos no topo da cabeça, cabelo amarrado em rabo de cavalo e o som suave do gelo a rodar nos copos de gin. Só as banhas permanecem, mais discretas, sob o olhar invejoso dos escadistas que se atrevem a deambular pelo CLSVO.

A fronteira é delimitada por mais caixilharia de alumínio e vidro simples, atrás do qual se ofusca o self-service dos gringos com pensão completa e as mesas interiores para hambúrgueres, cachorros e pregos em prato, bitoques se vos for mais conveniente que estejamos a Sul. Da entrada até este exato local, o Restaurante está nas costas de toda a Vida. Escondido pelos seus vidros, mas omnipresente no quotidiano de todos.

Digamos que vimos subindo em intensidade e poderíamos culminar aqui, em Bar. Os gritos e a azáfama de um bazar, sobre o fundo quaternário - tlim, zuishh, troc, zuishh - da registadora. Na sua simplicidade maquinal, é o Santo deste Altar. Ali, de frente para todos, ainda que seja as costas que lhe vejam, Senhora de todo o espaço, Dona de toda a atenção, Meca, Belém e Lumbini, ponto de confluência ecuménica de todos os homens. Como este que pinga sobre o balcão das imperiais, sejam finos se esta geografia for Norte, sem ponta de dinheiro que se veja, mas sorriso rasgado e cumprimento cúmplice ao pessoal encarregado, pois claro que passa cá a pagar ao final do dia, nem se fala mais nisso. E sai em passo semi-dançante, ginga tropicália, pelo meio das espreguiçadeiras, em gincana, copo de vidro - hã? como assim, de vidro? o plástico quando nasce não é para todos? - elevado, evitando os guarda-sóis baixados pela hora do dia. Um velho da Ilha dos Gelados foi capaz de jurar, a meio de uma partida, que já o tinha visto numa varanda do hotel e no balcão da cerveja, ao mesmo tempo, ubíquo. Nunca alguém se tinha lembrado de uma peta tão boa para desviar a atenção de tamanha derrota no belga, ainda que o velho, ele mesmo, nunca a tenha admitido. À patranha.

Com a vossa licença,

                                  (na maior honestidade, trata-se de uma figura de estilo. podeis bem não estar dispostos a conceder-me licença alguma que não fará diferença. no entanto, e talvez para tranquilidade do espírito apenas, sinto-me compelido a dizer-vos que seria mesmo justo que esperasse pelo vosso consentimento. assim em jeito de retribuição pelo tempo que dispensais a este meu relato. ou dinheiro. ainda melhor.)
         
                                               passaremos sobre a zona do DJ, três paredes de adobe mais caiadas do que o resto do lugar e um telhado de palha, e da sua aparelhagem infernal. Ou divina. Dependeu sempre do estado de Alma do rebanho. Avançamos direitinhos para a Esplanada, Zona 2.

Três mesas apenas, miraculosamente ocupadas em permanência pelos mesmos humanos. Todos os dias. Ao Domingo também. Sem nenhum resguardo do Sol, que não seja o protetor que abundantemente lambuza a careca de um; o chapéu de palha com fita amarela Licor Beirão, afundado até às orelhas do senhor Monteiro da Silva; o escaldão primeiro grau da família de bifes que anexou duas espreguiçadeiras à sua mesa e três cadeiras; e os óculos de Sol, para ninguém ver se ela chorar, da paquidérmica Dama das Tatuagens. Os seus rebentos palmilham todo o Clube sem trela. O que não admira, pois que ao primeiro Cábron!, berrado no intervalo entre um e outro telefonema, não só acorrem ambos os petizes, mas muitos incautos transeuntes de ocasião. Todos despachados com um sonoro Que pedo te pasó, güey? 

Hoje em dia é muito vulgar que se romantizem acontecimentos. Partindo de factos factuais, lá escrevem historietas a seu propósito, dos factos, acrescentando pontos e alterando percursos, dando brilho a momentos profundamente aborrecidos, só para que fiquem bem na fotografia as suas personagens, baseadas em indivíduos que, tendo existido, podiam muito bem ter tido uma vidinha corriqueira, não fosse terem dado de caras com a queda de uma maçã ou coisa que o valha. Afastamo-nos desde já, e ainda nem ao adro chegamos, dessa corrente novelista fácil. Também nós gostaríamos de ir vendo e andando ao sabor da imaginação, tapando os buracos que nos aparecerem com pedaços de reboco inventados.

Nós não! Atemo-nos ao mero relato de como as coisas estão. Como se passaram e se passarão. Ainda que não seja bem certo o pretérito, ou o indicativo, que estamos a testemunhar. Que é condicional e imperativo, isso está claro.

Isto esclarecido, é sobeja a prova documental a propósito do sucesso de haver uma relação de direta proporcionalidade entre determinado toque do telefone da mãe baleia e a taxa de mortalidade na freguesia de Cacia, concelho e distrito de Aveiro, a Veneza portuguesa. Tirando que não cheira assim tão mal e não há noticia de que os ovos moles em Itália sejam grande espingarda. Já em Aveiro, é de a gente lamber as beiças. Os ovos moles e outras iguarias, mas agora não estamos a traçar um roteiro gastronómico, o que é pena. Menos para as enguias, já se vê.

Não que alguma vez tenha havido, ou venha a haver, alminha que se dispusesse a gastar um coche do seu pouco tempo sobre esta Terra do Senhor, qualquer que Ele seja, a estudar a fundo este acontecimento. Digamos que nem Cacia, que é, à sua maneira, também ela Veneza, desperta assim tanto interesse enquanto objeto de estudo, nem o número de mortes por lá foi, é ou será, assim queiram os Senhores, suficientemente estapafúrdio para que chame a atenção. Agora que de cada vez que o telefone da Dama se punha teténéunéunéu friday night and i need a fight, alguém quinava, disso não resta qualquer dúvida.

Se tivéssemos a sorte de estar a inventar tudo isto, agora mesmo viria o DJ à sua aparelhagem e por toda a piscina do Clube Leve Sopro de Vento do Mar estremeceriam os esqueletos, ao som de arranque de uma motorizada de alta cilindrada, ao mesmo tempo que as moças se humedeceriam por baixo, os moços esverdeariam de inveja, enquanto colocavam apressadamente perucas loiras de cabelo ripado e vestiam Speedos que os esterilizariam para sempre. Parecendo que não, ter os tomates apertados nunca fez bem a ninguém. Note-se com curiosidade que aparenta termos completado um circulo, de tomates a tomates, o que será talvez indício de que devemos deixar por ora este esquisito desacontecimento. Mais tarde poderá alguém chamar-lhe coincidência, o que estará errado, já sabemos.

Contemplemos antes a entrada majestosa da Dama, um mastodonte resoluto, percorrendo os seus passos lentos, o chão estremecendo, a cadeira vazia, aguardando por entre a falta de espaço que se vive em todo o CLSVO, menos ali, na clareira com cheiro a burrito e sabor a tacos. Atrás, o alvoroço das crianças, arrastando os seus unicórnio e golfinho de borracha flutuante. E de guarda-costas estamos conversados.

Nas costas da Esplanada, Zona 2, o muro branco que oculta o território não cartografado da Terra Reservado a Pessoal Autorizado. Que não somos, por muito transtorno que vos possa causar.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

A Mesa do Canto: O som do silêncio (notas do correspondente em Madrid)





Nota-se logo que estamos à beira da Páscoa. Um tipo não pode abrir o postigo para aviar umas bifanas em take-away que aparece logo um espanhol. Chiça, oh homem, fale de longe que vocês se perdigotam bastante, coño. Olhe, ainda melhor, pegue lá esta resma de papel e escreva aí o que quer que eu depois recolho. Grandes saludos e tudo e tudo.

E ele escreveu.

...

Conseguem ouvir? É o silêncio, o bendito silêncio.

De todos os dramas e tragédias sai sempre algo positivo. silver lining, dizem lá para terras americanas. Nestas últimas semanas, para os que gostam da bola quase tanto como gostam de liberdade, o triunfo tem sido o silêncio. Já não se ouvem aqueles intermináveis zumbidos catatónicos de painelistas e opinion makers, em horas e horas de tertúlias e shows televisivos dedicados ao futebol. As contas dedicadas a espalhar ódios, mentiras e polémicas, a soldo dos clubes ou de interesses turvos, estão caladas. Os ultras, dedicados a perseguir os companheiros de clube que não pensam como eles são agora tumbas. E diz que o Manafá está a ver vídeos do Beckham para melhorar os centros. Pelo menos a bola já não anda a partir as janelas dos vizinhos. 

Na cultura de mediocridade criou-se a sensação que esta gentinha sem escrúpulos, que funciona como sangue-sugas, é parte do jogo, parte fundamental. Eles gostam de acreditar nisso e a muitos têm deveras enganado. Mas os que temos saudades de ver a bola rolar, os que andam a ver jogos antigos, a jogar jogos virtuais e a sonhar com tocar ou ver mexer o esférico, finalmente perceberam que esse esterco não tem lugar no futebol. Que sem eles tudo é mais saudável. Porque tudo isto tem mostrado que nós, os adeptos, os que não lucramos nada com isto do jogo e que até perdemos dinheiro, paciência, anos de vida ou cabelo à custa do stress que ganhamos quando a bola chega aos pés daquele lateral que não sabe centrar, temos descoberto neste vazio que somos quase todos iguais e que é muito mais aquilo que nos une, como adeptos, do que aquilo que nos separa. Ao invés do que uma cultura de ódio sempre quis fazer crer.

Ao contrário do dono desta tasca, sábio a gerir o seu tempo livre, eu perdi muito do meu a ver jogos. O FC Porto é o meu clube desde que tenho memória e, só ao vivo, devo ter visto mais de duzentos jogos, para não falar nos televisionados mas, realmente, essa percentagem é pequena se comparar com os milhares de jogos que vi desde tempos imemoriais até há três semanas atrás. E sabem o que me chama sempre a atenção? Que somos todos iguais. Somos, os adeptos. Ouvimos no estádio cânticos que a claque copia de italianos dos anos 90 (vejam um Fiorentina vs Lazio de 98 e vão entender), todos achamos que nós somos o clube da mística, da raça, de fazer as coisas bem, todos nos sentimos especiais ao abraçar um emblema, umas cores. Todos repetimos o mesmo discurso, porque todos estamos apaixonados e a minha mulher é a mais bonita do mundo e de certeza que é mais do que a tua (que não deixa de ter umas boas coxas, atenção) e fazemos isso desde a crença, desde a positividade. Encontramos, ou encontraram por nós, slogans em que acreditamos a pés juntos, mas repetimos todos o mesmo padrão de comportamentos dentro e fora do estádio. 

Os roubos são sempre CONTRA nós, os árbitros são sempre comprados pelos OUTROS, os meus jogadores são os melhores e quando são maus são os piores. Como assim o teu lateral direito é pior do que o meu? Todos tivemos ídolos que foram os maiores, decepções que foram as piores, transferências recordes porque nós é que valemos ou negócios que falharam, porque nós é que sabemos negociar. A frase é sempre a mesma, muda a cor e nada mais. 

Sentem-se a ver tranquilamente um jogo ao lado de alguém de um clube rival e vejam como são vocês, a cruzar o espelho como a catraia. Não há rivalidade sem futebol e futebol sem rivalidade. É saudável e alimenta a alma. mas vejam The English Game e entendam que até no início havia rivalidade. Mas também união. Há países onde isso se perdeu, outros onde nem tanto, mas essa é a realidade e para interesses próprios foi substituída pela cultura do ódio. 

Há uma diferença. Eu posso sentir rivalidade com um clube, querer que perca para que o meu ganhe (ou para que perca, simplesmente) mas isso não significa que os odeie ou que sofra se cumprirem os seus sonhos. Há que amar e empatizar com o próximo (namasté). Mas esse ruído sujo e lamacento que agora, curiosamente, não se ouve, tem-vos dito que aquele presidente é um malandro, que aquele treinador é uma besta, que aqueles adeptos são TODOS – sejam 5 ou 5 milhoes – uns animais e que tens de carregar no botão do ódio e ir vomitar para as redes ou para as bancadas esse peso. E não tem que ser assim. Estas semanas demonstram-no bem. Tenho visto, admirado e invejado, no bom sentido, como existe em outros clubes que não o meu uma bonita cultura de clube, gente com projetos bem estruturados, independentes, dos adeptos, que estão a matar este imenso tempo livre com amor ao clube. Não a vomitar ódio ou dissidência, mas a criar comunidade, seja entre os seus, seja entre os que gostam de bola. E é bonito, seja qual for o clube de cada um. 

Mas depois faço introspeção e olho para casa. E vejo quase só silêncio. O mesmo silêncio do início, desse esterco ambulante que contaminou o ambiente durante anos e que não existe se não há ódio, confrontação e luta. E penso nas contas de redes sociais caladinhas e quase todas são da minha cor. E vejo que noutros clubes há muita gente que polemiza que agora se está a dedicar a falar do jogo, da comunidade e olho para o mundo azul e branco e vejo pouco e ouço pouco. Não há praticamente projetos que façam clube, comunidade entre os meus. Não há quem recupere a história para que ninguém esqueça que sempre fomos um clube maravilhoso, mesmo antes de 1978. Não vejo canais de YouTube ativos, raramente há podcasts que debatam o clube e a quantidade de contas tão ativas a denunciar polvos e padres e dramas, andam caladas quando podiam estar a falar do Hernâni, do Bibota ou do Alenitchev. E chego à conclusão de que se calhar há clubes que nunca perderam a noção de quem eram e outros que abraçaram tanto a cultura do ódio, do confronto e da luta que em tempos de paz não sabem atuar. 

Foi-lhes dito que só se olha para o presente e para a frente e muitos idolos saíram sem o seu merecido aplauso. Apagou-se uma enorme parte da historia do clube porque não encaixava na narrativa da neolíngua e agora as pessoas esqueceram. A mordaça que rodeia grande parte do clube atontou os adeptos que são incapazes de se organizar e mexer, sem que tenham de passar pelo filtro de nós contra todos. É comê-los, carago! E tudo isso importado de outros lados porque aqui ninguém inventou nada. 

Numa época em que todos estamos a perceber que valemos uma merda, que a nossa vida e a dos nossos pode voar sem se dar por isso, é ainda mais doloroso lembrar que quando se marca um golo no Dragão ainda há quem se lembre primeiro de um rival e depois de si próprio. Se esta crise humana brutal nos está a ensinar algo, é a colocar tudo no seu devido sitio e o ódio e a falta de empatia e amor deviam ficar definitivamente à porta, sobretudo de um estádio de futebol. Mas, se calhar, é por estar rodeado de pessoas a morrer e não a tomar um café na marginal de Gaia que me dá para pensar nestas coisas. Se calhar. Bota lá mais uma que nesta tasca até o silêncio é diferente.



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