sábado, 10 de maio de 2014
Irmãos de sangue tinto
Vai bem com a pose este lugar. Ocupam invariavelmente toda a área de fumadores, até transformarem a tasca inteira numa noite de nevoeiro baixo.
Esta casa o seu forte. A cada um o seu lugar numa hierarquia horizontal, sem autoridade explicita, mas com postos claros: o velho precedendo o novo. Não nas idades, que não contam agora, mas no tempo de casa, de clube, de convívio.
Chegaram de peito feito, regaram o cansaço, homens novos, pulmões precocemente envelhecidos. Capitães todos, assim transformados mal passaram a ombreira.
Conhecem-se pouco lá fora. Quase só o essencial: nome, alcunha, pé preferido, potência do remate. E ainda assim, é uma irmandade que se vê daqui do balcão. Melhores amigos pelo que durar o jantar e a sobremesa. Matava por ti, meu irmão. Mesmo sem saber nada da tua vida, por pior que sejas. E eu morria por ti em paga. Partilham e esconjuram as dores mutuas e alheias, sobretudo as que não se contam.
Esta noite, ai esta noite todas as mulheres são lindas, todas as graçolas uma gargalhada só, todos os golos possíveis. E deixam-se mentir uns aos outros, protegem-se à vez, distribuindo fidelidades em doses certas por todo o contigente.
Agora levantam-se nos últimos e prolongados brindes. Vão-se tornando baços a cada passo em direção à saída. Abraçam-se num "até à semana", como se dissessem "renasceremos assim como estamos agora, mas só no sábado que vem".
Na claridade dos candeeiros da estrada darão as mãos aos monstros, pacientes e inexoráveis, que fizeram questão de deixar na rua. Serão eles a levá-los a casa, ao prostíbulo ou à tasca seguinte.
Vejo-os ir toldados e de passos já inseguros, os irmãos de sangue tinto.
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