sexta-feira, 5 de setembro de 2014
Judeus nazis e um assassinato no alfa pendular, ou a estupenda capacidade humana de odiar
- Ena, até que enfim acabaram as férias hein? Nota-se logo pelo ar desolado. - Rio-me. - Deixe lá, quer dizer que foram boas e apeteciam mais. Desligou-se completamente ou foi acompanhando os dias do Mundo? Que guardou este ano?
- Isto. - E caem sobre o balcão os dois volumes do "MAUS".
- Leu o "MAUS", pois fez muito bem. Mas isso é leitura para meio dia, digo eu.
- Não, já tinha lido antes e relido amiúde. Mas houve uma noticia que me ficou destas semanas, de facto. Veja bem que casaram um muçulmano e uma judia em Israel.
- Sim, vi qualquer coisa. Não foi pacifico.
- Nada! O que me marcou mesmo, foi a noticia de que um partido de extrema direita judeu ortodoxo, o Lehava, defende a criação de legislação anti assimilação. No fundo, querem proibir desde logo os casamentos mistos.
Silva, é Nuremberga outra vez. Não a dos julgamentos, mas a dos congressos nazis. Esta lei chamava-se "Lei da Proteção do Sangue e Honra Alemães"! Tremi. Tremo. O ódio é-nos intrínseco, tem que ser...
Engole um trago da cerveja gelada que acabo de pousar à sua frente. Prossegue:
- E então hoje entro no Alfa pendular, de novo. Ainda sinto o cheiro do protetor solar na minha pele, tenho saudades de ontem. Mas é a viagem de regresso, menos mal. E ao meu lado está um sujeito qualquer, de óculos e olhos postos num tablet, a ver um filme. Não, não era um filme, era uma série, o "Under the Dome".
- Stephen King. Os livros são engraçados. - Interrompi.
- Isso mesmo! Eu abri o meu livro e pouco depois comecei a fechar os olhos, o normal. Ia gozar a minha hora de sono embalado pela velocidade pendular. E reparo que o tipo rói desesperadamente as unhas. Eu roía desesperadamente as unha há pouco tempo, agora já não. Mas aquilo faz barulho. Ele revirava as mãos para poder trincar melhor os cotos que lhe restavam. E salivava e mordia e eu ouvia. É insuportável!
Poucos minutos disto e apetecia-me bater no desgraçado. Ele, claro, perfeitamente indiferente, devorava o que podia das suas próprias unhas. Nesse instante o passageiro do banco atrás do meu decidiu fazer uma chamada telefónica. Falava alto, com um sotaque nortenho carregado. Aquilo irritava-me para lá do aceitável. Depois abriu a mesinha nas costas do meu assento. Com força, com barulho, à bruta. Pelo menos pareceu. O outro comia alegremente as mãos e fazia barulho, este gritava "cerbejas carago, bámos buer uns finos e frãncesinhas cum caralhoeee" e esmurrava a mesinha.
E eu juro-lhe Silva, sempre que fechava os olhos via-me a agarrar o braço do tipo ao meu lado e a enfiá-lo na sua própria boca até ao cotovelo. Via as veias rebentarem no branco dos olhos dele, arregalados, o ar de enorme surpresa misturado com a aflição de não poder respirar. O de trás levantava-se para perguntar "mas o que bem a ser isto carago" e a cabeça explodia-lhe, enquanto todos os outros passageiros, TODOS, entravam em autocombustão.
Mais um trago de cerveja. Longo.
- Finalmente chegou a minha estação. O meu autofágico colega de viagem saiu também. Estava uma rapariga bonita à espera dele. Beijaram-se, ele sorria. Tinha ar de estar feliz e de ser boa pessoa. Mesmo boa pessoa. Ainda bem que não o matei...
- Terrível, o fim das férias... E a nossa tendência para o ódio...- Resumo.
- Pois... Parece que a vida se volta a desbotar. Que se vai um brilho qualquer que o Sol e o tempo livre traz ás coisas todas. São 9 horas da noite, Silva. E é mesmo de noite! Lá nas Férias ainda está de dia...
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