- Ah, o Júlio. - Sorri a olhar para o teto. - Ainda é cedo para me esquecer. Não que esteja presa a alguma memória. Ou sequer a esforçar-me para esquecer algum desastre, nada disso. Mas eventualmente esquecerei. É da minha natureza. Foi intenso e até profundo. E tão conturbado. - Sorri.
O Júlio era, antes de mais, uma pasmaceira. Monótono, pronto. A relação parecia um paquiderme, entendes? Arrastava-se, dra-ma-ti-ca-men-te leeeenta. Não te consigo explicar melhor. Imagina uma lesma gigante, cravada de setas no lombo, a arrastar-se penosamente para lado nenhum. Condenada. - Afasta o cabelo dos olhos. - É uma bela imagem, hein? Se calhar um pouco exagerada, mas foi o que me ocorreu.
Claro que no inicio não era assim. Vinha de uma época tão má da minha vida, raios. Aquela calma, a capacidade de auto-controlo que tudo nele me prometia, chegava a ser excitante. Mas olha que logo aí reparei que não caiu no goto de muita gente. A família desconfiava, os amigos deram-lhe pouco crédito. Enfim, não se pode dizer que tenha sido uma festa. Já se sabe que pouco me importei com isso. A vida era minha, eu é que tinha que estar feliz. E estava. Apesar de quase todos o acharem um chato de galocha. Cada dia mais.
Oh, mas íamos a sítios tão interessantes, tão cheios de vida. Conheci um Mundo novo, sabes? Tanto potencial, tantas possibilidades, tão claras que quase podia tocar-lhes. Sonhei, confesso-te. E sei que foi ele que me deu o sonho, quando julgava que só me restava a dura realidade da minha pequenina existência. E no entanto, chatinho como só ele. Igual, repetitivo. Eu sempre à espera de uma explosão, sei lá, às vezes até de um grito áspero. Olha, digo-te, alturas houve em que só me faltou rogar-lhe que me esbofeteasse. Para o saber vivo. Tudo tão perfeito, tão limpo, tão arrumado, tão assético. Tão inconsequente, tão à eterna distância de um danoninho. - Baixa a cabeça por um instante. Sacode os cabelos longos.
Sentia-me perto do Céu e ao mesmo tempo incapaz de lhe tocar. Mas não desisti assim, à primeira. Insisti. Se calhar mais por teimosia, não sei. Aquela sensação de agoréké. Mas já foi tudo muito atribulado. Eu sem paciência nenhuma, ele a escorregar para a depressão. Dias vieram em que quase senti pena. E o que eu detesto isso. Ele a tentar com as forças que lhe restavam, eu a ir de impaciente a exasperada. - Passa as mãos pela cara lavada, sem maquilhagem, e suspira alto um ai prolongado.
E o sexo? Credo. - Ri-se. - Não percebas mal, não era péssimo. - Ri-se de novo. - Não era péssimo é muito mau, não é? Digo-te, no inicio foi quase um balão de oxigénio. Era calmo, previsível, meigo. Quase sempre havia um orgasmo. Meu, claro. Exceto raras ocasiões, era certinho mas não faria 100 quilómetros para o comer. - Ri. - O que magoou mesmo, foram aquelas alturas em que estava tão acesa que quase iluminava a rua toda. Eu um fogo só, uma fera pronta a devorá-lo. E nada. Nem uma faísca. Ou o de sempre, ou, por vezes, - cada vez mais frequentes em direção ao fim - a tentar fazer coisas que não sabia. Ou para as quais não estava equipado. - Sorri e desenha aspas no ar.
Tu sabes que houve uma ou outra altura fantástica. - Pisca um olho. - Devo-te ter ligado em todas. - Sorriem. - Essas três ou quatro. - Riem maldosas.
Depois foi o que se sabe. Toda a gente aos berros com ele: A minha família, os meus amigos, os amigos de amigos deles. Todos. E eu farta, com raiva da turba inteira. Pu-lo na rua, mandei-os calarem-se, arremessei-lhes com a porta nas trombas e fui para os copos. Noite após noite, durante duas semanas. - Coça um joelho nu. - E conheci o Zé.
Está claro que o Zé tinha que ser a antítese do Júlio. Tudo nele é simples e alegria e gargalhadas. Adorava o humor inteligente, e irritantemente polido, do Júlio. Mas o que me apetecia mesmo naquela altura eram as piadas parvas, com peidos e palavrões, do Zé. Sei que tenho que lhe dar tempo para se aperceber do que o rodeia, mas acho que já cometi um erro crasso. Contei-lhe. Detalhe por detalhe. Parva! - Bate com a mão na testa.
E agora parece que não sabe o que fazer. Está numa espécie de limbo. A ser quem não pode deixar de ser; e a esforçar-se por ser outro. Melhor. Não consegue, não consegue. Eu bem lhe digo que seja só o que de facto é. Que se dane para exposições de arte que eu vou bem sozinha. Que não me importo nada que me lamba toda enquanto me delicio com um Dostoiévski, com a montanha do Mann ou assim. Até prefiro não lhe ver as fuças. - Dá uma gargalhada.
Mas não, ele insiste em temperar o arraial que me prometeu com pinceladas de calma e ponderação. Acabamos por nem foder como coelhinhos, nem escolher contas poupança para a velhice. Ficamos ali a meio. Entre uma noite para lembrar e um põe-t'andarquesófazezémerda. Não sei, não sei. - Abana a cabeça.
Há dias em que me lembro do Júlio com mais nostalgia do que sinto que devia. E nesses, nem posso ver o outro. Mas depois ele fala, com aquele tom convicto e o seu ar simplório. E embora me irrite que procure palavras que não lhe assentam, diz as coisas certas. Vê o que eu vejo. Só que promete o que eu acho que não tem como cumprir. - Sorri, com alguma tristeza.
Oh, é claro que não estou a planear ficar velhinha com o Zé. O que me apetecia mesmo era um período de espanto. Uma fase de completa loucura, a trezentos quilómetros à hora, sem rédeas. Sim, eu sei dos perigos. Mas era isso mesmo: Uns tempos à beira do abismo. Se cair, eu sei levantar-me. Se sobreviver, fico de alma cheia. Pronta para tudo. Até para despachar o Zé. - Ri. Toca o telefone.
É ele. Chateamo-nos ontem à noite, para variar. Estava tudo a correr tão bem. Depois pôs-se com salamaleques e nove horas. E eu com uma corda de Shibari na mala. Pronta a estrear. E aquele chicote que comprámos juntas, lembras-te? - Sorriem ao mesmo tempo. Naughty.
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Soundtrack to Maria Amélia: Hit her like a man.