Esta noite choveu. Bastante.
Ainda faltam umas horas para serem horas de gente, pelo que, por agora, o Mundo está entregue às esparsas luzes dos automóveis que se cruzam, como se se cumprimentassem, fantasmas ao volante talvez. E a um nevoeiro denso que embacia a iluminação pública e deturpa todas as cores.
Se fosse possível explicar-vos, assim adormecidos, diria uma imensa catarata que caiu sobre o Universo. Uma degenerescência macular do Infinito, pudesse determinar se o Infinito é novo ou velho.
Apesar do som dos rodados no asfalto o prender a este detalhe de existir, há no nevoeiro uma promessa de fim. Fim das fronteiras entre verdade e mentira, longe e perto, vivo e morto. Porque resta apenas um fumo esbranquiçado que o envolve, impedindo que se perceba se são árvores nas bermas ou construções maléficas do final das coisas, montras mal iluminadas de cafés fechados ou velas espalhadas pelo Calvário dos malditos, cacimbo a acionar as escovas limpa-vidros ou lágrimas de Deus, de alívio, alegria ou profunda tristeza pela queda da Obra.
Que diz? Resta? Não, mente. Não resta. Velou-se, apagou-se e enterrou-se. Com as mãos coladas ao volante, segurando com tanta força que dói nas palmas, como quem se agarra a uma pedra coberta de musgo no passo derradeiro da última milha. Do abismo. O momento em que em vez de porquê se pergunta o quê. Quem? Eu?
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Sempre que se entrega, por obrigação que seja, ao nevoeiro, o cérebro devolve-lhe a reminiscência do final de The Mist. Se podem os monstros usá-lo para se ocultarem, ficando ainda mais monstruosos e apavorantes, porque desconhecidos e apenas imaginados - e bem sabemos que a imaginação tende a dar-nos o que de facto merecemos: aberrações inenarráveis - também podem os Salvadores tê-lo invocado para, a coberto desse manto Divino, chacinarem todas as ameaças e devolverem a paz aos Homens. A este homem, ao menos.
É como se estivessem guardadas no que não se pode distinguir todas as possibilidades. Imagine-se uma corrida por um prado, pelo caminho vai ficando a roupa,
( detém-se um pouco nesta imagem e nós, meros espectros a escorrer das janelas, não temos remédio senão acompanhá-lo. O prado é verde, de capim alto, e desce. A roupa é uma jardineira de ganga gasta e não parece haver roupa interior, o que não é de espantar. Tirando o detalhe parvo, é a "Casa na Pradaria". O fim do Mundo quem o traz é o Bonanza. In your face, Trinitá! Ou então é apenas o início da loucura...)
até ao salto no vazio, no penhasco, os olhos fechados, todas as hipóteses em aberto, incluindo asas a crescerem nas costas ou os cornos num pedregulho.
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O que não se detém é o Tempo. Mesmo assim, baço como as cores, pastoso como a língua numa manhã de ressaca, é certo que avança. Isso e os quilómetros desbravados sem se dar por eles, qual Sebastião desorientado. Ali à frente, uma luz: o Fogo Eterno, um Halo Abençoado, uma mão estendida a que se agarrar, o reflexo de uma gigantesca adaga que lhe sossegará o coração. Não a Alma. Provavelmente, uma estação de comboios. Um sinal de que a vida prosseguiu, ainda que a vontade seja voltar para trás.
Sim, definitivamente, baça contra o cenário baço, ali à frente uma luz. E ele lembra-se do tempo em que foi armado Master of the Light, responsável por ligar e desligar todas as luzes do Mundo.
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