terça-feira, 27 de novembro de 2018

The Twilight Zone: The Mist



Esta noite choveu. Bastante.

Ainda faltam umas horas para serem horas de gente, pelo que, por agora, o Mundo está entregue às esparsas luzes dos automóveis que se cruzam, como se se cumprimentassem, fantasmas ao volante talvez. E a um nevoeiro denso que embacia a iluminação pública e deturpa todas as cores.

Se fosse possível explicar-vos, assim adormecidos, diria uma imensa catarata que caiu sobre o Universo. Uma degenerescência macular do Infinito, pudesse determinar se o Infinito é novo ou velho.

Apesar do som dos rodados no asfalto o prender a este detalhe de existir, há no nevoeiro uma promessa de fim. Fim das fronteiras entre verdade e mentira, longe e perto, vivo e morto. Porque resta apenas um fumo esbranquiçado que o envolve, impedindo que se perceba se são árvores nas bermas ou construções maléficas do final das coisas, montras mal iluminadas de cafés fechados ou velas espalhadas pelo Calvário dos malditos, cacimbo a acionar as escovas limpa-vidros ou lágrimas de Deus, de alívio, alegria ou profunda tristeza pela queda da Obra.

Que diz? Resta? Não, mente. Não resta. Velou-se, apagou-se e enterrou-se. Com as mãos coladas ao volante, segurando com tanta força que dói nas palmas, como quem se agarra a uma pedra coberta de musgo no passo derradeiro da última milha. Do abismo. O momento em que em vez de porquê se pergunta o quê. Quem? Eu?

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Sempre que se entrega, por obrigação que seja, ao nevoeiro, o cérebro devolve-lhe a reminiscência do final de The Mist. Se podem os monstros usá-lo para se ocultarem, ficando ainda mais monstruosos e apavorantes, porque desconhecidos e apenas imaginados - e bem sabemos que a imaginação tende a dar-nos o que de facto merecemos: aberrações inenarráveis - também podem os Salvadores tê-lo invocado para, a coberto desse manto Divino, chacinarem todas as ameaças e devolverem a paz aos Homens. A este homem, ao menos.

É como se estivessem guardadas no que não se pode distinguir todas as possibilidades. Imagine-se uma corrida por um prado, pelo caminho vai ficando a roupa, 

                                                                                                 ( detém-se um pouco nesta imagem e nós, meros espectros a escorrer das janelas, não temos remédio senão acompanhá-lo. O prado é verde, de capim alto, e desce. A roupa é uma jardineira de ganga gasta e não parece haver roupa interior, o que não é de espantar. Tirando o detalhe parvo, é a "Casa na Pradaria". O fim do Mundo quem o traz é o Bonanza. In your face, Trinitá! Ou então é apenas o início da loucura...)

                                                                                                    até ao salto no vazio, no penhasco, os olhos fechados, todas as hipóteses em aberto, incluindo asas a crescerem nas costas ou os cornos num pedregulho.

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O que não se detém é o Tempo. Mesmo assim, baço como as cores, pastoso como a língua numa manhã de ressaca, é certo que avança. Isso e os quilómetros desbravados sem se dar por eles, qual Sebastião desorientado. Ali à frente, uma luz: o Fogo Eterno, um Halo Abençoado, uma mão estendida a que se agarrar, o reflexo de uma gigantesca adaga que lhe sossegará o coração. Não a Alma. Provavelmente, uma estação de comboios. Um sinal de que a vida prosseguiu, ainda que a vontade seja voltar para trás.

Sim, definitivamente, baça contra o cenário baço, ali à frente uma luz. E ele lembra-se do tempo em que foi armado Master of the Light, responsável por ligar e desligar todas as luzes do Mundo. 

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sexta-feira, 16 de novembro de 2018

La Grande Maladie: De homens e insetos

Eventualmente serão fundamentais para a sobrevivência de várias espécies de pássaros, cujos ovos e carne servem, por sua vez, para garantir que prosperam uma série de mamíferos e ovíparos e outras bichezas e depois vem o homo estupidus e come tudo e caga tudo e queima tudo e assim por diante.

Apesar disso, e talvez por nunca ter desenvolvido convenientemente a tendência ecologista - esqueço-me basto de separar os resíduos e adoro posta mirandesa, quase em sangue - não consigo levar-me a detestar menos a trampa das melgas e dos mosquitos. Está claro que eles me retribuem a preferência, tratando de me sugar o sangue amiúde, sem contemplações. Mesmo que possam escolher entre toda a população chinesa, será seguramente a mim que vão picar, os acabados filhos da puta. E filhas. E eu nem sequer sou chinês!

Em resultado deste conflito de espécies - sugado e sugadores - nutro um carinho muito especial por outros animais. Não que tenha em tempo algum achado boa ideia munir-me de um machado, tatuar um facho no peito, e criar um movimento de caráter militarista. Digamos que procuro antes ter atitudes simpáticas e fofinhas para com animais que, comprovadamente, fazem a vida negra aos chupadores de sangue. Que tradicionalmente sejam espécies pouco queridas, como aracnídeos e batráquios diversos, pouco me importa.

E deixemos, por agora ao menos, de lado o significado de estar a pessoa a demorar-se alguns minutos mais no banho - a água desperdiçada a acelerar o fim do Mundo, a energia desnecessariamente gasta a espezinhar Continentes - à conta destas derivações da mente. Um tolinho todo nu, diríamos.

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É aceitável que seja a intuição de uma certa segurança que leva a aranha a atravessar impávida o teto da casa de banho. Patas negras a contrastar na alvura do teto falso, em movimentos determinados e rápidos, ainda que não em linha reta. Seja como for, mais curva, menos curva, já desde lá do outro lado da assoalhada que era claro que viria nesta direção.

Acontece que pode ser uma viúva negra, ou lá como se chama, daqueles aranhiços de partes incertas do globo, que parecem inofensivos e depois nos matam em menos de um fósforo. Aranha assassina do género Aracnofobia é que não é, uma vez que não guincha. Mas lá que pode aproveitar a calada da noite para me entrar por um ouvido e plantar milhares - ou milhões! - de ovos que me detonarão o cérebro que me resta, lá isso pode.

O facto de se dirigir tão resolutamente a este lado é, ao mesmo tempo, fofinho e um tanto assustador. Caramba, afinal há aqui movimento e vapor e coisas, o que deveria - sei lá, digo eu - fazer com que um animal desta dimensão, francamente mais pequeno do que a besta que coze debaixo do chuveiro, sentisse disparar os sensores de perigo. Tão mal contada que está, essa história do Homem Aranha.

Enfim, impõem-se decisões.  É provável que o mais seguro seja espetar-lhe com uma esguichada de água assim que esteja ao alcance. Cairá na base do chuveiro e bastará empurrá-la para o ralo. Adeusinho ovos comedores de miolos e picadas assassinas.

Por outro lado, um só mosquito que caísse na sua teia e passasse a almoço, representaria uma vitória retumbante da clemência, da tolerância, quiçá a alvorada de um modo de vida outro, simbiótico, de harmonia entre Homem e Aranha. Que grandes feitos daqui adviriam, caro Stan?

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O inseto parece hesitar, precisamente sobre a cabeça pelada do humano. Depois prossegue resoluto, em direção ao canto do teto. Aninha-se, encolhe-se, predispõe-se a esperar que todo o movimento cesse. Então, será uma bela altura para começar a fiar uma teia, construir um lar, caçar o almoço.

Perfeitamente sossegada no vértice, é apenas um ponto escuro, invisível. Ele sai do banho, seca-se, é possível que se vista e vá tratar da sua vida.

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- Vem cá, pá, depressa. Não podes perder isto. - Impaciente, ansioso, excitado, um catraio prestes a explodir uma bombinha de carnaval.

- O quê, Senhor? Que se passa?

- Ah, perdi a paciência, por fim! É tudo demasiado estupido, vou exterminá-los de vez. Não foi uma decisão fácil, que a Divindade se afeiçoa aos bichos e depois custa um pedaço, mas é pelo melhor. Puf - faz “puf” com as mãos - bye bye parvalhões dos polegares oponíveis.

- Eish, vai explodi-los, Senhor? Afogá-los? Não, isso não, que aparece sempre um Noé da vida que estraga tudo. Já sei! - bate as palmas - Matam-se os primogénitos todos, até que não restem senão primogénitos, que serão, consequentemente, mortos eles também. Que bela batota, Senhor!

- La Grande Maladie! - Anuncia.

- Hã?

- É francês, oh pescador. És mesmo rústico.

- Porquê francês, Senhor? - Perplexo.

- Sei lá, apeteceu-me. Soa sofisticado e, ao mesmo tempo, tem aquele tom creepy. Não achas? Oh escuta lá: La Grande Maladie! - Com voz grave e dramática, abrindo os braços.

- Pois, talvez... E é o quê, isso? 

- Anda cá. - Passa-lhe um braço pelos ombros e aproxima-o da Grande Janela. - Tájavêr ali o debilóide a tomar banho? Agora repara no teto. Aquela pequena aranha vai pôr-se mesmo a jeito e o anormalóide vai mandar-lhe uma chuveirada que a fode.

- Senhor! - Chocado.

- Oh, tu percebeste! Ora, quando o bicharoco cair na banheira, vai desprender-se dele um vírus fatal que, por sua vez, vai meter-se no estupido... - Interrompido.

- Meter-se? Como assim meter-se?

- Olha, pelo cu acima! Se é para me vingar destes milénios de disparate, ao menos gozo o prato todo. Mas isso agora é de somenos, o que importa é que é este vírus que vai espalhar-se e exterminar a espécie. Xaram! - Abre os braços.

- Bem, está um bocadinho visto isso, não?

- Pois claro que está, Pedro. É essa a ironia. Ainda por cima a começar com o parvo. É Divina!

- Errrr, Senhor... - Chama-Lhe a atenção. - Parece que a besta está a ir-se embora. Já estará infetado? Eish, e vai nu, ca noijo...

- Hã?

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sexta-feira, 9 de novembro de 2018

The Twilight Zone: Afterlife (por Maria Alves)



Foto: Victor Vaz


Esta madrugada choveu. Bastante.

Saiu de casa e a primeira coisa que lhe veio à cabeça foi que os condutores iam andar todos como baratas tontas, a asneirar a torto e a direito e a bulir-lhe com os nervos.

É sempre assim quando chove, mesmo que sejam só meia dúzia de pingos. Até nesta Vila pequenina - às vezes (tantas!) espectral - classificada de Cidade, na qual os atrasos matinais se resumem a uma dezena de viaturas encalacradas no acesso à Rotunda das Pedras

(…)

(assim designada carinhosamente pela população, por força das cinco… coisas ao alto… com que orgulhosamente presenteia os seus visitantes. Calhau de considerável envergadura sobre calhau de considerável envergadura, resultando em conjuntos escultórios representativos de oito freguesias - como é que isso dá cinco conjuntos de esculturas, nunca percebeu. Mas a Matemática também nunca foi o seu forte. Agora que se fala nisso e pensando melhor, isto foi muitos anos antes da Reforma Administrativa do Território ter reduzido oito a cinco Freguesias… querem ver que afinal eram todos grandes visionários?! Vem-lhe à cabeça a mais nova, assim pequenina, no assento de trás do carro, a dizer que as pedras estavam sujas e que a mãe tinha de as lavar. Esse era o tempo em que o pai era o Master of the Light, responsável por ligar e desligar todas as luzes do Mundo. Já foi tão pequenina, a mais nova.)

(…)

O outro motivo que pode gerar atrasos inconvenientes, é o semáforo do centro calhar estar vermelho. Feitas as contas, num dia mau, pode atrasar-se 5 minutos todos inteiros numa manhã. Incómodos de se viver nesta Vila disfarçada de Cidade, pois então.

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Este tom azul do céu sempre foi assim? Não o reconhece.

Se lhe retirar as nuvens, as de algodão e as que prenunciam tempestades, ele está ali, num azul completamente novo. Nem mais bonito, nem mais feio. Diferente. E é nesse instante que se apercebe que todas as cores do Mundo apresentam também tons que não lhes conheceu antes.
Raisparta, Oftalmologista outra vez? Shit!

Afinal não são 10 carros encalacrados na Rotunda. São 8. Dá-lhe algum tempo para absorver e dissecar toda esta nova paleta. Coisa de gaja - dizem! As mulheres não veem somente as cores primárias e as compostas, na sua simplicidade; veem o seu leque infinito de tons. E dão-lhes nomes. Tornam-nos concretos!

O céu tem um inédito tom de azul, sólido, sem qualquer transparência. O verde das árvores é áspero, arranha os olhos e deixa um gosto estranho na boca. Pela estrada demoram os restos das folhas que o temporal roubou aos pinhais, num ocre cortante. O piso cinzento brilha, ofuscando o tracejado branco esbatido das marcas rodoviárias. Os carros passam. Todos iguais nas suas cores, indiferentes aos nomes e às diferenças convencionadas.

Sente o sangue a correr nas veias. Não o vê, mas sabe que o seu vermelho é mais intenso. Chegou aqui fruto de tantas experiências, tantos sentimentos e emoções, tantas gargalhadas e tantas lágrimas. O suor parece mais frio, mais espesso, demora nos poros. As lágrimas têm um gosto diferente de sal, como se o tempo se tivesse encarregado de o ir refinando. A pele está mais densa e as marcas que a vida lhe imprimiu são um mapa que apetece percorrer. Um daqueles mapas dos Parques de Atrações: “Esta mete-me medo. Aquela parece divertida e a que se lhe segue é bonita. A esta vim ao engano e não regresso. Aqui poderia permanecer… ”

Vem-lhe à cabeça que, à saída de casa, talvez tenha entrado numa outra dimensão. Uma Twillight Zone contemporânea, a fugir para Black Mirror, a que não reconhece assim tanto mérito. Aqui tudo é igual à Vida, mas de uma forma diferente. Concreta também, confusa pela novidade. Requer habituação.

Será que é ela? Foram as cores que mudaram ou a sua íris que as capta de outra forma? Ou o cérebro que as processa de forma distinta?

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Ocorre-lhe: e se isto é um sonho? Se não acordei ainda?

Talvez ainda esteja perdida no calor dos lençóis e no conforto da pele familiar e desejada que repousa encostada a si e que busca constantemente. Com a mão. Com o pé, se não a sente, se não sabe se já dali saiu a horas a que ninguém merece sair.

Hoje os sonos são diferentes. Quentes. Difíceis. Curtos. Entrecortados. Muitas das vezes superficiais. E por isso os sonhos são mais palpáveis, mais vívidos.

Pode ser isso, deve estar a dormir. Quando acordar as cores voltaram aos seus tons familiares. Aqueles que partiram estarão ainda entre nós e as saudades não terão mais sentido. Passarão as mãos pelo seu cabelo, sentirá na pele o calor dos seus hálitos quentes nos beijos trocados. Ouvirá as suas gargalhadas interrompidas pela tosse dos vícios. Haverão saudades, mas matam-se à distância de uma qualquer tecnologia imediata. «Dallas» all ove again! e ri-se das referências que a atraiçoam quando quer acreditar que os anos não foram estes todos.

Será ainda o tempo dos poemas. Tantos. Guiões para a sua Vida.

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Ou será o Afterlife? A Fénix renascida. O recomeço depois do fim. A última chance, depois de todas se terem esgotado. A resiliência do ser. A dimensão dos sentimentos. A etapa que antecede o vazio, o vácuo, o nada.

Afterlife. A palavra ecoa na sua cabeça, porque alguém lha sussurrou ao ouvido, recentemente. Tem a certeza. Afterlife.

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Fugiu ao semáforo do centro (espertinha, cheia de truques!). Olha para o relógio do carro no momento em que desliga a ignição: 1 minuto de atraso em relação ao que tinha definido. Está satisfeita, mas ainda assim preferia que fosse 1 minuto antes do deadline. Sai do carro, estacionado o mais perto que consegue do emprego. Mesmo ao lado, hoje. Outro motivo de satisfação.

Pega na mala e em 2 sacos. Não chove. «Porque raio ando sempre cheia de sacos? Porque raio carrego e acumulo tralha que provavelmente nunca mais me servirá para nada? Porque é que tenho tanta dificuldade em me libertar? Em pôr fora, em deixar para trás?»

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Não repara, mas as cores já voltaram todas aos seus tons habituais.

Percorre os poucos metros até à entrada do edifício. Já com a mente em tudo o que há para fazer, sem se aperceber, compartimenta os medos, a esperança, os sentimentos, as saudades e tudo o resto que lhe faz valer a Vida.

Logo, logo, voltará ali.

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