domingo, 28 de março de 2021

Agapito morreu!

 


Um belo dia, pelo menos diz que estava Sol...

                                                                          o que por si só não transforma os dias em belos, vá que pode estar Sol e o individuo ser atropelado por um camião de transporte de sacas de caracóis. Pumbas, ai que belo dia que foi, não? Para aqui todo partido no corredor do hospital, paredes meias com o covidário, ainda sai a pessoa dali para uma melhor, credo, cruzes, lagarto, lagarto, lagarto, e depois vem o inteligente e começa a escrever numa folha branca: Um belo dia. Se não era um pano encharcado naquelas beiças.

Um dia, o senhor Agapito Silva decidiu que não envelhecia mais. Dito assim parece estranho, mas vendo bem é uma decisão como outra qualquer. Não que a tenha comunicado ao Universo ou sequer aos parentes próximos. Tratou-se de uma tomada de consciência basto introspetiva e suficientemente ponderada, das que não precisa de testemunhas ou cobradores. Olhou para o espelho da casa de banho e disse:

- Porra, já chega, não envelheço mais. - e procedeu a desfazer a barba, matando o individuo do espelho que estava a ficar mais trôpego do que gostaria de admitir.

Só pelo olhar já se podia ter a certeza de que não haveria passos atrás, recaídas, segundas opiniões. Ao Agapito não iam encontrá-lo a envelhecer às escondidas em algum beco; ou a oferecer-se para ir passear o cão para poder ficar um pedaço mais velho pelo caminho, sem ninguém ver.

No fundo, podemos dizer que se tratou apenas do corolário de todo o pensamento agapitano, firmemente assente na falta de evidência acerca da sua própria mortalidade. Isto é, ainda estava por se provar que o Agapito também morria. Digamos que é um pensador de raiz muito liberal e individualista, pouco dado a comunas e generalizações no que diz respeito à morte. Quer dizer, lá porque toda a gente parece fenecer a dada altura, isso não significa que a Agapito lhe aconteça o mesmo. Pelo menos até acontecer, não fica nada fácil provar o contrário. E depois também não, pois que já Agapito não haverá para se lhe esfregar nas trombas o seu próprio falecimento. Postas assim as coisas, não parece nada mal para filosofia de - lá está! - vida.

O Tempo é que se compadece pouco com os disparates dos homens, embora manifestamente mais tolerante com os das mulheres, e segue imperturbável o seu caminho, naquela cadência de quem não está atrasado, mas também não vai de véspera. Passa, segundo antes de minuto, e passa e passa e ainda está para nascer quem que saiba para onde vai. De modo um tanto injusto, o Tempo caminha mas as sequelas ficam para os transeuntes e nem Agapito tem como lhes escapar. Apesar de tanta resolução e tão forte comprometimento, no que não dependia exclusivamente de si, não tinha como não enferrujar. 

E lá deu consigo de frente para o espelho de novo, outra vez desconhecendo o homem que o olhava de volta, significativamente mais velho do que ele próprio. Se há coisa pela qual os homens são conhecidos, é pelo seu espirito corporativo. Está certo que é uma bela treta, mas se estamos aqui para contar a história deste homem, não vamos agora perder o foco e pormo-nos a falar de outros, mesmo que seja esse indefinido que somos nós todos e, por conseguinte, é uma inexistência. Assumamos apenas que Agapito se compadece do amigo do espelho e se dispõe a ajudá-lo. 

Ora, se o vasto matagal peitoral está a ficar cheio de brancas e isso parece provocar-lhe alguma angústia, meu bom amigo, vamos lá arranjar uma solução. Como calculará, não é algo em que eu tenha alguma vez pensado, posto que, não sei se estaria informado, já há um bom tempo que deixei de envelhecer. Note que não é tão difícil como as pessoas pensam. Bem, tratemos do pelame que, de facto, não dá nada bom aspeto.

Assim deu Agapito uso à máquina zero e desbastou a bom desbastar, de tal maneira que mal se notavam quais os brancos e os pretos, todos pelos, todos iguais. Um autêntico manifesto antirracista onde antes se encontrava o protótipo do macho misógino e antiquado: tufos de cabelo a espreitarem pelas golas e pelos botões abertos das camisas. Raisparta se não era a mais perfeita metáfora de modernidade e esperança na espécie. Pensando à frente do maldito Tempo, e a talhe de foice da linha do olhar do Grande Lenhador Peitoral, o Depilador do Preconceito pousou as vistas em nova erupção de pilosidade, qual Amazónia do baixo ventre. Embora uniformemente negra, quem lhe pode garantir, oh senhor no espelho, que amanhã não cai um nevão nessas partes? Afinal, a própria Floresta Negra embranquece de Inverno, não? E quem diz a Sul do Primeiro Grande Corte, também se deve preocupar com o Norte e já precaver calvícies, entradas ou suíças grisalhas. Enfim, trabalhou a máquina uma manhã inteira e muito satisfeito ficou o senhor do espelho e, com ele, feliz Agapito por ter sido tão útil.

O nome não tenho a certeza qual seja, mas pouco importa. Aquele com que a batizaram, já se vê, porque o que lhe chamavam, toda a gente sabe. A parecer cada dia mais filha do seu mais que tudo, crê-se que a Agapita é vitima de um defeito da retina que a impede de deixar de achar piada ao seu homem, num sentido sexual do termo. Pelo menos a julgar pelas humidades que se lhe puseram, pese a surpresa, ao vê-lo assim tão limpo de vegetação. Transformada em clareira a densa floresta de antes, ficava a árvore bastante mais impressionante, sem múltiplos arbustos em redor. E assim, ignorando que cada dia que passava se pareciam menos com os amantes pubescentes que a mente de Agapito cristalizara, fizeram render por semanas a fio a dispêndio em eletricidade dessa manhã.

No resto das coisas que compõem a vida, fazia-se valer das ondas sucessivas de revivalismo. A música de que gostava ora estava na moda, ora era coisa para connoisseurs, ora voltava a passar na rádio. Com a roupa, o mesmo. Era pois deste modo que a vida passava por Agapito e Agapito não envelhecia.

...

Imaginam o choque no dia em que, no meio de uma algazarra qualquer sobre bola ou mamas, com meia Tasca aos berros, Agapito se encostou calmamente ao balcão, chamou-me para perto e sussurrou:

- Oh Silva, serve aqui uma taça de 3 Marias a este teu amigo. Deixa que morra na ilusão de estar rodeado de mulheres, Marias todas, uma vez que já não chego a casa a tempo de me entregar nos braços da minha. Diz-lhe que penso nela e que morro novo.

E morreu. Do silêncio que se fez quando caiu redondo no chão, ergueu-se, passado algum minuto e tal, a voz do Velho dos Sapatos, que é o homem mais velho que alguma vez existiu e que, assim por alto, já deve ter falecido umas onze vezes - descontando fanicos e estados catatónicos - pelo que é unanimemente reconhecido como especialista no assunto:

- Epá, tão novo, tinha a vida toda pela frente, foda-se.

Lá nos vemos na capela, nós os maduros retirados cá para o fundo. A Agapita tem tudo sob controlo e sempre que o ritmo de afazeres ameaça baixar, ela inventa uma coisa nova ou vem para ao pé de nós ouvir uma laracha e beber uma mini à socapa. Outro dia deixará que a dor se abata sobre a sua cabeça, mas hoje ainda não se sente assim tão corajosa. Alguém pede silêncio e entra um padre que se posta por detrás do caixão, de frente para a audiência, rechonchudo e de bochechas rosadas, olhar indiferente e um livrinho nas mãos. Cá ao fundo um pigarreia e outro funga, mas a pouco e pouco, no entanto rapidamente, toda a congregação está em silêncio. O homem de Deus toma a palavra:

- Irmãos, estamos aqui para prestar homenagem e dar descanso ao nosso irmão Agapito Silva. Mesmo que a saudade já se instale e a Alma vos pareça doer da sua ainda curta ausência, lembrai-vos que o nosso irmão vai desta para uma bastante melhor. Viveu uma vida longa...

Tudo estragado. Ainda havia o espírito de estar em transumância ou Charon preso em algum biscate de última hora, buscar cafézinho para Hades ou coisa que o valha, o certo é que saltou o falecido de dentro do caixão, para grande espanto da audiência e consternação do prelado, para o qual se virou Agapito, com a veia da testa a latejar, todo ele muito bem rapado, da cabeça ás partes baixas, e gritou:

- Velha é a puta da tua prima, oh boi do caralho.

Soprou um beijo à Agapita - que ameaçava soltar pinguinhas nas cuecas, dobrada sobre a barriga de tanto rir - e voltou a deitar-se, muito provavelmente para sempre.

...

Keep on to the kingdom of light...






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