Cenário: Um parlamento. Em cada extremidade do palco, um coro em forma de bancada.
ATO ÚNICO
(Abrem-se as cortinas, a luz incide exclusivamente no centro do palco, num homem de calças e casaco de abas de grilo azul petróleo, com lantejoulas prateadas, e cartola vermelha, igualmente em lantejoulas. Uma bengala branca e botas de plataforma, também brancas, com solas vermelhas. Cai um microfone de fio do alto da cena. Artur Albarran grita para o microfone.)
- Portuguesas e portugueses, bem-vindos à vossa vida. Hoje, o combate fratricida, a batalha sem tréguas, a luta sem quartel, o drama, a tragédia, o horror. Legaliza-se ou não se legaliza?
Quem quer saber se os bancos já voltaram a incentivar o consumo desmedido e irresponsável, quem se rala com jogos de futebol comprados, quem quer saber das promiscuidades, do chico-espertismo, do tráfico de influências, do dá-cá-o-meu-antes-que-se-acabe, dos Vieiras, uns Silva e outros Filipe, dos Frasquilhos, dos Engenheiros, da mui rara alta costura, do Século em que vivemos, das bombas de hidrogénio, dos loucos no poder, da terra queimada? (Cala-se e olha de uma ponta à outra a plateia. Espera-se que haja silêncio.)
Ninguém, pois claro. Vamos ao que nos importa. Senhoras e senhores, meninos e meninas e selvagens de todas as idades, convosco os da Esquerda e os da Direita. (Iluminam-se os coros nos dois flancos do palco, trajando conforme será descrito. Artur Albarran retoma a narração, usando a bengala para apontar,)
No canto direito, de camisolas às bolinhas amarelas, calções verde choque e pantufa de pelúcia cor-de-rosa, os Estúpidos. (Aplausos e gritos de incentivo)
No canto esquerdo, de pijama macacão arco-íris, mais Estúpidos. (Aplausos e gritos de incentivo. Nota: garantir igual intensidade em relação aos anteriores concorrentes)
(Apagam-se as luzes. Acende-se apenas o foco superior, iluminando o coro da esquerda)
- Devemos legalizar! (Gera-se burburinho concordante.)
- Eu sou contra. (Empurram o velhote para fora do coro.)
- Se és contra, tens que sair daqui. E não podes ser contra. Se estás na esquerda, tens que ser a favor.
- Porquê?
- Olha, boa pergunta. (Conferenciam uns com os outros, coçando as cabeças) Não sabemos porquê, mas é assim que está escrito, é assim que deve ser. Já és a favor?
- Não, continuo contra. Para opiáceo já basta a religião, companheira camarada. E porquê isto agora?
- Porque diz que é melhor fazermos qualquer coisinha que nos mantenha a aura
cool que gostamos de ter. Já sabes que isto de ser Poder retira algum
glamour. Pronto, lembramo-nos do chamom.
(Uma das da trupe de macaões desce do coro, ao encontro do velhote. Fala-lhe de forma condescendente.)
- Oh, sabes, avôzinho, a malta gosta de fumar umas brocas enquanto discute coisas nas reuniões.
- A revolução? A clandestinidade? A luta do proletariado?
- Hã? Não, pá. É mais férias e onde se come bem e barato e assim. Para além de que dá um ar bestialmente progressista isto das legalizações generalizadas, tájavêr? Está bem que para ti deve ser chato, por que lá se vai a clandestinidade e depois não tens nada que dizer. Para não dar muita cana, vamos por isto da medicina. Ainda por cima, vê lá tu bem, faz sentido! (Dá uma palmada nas costas do outro.) É preciso ter sorte, hein? À pala disso, incentiva-se o cultivo, esquece-se o consumo e fica a gente à vontade. Já ando de olho numa rede de
coffee-shops.
- Então e porque não dizem logo as coisas assim?
- Olha, boa pergunta. (Vira-se para o coro, à espera de resposta. Todos abanam as cabeças que não.) Não sabemos, deve ser porque sim, o hábito de não dizer as coisas como elas são e isso tudo. Já és a favor?
- Não. (Apanha um chuto no rabo. A moça volta a subir ao coro.)
(Apagam-se as luzes. Ouve-se uma gargalhada coletiva do outro lado do palco. Ilumina-se o coro da direita. Riem agarrados à barriga.)
- Oh coisinho, que estás tu a fazer? (Um virado para outro que fuma um cigarro de enrolar.)
- A fumar uma ganza, porquê? Há que manter os hábitos dos nossos ajuntamentos, não? Acho que ainda não chegaram os franjinhas. Esses é que trazem a coca. Para já, só há disto, amanha-te. (O outro dá-lhe uma sapatada na mão.)
- Estúpido, pá. Então não vês que agora não se pode? Por causa disto da legalização. Temos que encontrar argumentos científicos contra.
- Oh, isso é fácil. Nem valia a pena ter desperdiçado erva tão boa. Diz aos tipos que aumenta as tendências suicidas e dá cabo da cabeça aos indivíduos. Parece que ficam com uma gandamoca, pronto.
- Ou então bêbados. O vinho também fájisso, poi'faz?
-
Ya, bem visto, foda-se. Mas fica a pessoa agarrada à droga, é uma chatice para se ver livre daquilo.
- Como com os antidepressivos, calmantes, analgésicos, soporíferos e
tutti quanti?
-
Ya. E o vinho. Foda-se. Olha lá, então e se fossemos a favor?
- Não podemos. Se fossemos a favor tínhamos que estar do outro lado, não podíamos estar aqui à direita.
- Porquê?
- Olha, boa pergunta. (Conferenciam uns com os outros, coçando as cabeças) Não sabemos porquê, mas é assim que está escrito, é assim que deve ser. Porque sim, o hábito de não dizer as coisas como elas são e isso tudo. Já percebes?
- Não.
- Então és comunista. (Dá um chuto no rabo do outro.)
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