sábado, 19 de dezembro de 2020

Eu joguei à bola com o Samuel!

Gamado em Portugal 80s Metal


Se fosse um filme, talvez a vista fosse da estratosfera. 

                                                         (Meh, mais para cima. Isso, mais para cima. Recomecemos.)

Se fosse um filme, abriria com uma imagem da superfície vista da mesosfera - vá lá, a mesosfera está muito bem, chega perfeitamente para o propósito - e a câmara desceria a velocidade vertiginosa, quebrando a barreira do som e ignorando a estratopausa, detendo-se abruptamente

                                   (Defina-se abruptamente: um salto de bungee sem ressalto. É este abruptamente)

                                                     sobre um pátio de cimento perdido no meio dos prédios que se amontoam ao calhas. Uma espécie de clareira sem serventia de qualquer espécie, dado o aviso sério no momento do aluguer: não é para utilizar! Porquê, nunca saberemos e nunca souberam os arrendatários. Talvez fosse, seja, uma mera pausa urbana. Um improvável suspiro de betão, o alvo perfeito para uma câmara que descesse vertiginosamente da mesosfera, à procura de um local para se deter. Abrupta.

                                                                 (É sobre pátios, isto? Para inicio já vai quase a meio. Adiante!)

Dois miúdos comunicam-se sem se ouvirem, separados por metros horizontais e verticais. Digamos que se gesticulam na diagonal. Por sorte, sabemos a idade exata de ambos: o da marquise de baixo, rente ao pátio, tem 12 e o outro, o da marquise de cima, penúltima do prédio vermelho, tem 13, embora seja consideravelmente mais baixo. 

Acontece que o dilúvio dos últimos dias parece ter tirado uma folga, como que encontrasse o seu próprio pátio inútil, e isso talvez abra uma janela de oportunidade para que se cumpra o planeado jogo grande. O que se dizem, mais por quererem crer do que por honestidade intelectual, é que já não chove assim tanto, está bom até, bem bom, um dia de praia quase, um pouquinho nublado talvez, mas esta cacimbazinha até ajuda que isto não é para meninas. No fundo, estão a fazer figas para que não volte o granizo ou os pingos grossos que fazem barulho e que chamarão a atenção das mães no exato momento em que gritarem "xauxau, é hoje o jogo e já venho, está um calor do caraças". Se lá fora houver um pingo de silêncio nesse instante, passarão despercebidos e safam-se com um "isséonde? vais para a escola a um sábado? se fosse para estudar... vê lá não te magoes e ai de ti que chegues tarde". As mães têm mais o que fazer, já se sabe, mas são bichos muito atentos aos barulhos. Se lhes parece que caem pedras de gelo do céu, tendem a embirrar bastante com os petizes que se aprestam para sair de casa em calções, manga curta, meias pelo joelho e sapatilhas de lona. Mormente ao fim de semana.

           (Eheheh, agora pensei: chuteiras. Vê tu o disparate, serem sapatilhas de lona não era nada mau.)

Paulos os dois, mas o mais pequenito só responde pelo nome nas chamadas dos professores e no pouco tempo em que tem companhia em casa. No resto dos dias é Cuca. Estupidamente alegres e aliviados, encontram-se na esquina e iniciam a subida. Será sempre a subir nos próximos 15 minutos e depois uns 5 a descer, até à Escola Secundária da Falagueira. Estes vêm do lado da Brandoa e são os únicos desta proveniência. Se nos pudéssemos afastar desta condição de narradores observadores - e não podemos, é certo - perceberíamos quão irónica seria a preocupação daquelas mães com o estado do clima, a roupa ou uma ou outra canelada bem assente num jogo de futebol, tendo em conta que os seus rebentos crescem á solta e por sua conta nestas ruas. Que são suas. E é seguramente isso que os fará sobreviver, ou não, aos anos que faltam para as largarem. Ou não. Outros virão do lado da Amadora, percorrerão o Bairro do Bosque, a Falagueira, meterão os pés na lama do caminho recém aberto, até entrarem pelo portão principal. Do outro lado, o portão é secundário e já tratámos - digo, trataram - de o violentar as vezes suficientes para que permaneça eternamente aberto. Como se quer, afinal esta é a casa do conhecimento e deve estar sempre de portas escancaradas.

É o primeiro jogo do primeiro campeonato do primeiro ano de funcionamento da ESF. Estranhamente, o que nos traz a esta memória estupidamente - e surpreendentemente - vívida, é música e não futebol. 

A escola vai do sétimo ao nono. Quem não souber a enorme diferença que vai entre os 12 e os 15 é porque teve uma infância muito esquisita. Isto decidimos nós, narradores observadores e, por inerência do cargo, gente que manda nesta prosa.

Sabemos a idade dos nossos, diremos dos outros que são o nono uma merda qualquer, provavelmente uma letra. De um lado a Associação Recreativa dos Desvalidos e Enfezados da Vida, do outro o Sport Clube Matulões Namorados das Gajas Boas Todas. O maiorzito dos nossos Paulos é um Cuca em comparação. Mas é canalha que enfrenta a chuva e que todos os dias mete os pés na lama. Se vêm do lado destes, aprenderam o caminho por entre os buracos de esgoto sem tampa, sob o lençol de água que os cobre em dias de chuva. E o que tem chovido, senhores.

                            (Já que falas nisso, havíamos de ter t-shirts a dizer "Eu sobrevivi à ESF". Espera, espera, melhor: "Eu fui o primeiro a partir um vidro na ESF". Ah não, foda-se, isso foste tu.)

Os bonzões passaram metade do jogo a recuperarem da surpresa de os pequenitos terem sequer aparecido em numero suficiente para jogar, outro terço a tentarem sacudi-los das pernas, enquanto procuravam a bola no meio das poças de água no saibro. No terço que falta, marcaram, salvo erro, dois golos e sofreram um, sabe-se lá como. Fim. 

Regressam a casa saídos direitinhos das 20.000 Léguas Submarinas. E isto tudo não interessa para nada. Até porque um dos nossos reencontraria um dos deles, anos mais tarde, na final de outro campeonato muito mais sério e ganharia tranquilo. Embora a partir do banco, mas quem é que está a reparar?

O que nos importa mesmo é que um dos Matulões se chamava, sabemos hoje, Samuel Lopes. Irmão de João Carlos Lopes. Naquele campo de saibro, cheio de poças e lama, num ambiente de autêntico desastre aquático, inadvertidamente, tinha o primeiro contacto com algo que viria a ser uma parte importante da minha vida e de quem sou: Heavy Metal

Se o Samuel já sabia na altura que seria baixista dos Satan Saint's, não faço ideia. Assim como não sei se o João já tocava baixo ou se tinha noção de que seria membro dos míticos STS Paranoid.

                                          (Fast forward to Pigalle, por favor)

...

O Café Pigalle, na Amadora, era o poiso da malta da Secundária e dos metaleiros em geral. Diga-se que a Linha, que não a benzoca de Cascais, mas a clandestina de Sintra, era - é? - uma autêntica incubadora de bandas. Daria origem, e fica já aqui o spoiler, à maior banda da história da música portuguesa. E isto não é aqui o estúpido a exagerar.

A Falagueira ficara para trás no 9º Ano, sendo que o oitavo marcaria a conversão definitiva desta Alma ao metal pesado. Chegar à Secundária da Amadora e, ainda mais, ao Pigalle, era como ser admitido no Paraíso. Bebíamos cerveja, jogávamos snooker, trocávamos cassetes, invejávamos as importações de quem conseguia discos de jeito e conversávamos com gente das bandas, com admiração e uma pontinha de inveja. E sim, havia muita droga disponível, tanta que não tinha aquele encanto de "coisa proibída", era antes o mais vulgar, a regra. Talvez me tenha valido já este espírito embirrante de não querer fazer o mesmo que as maiorias. Uma espécie de gajo cagão, vá.

Do Pigalle partíamos em bando para a estação, enchendo as gaiolas dos comboios, espaços onde os picas preferiam não entrar - putos estúpidos, de napa preta, pulseiras e braçadeiras de cavilhas, longos cabelos alguns e muito haxixe - em direção ao apeadeiro do Rego e à nossa outra casa: o Rock Rendez Vous. 

É muito provável que tenhamos sido nós a perder a nossa sala, pelo que sofria a vizinhança nos dias das sessões Metal Army e afins. Íamos ao Rock para afirmar uma cultura, para confrontar e chocar nas ruas, para partilhar em irmandade dentro das nossas paredes. Reparem, Portugal em meados dos 80's: tínhamos um sítio que organizava festas onde íamos para ouvir música a que não tínhamos acesso e, em encanto, ver vídeo-clipes e filmes de concertos!

Daqui nasceria a ideia do Metal Lusitano, uma série de concertos com as grandes bandas da época - Tarântula, STS, Satan's Saints, Procyon, Black Cross e outros - que daria origem ao primeiro álbum do Metal Tuga, um duplo ao vivo, resultado das referidas atuações. 

Perdi os Satan Saint's, o Samuel que me desculpe, mas estive em todos os outros, arranjando 300 escudos à semana, poupando na comida no bar e na cerveja no Pigalle, para celebrar ao sábado à tarde. Sim, era à tarde. O disco nunca foi editado.

... 

Toda a experiência dessa época não pode ser resumida aqui. Há um livro à espera de ser escrito sobre o que foi viver aqueles tempos e tenho consciência que muitas das referências deste texto não farão sentido para quem não esteve lá ou para quem não viveu naqueles locais. Mas esse não era o propósito, a ideia era apenas explicar que, ao contrário do que é habitual na nossa frágil lusitanidade, a música da minha vida tem raiz nacional. É claro que a as primeiras músicas que ouvi eram Maiden e Scorpions, a minha banda favorita - até porque alinhava com a rebeldia da persona - eram os Motörhead, mas a vivência eram os STS no Rock, os V12 e os Ibéria no Ferroviário do Barreiro, o Festival no Central Park da Amadora. E era feliz.

Estes passeios pela Memory  Lane deixam-me sempre - quem não? - nostálgico qb. 

Lembro-vos a todos, irmãos. Lembro-me do gajo meio anão e coxo, mais velho do que nós, que respeitávamos e admirávamos sem reservas, pelo que sabia da música, das bandas, pelo gozo que nos dava falar com ele e também porque nos pintava os olhos à Alice Cooper ou o rosto como o King Diamond. E depois íamos para o meio de centenas de pessoas e suávamos; e apanhávamos os transportes públicos para casa no inicio da noite; e aquela merda esborratava toda e escorria e a mãe quase lhe dava uma apoplexia quando me abria a porta. E um estalo, isso também dava.

Eu joguei à bola com o Samuel e cresci nas mesmas ruas que o Fernando Ribeiro. Eu cresci no metal e na Brandoa, como a maior banda de todos os tempos da música portuguesa: os Moonspell. 

Deal with it! \m/

...

Quem tiver interesse em saber - ou reviver - mais sobre estes épicos dias, não pode deixar de visitar o blogue Portugal 80s Metal e o canal Youtube MetalPortuguêsTV.


segunda-feira, 18 de maio de 2020

CLSVO III

É importante que o braço esteja de fora, de modo a que os dedos possam tamborilar na carroçaria, enquanto o vento lhe dá em cheio na bigodaça. Nos velhos tempos, teria um Gold Leaf preso no canto da boca, cruzando Jalalabad Stadium Road, as raparigas do Medical College refletidas nas lentes espelhadas e os Strings a ecoar nas quatro Kensonic, duas à frente e duas atrás, para escândalo dos transeuntes. Ah, lembra-se bem, sempre com o ferro quente da saudade a traçar-lhe o contorno do externo. 

Apesar de tudo, não gosta muito de se perder nessas recordações. tem um estranho carinho por aquele condutor, que é ele próprio, já se sabe, mas, ao mesmo tempo, é outro que o seu novo eu, o seu verdadeiro eu, louvado seja Deus, desprezaria pela futilidade. Seria até digno de pena, quando  não de alguma raiva, tal era a distância que guardava para a palavra do Senhor, pesem embora as cinco orações escrupulosamente cumpridas todos os dias. Era como lavar os dentes, uma coisa que se faz mas cujo significado profundo nos escapa tanto que acabamos a pensar que não tem um. Até nos doerem os dentes.

Esse era aquele que passava a noite em Upper Adda, rindo entre amigos, cuspindo fragmentos de osso de galinha, do pulao, vestido à ocidental para se confundir com os estudantes da Azad Jammu & Kashmir University e segui-los em romaria, para gelados e kulchas, na Rahat Bakers. Ou pizzas no moderno Houston Cafe, com os seus sofás brilhantemente vermelhos e as grandes janelas para a rua. Paredes meias com as barracas dos mecânicos, a cheirar a merda e borracha queimada, onde os empregados se aninhavam no chão, passando os olhos por sonhos de pãezinhos frescos, com sementes de papoila por cima, e chá verde com amêndoas e pistachios. Apenas para acordarem para mais um dia de fome e óleo e fumo de escape.

Até à noite em que um funcionário do Dubai Islamic Bank lhe mostrou uma fotografia do Burj e a existência passou a fazer-lhe um sentido inversamente proporcional às ruas esburacadas de Muzaffarabad. A partir desse momento, todas as noites se imaginou, pequeno, a contemplar o edifício, até onde os seus olhos de humano permitissem, ali mesmo da praça, à saída do Dubai Mall

É certo que entretanto casou e nasceu a pequena Azari, mas tudo se passou como se assistisse a um documentário sobre a sua vida. Ou estivesse a ver um filme no Neelum Theatre, antes do terramoto, quando havia cinema. E é talvez por isso que a distância lhe dói menos do que sente que devia. Puxando a fita este pouco atrás, uma vida só, até ao dia da despedida, poderíamos notar o ar resoluto com que enxugou as lágrimas da filha que não sabia se voltaria a ver; e a certeza na promessa à mulher: mando dinheiro. E toda a gente lhe disse adeus da soleira da porta, com admiração, como se estivesse a entrar na camioneta para Srinagar, carregado de todos os explosivos que iriam libertar os oprimidos do outro lado da Linha de Controlo. 

Azadi, azadi, gritariam pelas ruas, segurando cartazes com a fotografia de Abdul Azim Dukakis e fazendo avançar um caixão vazio. Porque o corpo do mártir se fez em fogo de artifício, para grande honra de todos os seus. Com sorte, a interferência do Senhor desviaria a atenção dos soldados do lado indiano na Passagem de Wagah e, enquanto os hindus gordos se rissem defronte dos seus televisores Onida, as forças de libertação entrariam imparáveis na terra ocupada e expulsariam os infiéis e todos lhe agradeceriam e o Presidente dava-lhe uma medalha tão grande que poderia comprar o Burj com ela. 

Afinal, por qual trejeito da mente não importa agora, estava bem vivo e numa peça só, a caminho da terra prometida, usando, por fim, o shalwar qamiz que o igualaria a todos os outros escravos no bojo do negreiro alado. Allahu Akbar.

...

Navega os quarenta e muitos graus do deserto, as rodas coladas ao asfalto negro, riscando a areia amarela, infinita, os vidros abertos, a poupar o ar condicionado, e as pouco potentes Pioneer dizem-lhe today's another day to find  you, shying away, e tudo isto é capaz de ser pecado mas enche-lhe o coração de uma inesperada alegria, à medida que vai deixando para trás os edifícios de habitação dos subúrbios de Xarja. Passará ao largo dos arranha-céus de Ajmã, a nova Dubai - de dentro da mente alguém lhe grita: kafir! - de olhos postos nas ondas de calor que desaguarão no golfo, sim, mas em Al-Khaima, o último Emirado.

A experiência diz-lhe que o Waldorf é claramente sobrevalorizado, se vamos falar de resorts. É por isso que se dirige invariavelmente para o Hilton, o Beach & Golf em Al Hamra. É mais pobre, que é, mas tem mais brancos. Não é a transportar emiratis que um pakistani segura o emprego e dá de comer a três gerações de familiares. Desde logo porque só por milagre - Alá é o Maior - precisariam de transporte, depois porque estaria a uma respiração errada de uma queixa à central e de um voo só de ida para Islamabad. 

Os brancos não pensam muito diferente, mas têm talvez o peso da culpa na consciência e procuram, ao menos, mostrar-se simpáticos. Com alguns até se pode falar, com as devidas distâncias e suportando a ignorância inerente a qualquer kafir, sobretudo a estes que se julgam mais instruídos do que todos os outros e que das coisas verdadeiramente importantes sabem nada. Basta perceber que vêm aos magotes ao tilintar do ouro, como o resto dos desgraçados, e chegados a uma terra que, embora vá perdendo o rumo, é ainda do Profeta, a primeira coisa que aprendem do Ramadão é a dizer Eid.

Cheira a maresia. Um odor que só aprendeu deste lado do Golfo, mas que de certeza era muito mais intenso do lado de lá, em casa. O erro no Golfo é apenas natural em alguém que nunca tinha visto um rio tão largo. Se vamos lá pelo cheiro, é bem provável que cheirem ao mesmo todos os Golfos, pelo que se considera, para os efeitos apropriados, francamente desnecessário meter-se o leitor mais atento em trabalhos de pesquisa geográfica. Um de Omã, outro Arábico, para Abdul Azim é tinto. Que, já que se toca no assunto, não bebe. Haram.

Nos momentos em que não definhava em suor na cozinha ou fingia dormir, para enganar o corpo, num catre na cave do hotel, procurava tornar-se invisível no meio das multidões na marginal de Jumeirah, como um cão vadio com medo de ser pontapeado. Deixava inundar os pulmões com o que conseguia apurar de ma, por entre o cheiro a batatas fritas,  a gelado, a frutos secos a caramelizar a la minuta. Ao lusco-fusco, quando os brancos - alguns brancos são negros - se começavam a retirar para o resto dos seus afazeres, vermelhos como as lagostas do buffet, sentava-se na areia, tão longe quanto possível dos varredores de areia, beijava, por hábito, a foto da mulher e da filha e lia muito baixinho alguns versos. Alguém que tenta não incomodar. Ao que chegámos: os versículos do Profeta lidos baixinho, numa terra sua, onde os seus filhos são atirados para caves imundas, nos palácios onde os infiéis vêm folgar, por irmãos maléficos que temem a sua revolta. E assim os esmagam sob o peso das suas grandes patorras besuntadas de petróleo. Ah, todas as raças deviam ter uma lenda como esta.

E de toda a inveja, fedor, derrota e saudade, só no Livro encontrou paz. A essa paz se consagrou o hoje taxista Dukakis, da companhia Al Hamra, posse do estado. Para olhos pouco treinados nestas coisas da ascensão Divina, podemos até considerar que não é grande paga para a devoção passar de uma cozinha em Sheik Zayed Road para um volante no deserto. Limitemo-nos por ora a contar o que vemos e ouvimos, sem nos imiscuirmos nos assuntos de espírito das pessoas, sim? 


sexta-feira, 1 de maio de 2020

CLSVO II.1

Repara, tu não tens que saber quem era. Também não tens que ser esclarecido acerca dos motivos que me levaram a fazê-lo, ignorando-te. Não tenho como saber, mas se estás a pensar se podes ser tão insignificante que nem tenha percebido estas implicações, deixa-me informar-te, sem qualquer orgulho, que há uma bela probabilidade de estares completamente certo. Meu telefone, minha vida, meu problema, andor. Ou então passa-se tudo na minha cabeça e tu estás completamente a marimbar-te. Como eu.

De qualquer maneira, terei que me levantar, tentar descobrir onde é a casa de banho, onde estão as minhas roupas, a carteira e os sapatos. Ficam sempre juntos, a carteira e os sapatos. É estranho porque nem sequer penso nisso. Acontece e pronto, é tudo. Só preciso de encontrar um sapato e já sei que a carteira está ao lado. E sim, devia ter desconfiado que o chão estaria frio e que não faço puto de ideia onde possam estar as minhas meias.

Devemos ser honestas e enfrentar os factos, a culpa acabará por ser sempre relativa e vamos lidar com ela com a mesma tranquilidade das outras vezes. Uns dias mais aguda, outros menos, mas será só mais uma a encontrar o seu canto escuro e a anichar-se, tornando-se parte do cenário, até que alguém - na maior parte das vezes alguma coisa - a venha espicaçar e ela acorde meio estremunhada, à procura da puta da casa de banho.

Ninguém diria que era um apartamento tão grande. Ainda me deparo com alguma mãe velhota numa cama de grades, à espera que lhe mudem as fraldas, credo. Seria uma surpresa, já que, se bem me lembro, não era só medianamente giro e cumpria os mínimos do sentido de humor, também parecia bastante resolvido. Enfim, pouco importa, até porque cá está ela. Vamos só respirar fundo antes de abrir a porta, uma rápida prece ao Senhor do Asseio, ao Santinho do Detergente com Lixívia, e depois tentar não gemer alto quando começar a Festa da Descompressão na bexiga.

Tudo isto é bastante menos estranho numa casa conhecida. Mesmo que seja pequena e mais ou menos velha, como a daquele que agora não nos dá jeito nenhum estar a lembrar. A pessoa habitua-se e de tanto lá estar é como se fosse nossa, não é? Por outro lado, assim tem um lado sórdido que havemos de confessar que é muito excitante. Não é esse excitante, parva. É o outro, o mais excitante que esse. Embora não tenha sido tão mau como supúnhamos. Muito ajeitadinho até. E tem elixir! Aí está uma coisa que qualquer gajo que tenha uma centelha de esperança de levar uma moça de bem para casa devia sempre ter. Ou então escovas de dentes descartáveis. Gostamos do nosso gado prevenido e limpinho, hein? Que parvoíce, não devíamos rir disto. Ah, caga, temos demasiado tempo para esmiuçar todos os pontos podres e mal cheirosos da situação. Por agora, mantém-te leve, rapariga.

Já jantaste! Sim, já jantaste! O que tinha para me dizer era: já jantaste? Tcharam! A estas horas da noite, sem saber onde possas estar, ou com quem, ou a fazer o quê, o que quero mesmo, mas mesmo, mesmo saber, é se já comeste. Mas sou alguma mula que passa os dias a enfardar? Está certo que podia muito bem não lhe ter ligado, mas o hábito é fodido. Isso e não saber das meias. Gosto tanto delas.

Olha meu lindo, foi muito engraçada a tarde e a noite e tal, mas não é como se tivesse sido um sonho e agora o que me apetece é ir para minha casa, tomar um banho muito longo, lavar-me dos copos e dos cigarros e de ti. Lamento desiludir-te quanto a essa expetativa de agora estar pelo beicinho e não te largar a braguilha. Mesmo que estejas a torcer-te todo para que não transpareça, acredita que eu sei. Não, não foste o melhor que já tive, nem lá perto, e não, também não és assim muito abonado. Não leves a mal a sinceridade, a minha intenção não é achincalhar-te, mas essa pose de garanhão sentado no sofá, em tronco nu, o semi-sorriso simpático, o desconforto empático - estás a fingir, cabrão? - como explicar? Irrita-me, é isso.

Porque eu saio e os milénios de educação genética vão deturpar o que aqui se passou. E vais achar, talvez até comentar com um amigo, que tiveste uma sorte do caraças e engataste uma gaja bem gira - a modéstia é para os medíocres, querido - e a trouxeste para casa. Pois ficas informado que o teu T2 - muito jeitoso, por sinal - serviu de pensão rasca e a puta eras tu. Ainda por cima, pagaste.

Portanto, o que é que estás a dizer? Ai foda-se, é que está mesmo a falar! Podia tanto ter-se deixado ficar caladinho, eu ia à minha vida e todos felizes. Espera lá, deixa prestar atenção, não me distraias agora. E não largues a porta, deixa os dedinhos firmes na maçaneta que é como se já estivéssemos no elevador, miúda.

- Desculpa?
- És casada, não és? Eu ouvi o telefonema, como deves calcular...
- ...
- Não é comigo, tens razão. Volto a ver-te?
- Claro que não. Ah, um dia destes aparecem por aí uma meias. É para estares avisado.

...

Honestamente, esta relação sem sal convém-me, do ponto de vista da liberdade: horários desencontrados, interesse diminuto, culpa minguada. Não tenho outro remédio, senão aceitar este instinto, este gosto pela adrenalina da caçada, rodear a presa, senti-la ceder ao mesmo tempo que pensa, pobre diabo, que o dia é dela. Podíamos agora teorizar à volta do custo da mentira - que minto, não vou mentir - mas será que vale a pena? É como perder tempo a analisar o mecanismo de distensão de um saco de plástico. Distende, pronto, vamos fazer o quê? 

Por outro lado, não me parece que ele se preocupe demasiado. Se me ponho a pensar nisso, quando é que houve qualquer coisa semelhante a paixão? Como chegaremos a brasas confortáveis se nunca se acendeu a fogueira? Ah, dane-se, saltemos assim de fogo fátuo em relâmpago repentino, para depois voltar apaziguada ao velho assador de sempre. Apagado. E pronto, está tratada esta culpa menor, refastelada no seu T2. Mesmo a tempo do metro quase vazio, como sabemos que acabaremos enquanto envelhecemos. 

Serenamente cinzento, o nevoeiro descerá sobre o mundo, como poeira a semicerrar-nos os olhos. Descerá, enquanto se escorre o Sábado.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

CLSVO II

Se fosse um jogo de adivinhar, tiraria, ao menos, algum proveito em diversão. É muito divertido jogar, mesmo quando se joga sozinho. Não é assunto para agora, mas é inegável que ainda que jogue em circuito fechado este jogo de um, tomo partido e escolho um lado. E no fim ganho Eu contra Mim. Ou perco, depende do estado de espírito.

Adiante, não é consciente, acho eu, esta coisa de saber o propósito, a intenção, o que se esconde por detrás do que dizem e até do que não dizem. E é absolutamente frustrante tentar explicar-lhes que percebo porque ficam furiosos, como miúdos apanhados na sua mentira, na incongruência do seu argumento adolescente ou na armadilha da falsa piedade, da bondade a metro, do desapego material de barriga cheia ou do conhecimento profundo que sai como verniz, basta esgravatar um pedacinho.

As coisas vão de mal a pior porque não coloco sequer a possibilidade de estar redondamente enganado. Imaginemos por um minuto - vá, hipótese académica, cala-te, deixa acabar o raciocínio - que falho completamente. Não sabes o que está a pessoa a pensar sob aquilo que expressa, muito menos como se sente em relação a ti ou aos outros. Façamos de conta que as fraquezas expostas não buscam apenas colo, que existem e que há quem não se dê ao trabalho de as esconder e busque honestamente alivio nessa partilha. É claro que não estamos no território da intimidade muito intima, dos amantes, dos irmãos, dos filhos, dos amigos muito próximos
                                                                                                        (cinco, numa vida toda? admitimos o número para a nossa tese? ou deixamos passar como irrelevante, por conveniência do momento e porque, se foda, é a minha voz a conversar comigo e diz o que bem me apetecer?)
                                                                                                                                   é mais no âmbito do jantar com gente que mal se conhece, da rede social, das plataformas quotidianas, o elevador que seja, em que buscam reconhecimento, ainda que por um estropio da Alma, do conhecimento ou do corpo.

Empatiza, anda lá, deixa-te de ser cagão, junta-te. Buscamos, pronto, buscamos, satisfeito? Não me lixes, não é como se escondesse que me agrada, pois não? Mas desta maneira? Em bastando juntarem o molho instantâneo do momento e assim é o seu gosto ? Argh, tu por favor avisa-me se me apanhares nisso. De resto, nenhum receio em reconhecer perante ti, mim, que é bom que me apapariquem. Aliás, porque raio estaria a perder o meu tempo com aquilo do suposto romance se não fosse por esse motivo? Ah a urgência da criatividade, o apelo da veia do escritor. Deixa-me rir, essa história não é tua. Mas qual apelo, amigo? Esforço, muito esforço para vencer a preguiça. Tanta coisa que me apetecia mais - e, por inerência, te apetecia mais também - do que horas à volta de um provável chorrilho de disparates que nem sabemos lá muito bem para onde se dirige.

Oh, está bem, deixa lá, não era este o tema. Se te faz feliz que confesse, que me confesse, também não é por aí que nos zangamos. Dá gozo. É como um 2 Cavalos, demora um bom bocado a arrancar, mas quando entra naquela velocidade de cruzeiro a vapor, desliza suavemente. Para além de que ajuda a ocupar os dias. Pronto, serve para ocupar o tempo que não é de noite e se trabalha, se é que podemos chamar trabalho aquilo.

De todo o modo, o que dizia é que não se trata de um jogo de adivinhar. Espera, tenho que atender. Temos. Sim, mesmo com pouca vontade. E podes tirar esse sorriso parvo, uma vez que nem cara tens. De plástico somos todos. Se queres brincar de novo à honestidade brutal, vamos a isso. Avançamos mais uma vez, correu tão bem de todas as outras, não foi? Não, não, agora fazemos isto como deve de ser e não me voltas a chamar cínico. A nós.

Olá, desculpa mas agora não me apetece falar contigo. Até porque me parece evidente que me ligas a esta hora por mero hábito. Que temos para dizer que seja diferente de ontem? Não te incomodes a responder, eu sei que nada. E de momento não me consigo obrigar a esta conversa de circunstância, ainda para mais a ter que fingir ser doce, por inerência da relação que nos atribuímos. O que eu mais queria era que tu simplesmente reconhecesses este facto, sem tretas, e não levasses a mal. Manda-me um sms a dizer que queres foder e a combinar horas. Sabes o meu horário, olá se sabes, não pode ser tão complicado assim programares o teu dia neste sentido. O meu está definido e haverá sempre esse tempo para nos enfiarmos na cama. Depois podemos ficar em silêncio até eu ter que sair para o trabalho. Porque raio havemos de nos exigir embrulhos para isto? Que necessidade de acrescentar coisas, momentos, ligações, correntes, para lhe darmos uma forma com menos arestas? Isto é algum ovo de Páscoa? Gostamos de nos meter nas cuecas um do outro, talvez porque não tenhamos paciência para procurar diferente. Pode ser só assim?

Vês? É a culpa que desce, esticando os seus longos e escanzelados braços, como uma sombra na parede, e nos envolve a todo Eu. Raios me partam se sei se é pelos outros ou por nós. Se bem te lembras, nunca descartámos completamente a possibilidade de ser somente a nossa incapacidade de lidar com o facto de não nos terem na melhor conta possível. É mesmo muito provável que nos limitemos a não querer sequer pensar. Fica assim: é para não magoar alguém que nos deixamos embrenhar em tantos faz de conta, até tudo ser apenas uma consequência e já não ser preciso preocupares-te. Ah a minha bela vida, à qual te condeno porque és Eu.

Vem, deixa que nos abrace, que nos afague o alto da cabeça, apertando-nos com força o peito, de medo e de raiva. Sentes como é familiar esta culpa que nos explicaram com tanto detalhe que já não a distinguimos de nós? De Mim. O telefone.

- Olá, amor. Não, não, quando atendi já tinhas desligado. Estava a acabar de fazer a barba. Sim, são quase horas de sair. E tu, já jantaste?

...

Honestamente, esta vida de turnos convém-me, do ponto de vista da ambição: um ordenado pequeno, um apartamento a condizer, um carro muito velho, um ou dois amigos muito longe, a família dentro do telefone, mesmo os mortos, uma namorada estranhamente bonita e os horários desencontrados das pessoas. Até gostamos de pessoas, sobretudo lá nas suas lufa-lufas. Por outro lado, é muito inconveniente quanto às desculpas: tenho tempo para o livro, não há vizinhos barulhentos, nem dramas de faca e alguidar com mulher e filhos e o Diabo a quatro.

Em resumo, deveria ser não só mais feliz, como também mais bem sucedido. Está claro que estamos aqui a adotar os critérios de avaliação mais populares. Digamos que estugar agora o passo,  compensando os 2 minutos que não deveríamos ter perdido a fumar um cigarro à porta do café, para conseguir apanhar o comboio, não é o mesmo que inspirar fundo antes de entrar numa reunião muito importante. Mas caramba, aposto que consigo apanhar o suburbano e não tenho a certeza se o senhor doutor não acaba no olho da rua. Corra-lhe mal a apresentação e quero-me rir. Upa, mesmo a tempo, já pode sair da linha quatro. Incha.

Calmamente, o mundo regressará ao seu tom cinza. Que é como quem diz pó. Regressará, mal se escorra o Sábado.
             


sábado, 4 de abril de 2020

CLSVO - I .1


...

Se fossemos mais do que meros observadores passivos, imaginemos antropólogos ou outro qualquer logista, teríamos tido a sorte de apanhar o CLSVO no seu melhor dia. Sabemos que sétimo é o filho clarividente, a onda final, sete os escorpiões de Isis, as plêiades - bem boas, por sinal - sétimo o dia em que Ulisses deu com Calypso e em que o Senhor descansou.

Pelo contrário, perante os nossos impotentes olhos a vida borbulha. Tomemos a vista de um hóspede num apartamento mais elevado do hotel em frente. A varanda acima do muro do CLSVO, o cigarro a queimar lentamente enquanto o café arrefece. Ah os dias de chinelo de dedo, um calção qualquer e cotão no umbigo. Mais cedo do que o resto dos comparsas deste veraneio, aproveitando dois ou três momentos de si próprio, sem ter que gargalhar ou emendar ou instruir ou puta que pariu mais os papéis que lhe estão atribuídos, por Graça de um Deus. Nesta solidão, pode sentir sem culpa que lhe comicham os tomates, soltos na cueca de rede embutida nos calções. Pode coçá-los, essa é que é essa, sem se preocupar com mais nada senão o alivio. Deixar o pensamento assim, boçal, vazio, bestial, e os olhos, elétricos, a varrerem o território. A mente canta-lhe: up here in space, i'm looking down on you. My lasers trace everything you do.

Entra-se por uma passagem estreita, espremida entre a parede do Restaurante e um muro sem serventia. À esquerda, a Ilha dos Gelados, com o seu metro quadrado de relva amarela, onde se apinham os velhos de lenço na cabeça e banquinhos articulados de assentos às riscas, à sombra de uma palmeira antiga. Por detrás dela, a loja ínfima das guloseimas e pedaços de gelo com muito corante. A Meca dos bandos de pardais, quais putos à solta. Ou talvez seja ao contrário, por vezes falha-me o Ary.

Para a direita o País das Escadas, mesmo em frente às grandes portas de caixilharia de alumínio da sala de refeições, eternamente vazia. As escadas, seis degraus corridos em três metros de comprido, são a terra dos escorraçados. Das famílias que vieram atrasadas ao chamamento da espreguiçadeira, dos banhistas arreliados com os seus descendentes, dos descendentes fugidos dos seus arreliados progenitores, dos bandidos que entraram sem cartão, aproveitando um momento de distração dos zelosos funcionários, e dos nómadas. Aqueles que vêm logo antes de almoço, com sacos de plástico cheios de pão e geleiras com bolas de queijo e cervejas mini. E comem às escondidas, benzendo-se em pecado, cabeça ao alto em busca das forças militares da Esplanada, e a Alma, perdida para sempre, a repetir-lhes em letra de forma: "Não é permitido o consumo de bebidas ou comidas ou outros quaisquer mantimentos do corpo, senão os adquiridos no nosso Templo, ámen". Dos que trazem sandes de chouriço para os petizes e lhas dão dissimuladas entre um mergulho e uma chapada e os mandam ir comer para longe. O País das Escadas é um campo de refugiados abastados, uma Alcatraz de prisioneiros pouco perigosos, paredes meias com a Esplanada, Zona 1.

É logo outra vida, outro planeta. O colorido amarelo dos chapéus de Sol chá gelado, a contrastar com o vermelho desbotado das mesas e cadeiras de cevada e lúpulo. Ali postadas em pleno cimento, vanguarda das suas irmãs finas, em tábua de madeira, que se abrigam no alpendre elevado do Restaurante. Se nas primeiras é o bulício dos salpicos, a revoada de toalhas molhadas, as banhas a cobrirem as cuecas dos biquínis nas posições sentadas, o tilintar das garrafas de cerveja; mais acima é o reino do páreo, do chinelo de piscina com pêlo farfalhudo, dos óculos no topo da cabeça, cabelo amarrado em rabo de cavalo e o som suave do gelo a rodar nos copos de gin. Só as banhas permanecem, mais discretas, sob o olhar invejoso dos escadistas que se atrevem a deambular pelo CLSVO.

A fronteira é delimitada por mais caixilharia de alumínio e vidro simples, atrás do qual se ofusca o self-service dos gringos com pensão completa e as mesas interiores para hambúrgueres, cachorros e pregos em prato, bitoques se vos for mais conveniente que estejamos a Sul. Da entrada até este exato local, o Restaurante está nas costas de toda a Vida. Escondido pelos seus vidros, mas omnipresente no quotidiano de todos.

Digamos que vimos subindo em intensidade e poderíamos culminar aqui, em Bar. Os gritos e a azáfama de um bazar, sobre o fundo quaternário - tlim, zuishh, troc, zuishh - da registadora. Na sua simplicidade maquinal, é o Santo deste Altar. Ali, de frente para todos, ainda que seja as costas que lhe vejam, Senhora de todo o espaço, Dona de toda a atenção, Meca, Belém e Lumbini, ponto de confluência ecuménica de todos os homens. Como este que pinga sobre o balcão das imperiais, sejam finos se esta geografia for Norte, sem ponta de dinheiro que se veja, mas sorriso rasgado e cumprimento cúmplice ao pessoal encarregado, pois claro que passa cá a pagar ao final do dia, nem se fala mais nisso. E sai em passo semi-dançante, ginga tropicália, pelo meio das espreguiçadeiras, em gincana, copo de vidro - hã? como assim, de vidro? o plástico quando nasce não é para todos? - elevado, evitando os guarda-sóis baixados pela hora do dia. Um velho da Ilha dos Gelados foi capaz de jurar, a meio de uma partida, que já o tinha visto numa varanda do hotel e no balcão da cerveja, ao mesmo tempo, ubíquo. Nunca alguém se tinha lembrado de uma peta tão boa para desviar a atenção de tamanha derrota no belga, ainda que o velho, ele mesmo, nunca a tenha admitido. À patranha.

Com a vossa licença,

                                  (na maior honestidade, trata-se de uma figura de estilo. podeis bem não estar dispostos a conceder-me licença alguma que não fará diferença. no entanto, e talvez para tranquilidade do espírito apenas, sinto-me compelido a dizer-vos que seria mesmo justo que esperasse pelo vosso consentimento. assim em jeito de retribuição pelo tempo que dispensais a este meu relato. ou dinheiro. ainda melhor.)
         
                                               passaremos sobre a zona do DJ, três paredes de adobe mais caiadas do que o resto do lugar e um telhado de palha, e da sua aparelhagem infernal. Ou divina. Dependeu sempre do estado de Alma do rebanho. Avançamos direitinhos para a Esplanada, Zona 2.

Três mesas apenas, miraculosamente ocupadas em permanência pelos mesmos humanos. Todos os dias. Ao Domingo também. Sem nenhum resguardo do Sol, que não seja o protetor que abundantemente lambuza a careca de um; o chapéu de palha com fita amarela Licor Beirão, afundado até às orelhas do senhor Monteiro da Silva; o escaldão primeiro grau da família de bifes que anexou duas espreguiçadeiras à sua mesa e três cadeiras; e os óculos de Sol, para ninguém ver se ela chorar, da paquidérmica Dama das Tatuagens. Os seus rebentos palmilham todo o Clube sem trela. O que não admira, pois que ao primeiro Cábron!, berrado no intervalo entre um e outro telefonema, não só acorrem ambos os petizes, mas muitos incautos transeuntes de ocasião. Todos despachados com um sonoro Que pedo te pasó, güey? 

Hoje em dia é muito vulgar que se romantizem acontecimentos. Partindo de factos factuais, lá escrevem historietas a seu propósito, dos factos, acrescentando pontos e alterando percursos, dando brilho a momentos profundamente aborrecidos, só para que fiquem bem na fotografia as suas personagens, baseadas em indivíduos que, tendo existido, podiam muito bem ter tido uma vidinha corriqueira, não fosse terem dado de caras com a queda de uma maçã ou coisa que o valha. Afastamo-nos desde já, e ainda nem ao adro chegamos, dessa corrente novelista fácil. Também nós gostaríamos de ir vendo e andando ao sabor da imaginação, tapando os buracos que nos aparecerem com pedaços de reboco inventados.

Nós não! Atemo-nos ao mero relato de como as coisas estão. Como se passaram e se passarão. Ainda que não seja bem certo o pretérito, ou o indicativo, que estamos a testemunhar. Que é condicional e imperativo, isso está claro.

Isto esclarecido, é sobeja a prova documental a propósito do sucesso de haver uma relação de direta proporcionalidade entre determinado toque do telefone da mãe baleia e a taxa de mortalidade na freguesia de Cacia, concelho e distrito de Aveiro, a Veneza portuguesa. Tirando que não cheira assim tão mal e não há noticia de que os ovos moles em Itália sejam grande espingarda. Já em Aveiro, é de a gente lamber as beiças. Os ovos moles e outras iguarias, mas agora não estamos a traçar um roteiro gastronómico, o que é pena. Menos para as enguias, já se vê.

Não que alguma vez tenha havido, ou venha a haver, alminha que se dispusesse a gastar um coche do seu pouco tempo sobre esta Terra do Senhor, qualquer que Ele seja, a estudar a fundo este acontecimento. Digamos que nem Cacia, que é, à sua maneira, também ela Veneza, desperta assim tanto interesse enquanto objeto de estudo, nem o número de mortes por lá foi, é ou será, assim queiram os Senhores, suficientemente estapafúrdio para que chame a atenção. Agora que de cada vez que o telefone da Dama se punha teténéunéunéu friday night and i need a fight, alguém quinava, disso não resta qualquer dúvida.

Se tivéssemos a sorte de estar a inventar tudo isto, agora mesmo viria o DJ à sua aparelhagem e por toda a piscina do Clube Leve Sopro de Vento do Mar estremeceriam os esqueletos, ao som de arranque de uma motorizada de alta cilindrada, ao mesmo tempo que as moças se humedeceriam por baixo, os moços esverdeariam de inveja, enquanto colocavam apressadamente perucas loiras de cabelo ripado e vestiam Speedos que os esterilizariam para sempre. Parecendo que não, ter os tomates apertados nunca fez bem a ninguém. Note-se com curiosidade que aparenta termos completado um circulo, de tomates a tomates, o que será talvez indício de que devemos deixar por ora este esquisito desacontecimento. Mais tarde poderá alguém chamar-lhe coincidência, o que estará errado, já sabemos.

Contemplemos antes a entrada majestosa da Dama, um mastodonte resoluto, percorrendo os seus passos lentos, o chão estremecendo, a cadeira vazia, aguardando por entre a falta de espaço que se vive em todo o CLSVO, menos ali, na clareira com cheiro a burrito e sabor a tacos. Atrás, o alvoroço das crianças, arrastando os seus unicórnio e golfinho de borracha flutuante. E de guarda-costas estamos conversados.

Nas costas da Esplanada, Zona 2, o muro branco que oculta o território não cartografado da Terra Reservado a Pessoal Autorizado. Que não somos, por muito transtorno que vos possa causar.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

A Mesa do Canto: O som do silêncio (notas do correspondente em Madrid)





Nota-se logo que estamos à beira da Páscoa. Um tipo não pode abrir o postigo para aviar umas bifanas em take-away que aparece logo um espanhol. Chiça, oh homem, fale de longe que vocês se perdigotam bastante, coño. Olhe, ainda melhor, pegue lá esta resma de papel e escreva aí o que quer que eu depois recolho. Grandes saludos e tudo e tudo.

E ele escreveu.

...

Conseguem ouvir? É o silêncio, o bendito silêncio.

De todos os dramas e tragédias sai sempre algo positivo. silver lining, dizem lá para terras americanas. Nestas últimas semanas, para os que gostam da bola quase tanto como gostam de liberdade, o triunfo tem sido o silêncio. Já não se ouvem aqueles intermináveis zumbidos catatónicos de painelistas e opinion makers, em horas e horas de tertúlias e shows televisivos dedicados ao futebol. As contas dedicadas a espalhar ódios, mentiras e polémicas, a soldo dos clubes ou de interesses turvos, estão caladas. Os ultras, dedicados a perseguir os companheiros de clube que não pensam como eles são agora tumbas. E diz que o Manafá está a ver vídeos do Beckham para melhorar os centros. Pelo menos a bola já não anda a partir as janelas dos vizinhos. 

Na cultura de mediocridade criou-se a sensação que esta gentinha sem escrúpulos, que funciona como sangue-sugas, é parte do jogo, parte fundamental. Eles gostam de acreditar nisso e a muitos têm deveras enganado. Mas os que temos saudades de ver a bola rolar, os que andam a ver jogos antigos, a jogar jogos virtuais e a sonhar com tocar ou ver mexer o esférico, finalmente perceberam que esse esterco não tem lugar no futebol. Que sem eles tudo é mais saudável. Porque tudo isto tem mostrado que nós, os adeptos, os que não lucramos nada com isto do jogo e que até perdemos dinheiro, paciência, anos de vida ou cabelo à custa do stress que ganhamos quando a bola chega aos pés daquele lateral que não sabe centrar, temos descoberto neste vazio que somos quase todos iguais e que é muito mais aquilo que nos une, como adeptos, do que aquilo que nos separa. Ao invés do que uma cultura de ódio sempre quis fazer crer.

Ao contrário do dono desta tasca, sábio a gerir o seu tempo livre, eu perdi muito do meu a ver jogos. O FC Porto é o meu clube desde que tenho memória e, só ao vivo, devo ter visto mais de duzentos jogos, para não falar nos televisionados mas, realmente, essa percentagem é pequena se comparar com os milhares de jogos que vi desde tempos imemoriais até há três semanas atrás. E sabem o que me chama sempre a atenção? Que somos todos iguais. Somos, os adeptos. Ouvimos no estádio cânticos que a claque copia de italianos dos anos 90 (vejam um Fiorentina vs Lazio de 98 e vão entender), todos achamos que nós somos o clube da mística, da raça, de fazer as coisas bem, todos nos sentimos especiais ao abraçar um emblema, umas cores. Todos repetimos o mesmo discurso, porque todos estamos apaixonados e a minha mulher é a mais bonita do mundo e de certeza que é mais do que a tua (que não deixa de ter umas boas coxas, atenção) e fazemos isso desde a crença, desde a positividade. Encontramos, ou encontraram por nós, slogans em que acreditamos a pés juntos, mas repetimos todos o mesmo padrão de comportamentos dentro e fora do estádio. 

Os roubos são sempre CONTRA nós, os árbitros são sempre comprados pelos OUTROS, os meus jogadores são os melhores e quando são maus são os piores. Como assim o teu lateral direito é pior do que o meu? Todos tivemos ídolos que foram os maiores, decepções que foram as piores, transferências recordes porque nós é que valemos ou negócios que falharam, porque nós é que sabemos negociar. A frase é sempre a mesma, muda a cor e nada mais. 

Sentem-se a ver tranquilamente um jogo ao lado de alguém de um clube rival e vejam como são vocês, a cruzar o espelho como a catraia. Não há rivalidade sem futebol e futebol sem rivalidade. É saudável e alimenta a alma. mas vejam The English Game e entendam que até no início havia rivalidade. Mas também união. Há países onde isso se perdeu, outros onde nem tanto, mas essa é a realidade e para interesses próprios foi substituída pela cultura do ódio. 

Há uma diferença. Eu posso sentir rivalidade com um clube, querer que perca para que o meu ganhe (ou para que perca, simplesmente) mas isso não significa que os odeie ou que sofra se cumprirem os seus sonhos. Há que amar e empatizar com o próximo (namasté). Mas esse ruído sujo e lamacento que agora, curiosamente, não se ouve, tem-vos dito que aquele presidente é um malandro, que aquele treinador é uma besta, que aqueles adeptos são TODOS – sejam 5 ou 5 milhoes – uns animais e que tens de carregar no botão do ódio e ir vomitar para as redes ou para as bancadas esse peso. E não tem que ser assim. Estas semanas demonstram-no bem. Tenho visto, admirado e invejado, no bom sentido, como existe em outros clubes que não o meu uma bonita cultura de clube, gente com projetos bem estruturados, independentes, dos adeptos, que estão a matar este imenso tempo livre com amor ao clube. Não a vomitar ódio ou dissidência, mas a criar comunidade, seja entre os seus, seja entre os que gostam de bola. E é bonito, seja qual for o clube de cada um. 

Mas depois faço introspeção e olho para casa. E vejo quase só silêncio. O mesmo silêncio do início, desse esterco ambulante que contaminou o ambiente durante anos e que não existe se não há ódio, confrontação e luta. E penso nas contas de redes sociais caladinhas e quase todas são da minha cor. E vejo que noutros clubes há muita gente que polemiza que agora se está a dedicar a falar do jogo, da comunidade e olho para o mundo azul e branco e vejo pouco e ouço pouco. Não há praticamente projetos que façam clube, comunidade entre os meus. Não há quem recupere a história para que ninguém esqueça que sempre fomos um clube maravilhoso, mesmo antes de 1978. Não vejo canais de YouTube ativos, raramente há podcasts que debatam o clube e a quantidade de contas tão ativas a denunciar polvos e padres e dramas, andam caladas quando podiam estar a falar do Hernâni, do Bibota ou do Alenitchev. E chego à conclusão de que se calhar há clubes que nunca perderam a noção de quem eram e outros que abraçaram tanto a cultura do ódio, do confronto e da luta que em tempos de paz não sabem atuar. 

Foi-lhes dito que só se olha para o presente e para a frente e muitos idolos saíram sem o seu merecido aplauso. Apagou-se uma enorme parte da historia do clube porque não encaixava na narrativa da neolíngua e agora as pessoas esqueceram. A mordaça que rodeia grande parte do clube atontou os adeptos que são incapazes de se organizar e mexer, sem que tenham de passar pelo filtro de nós contra todos. É comê-los, carago! E tudo isso importado de outros lados porque aqui ninguém inventou nada. 

Numa época em que todos estamos a perceber que valemos uma merda, que a nossa vida e a dos nossos pode voar sem se dar por isso, é ainda mais doloroso lembrar que quando se marca um golo no Dragão ainda há quem se lembre primeiro de um rival e depois de si próprio. Se esta crise humana brutal nos está a ensinar algo, é a colocar tudo no seu devido sitio e o ódio e a falta de empatia e amor deviam ficar definitivamente à porta, sobretudo de um estádio de futebol. Mas, se calhar, é por estar rodeado de pessoas a morrer e não a tomar um café na marginal de Gaia que me dá para pensar nestas coisas. Se calhar. Bota lá mais uma que nesta tasca até o silêncio é diferente.



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sábado, 28 de março de 2020

CLSVO - I

I


Na piscina do Clube Leve Sopro de Vento do Oceano desde manhãzinha que se nota o caráter festivo da ocasião. Há um acordo tácito para a lassidão: os cartões de utilizador certificado, diplomado, autorizado, merecedor de entregar a pele a uma quantidade absurda de desinfetante e cloro - não há fungo que resista, senhor, veja também por esse lado e aproveite para passar na nossa loja, a promoção de colírio para os olhos vai-lhe parecer encantadora, sobretudo do ponto de vista do seu olho esquerdo, o bastante inflamado - enfim, o retângulo de cartão que franqueia as portas desta autêntica Babel dos tempos modernos, o caldo antropomórfico que talvez o Criador desconheça, dado que se exponencia precisamente a este dia sagrado, aquele em que o Senhor está, vá, menos atento.

É certo que o CLSVO não é um elevador, mas se por qualquer coincidência cósmica lhe acontecesse tornar-se num, estaríamos metidos num belo sarilho, já que o excesso de peso, total e per capita, impediria o aparelho de cumprir a sua função de se elevar, a si e à sua carga, a patamares mais altos. Poderíamos até estar no inicio de uma bela e significante parábola, não fossemos arrancados a estes ainda imberbes pensamentos pelo DJ residente, empregado de mesa permanente e comediante interno, anunciando o inicio da animação e anotando mais dois tímpanos perfurados à sua coleção - as espreguiçadeiras junto ás colunas estarão sempre vazias por algum motivo, cara senhora obesa - enquanto o Universo parece chiar de dor ou talvez esteja apenas a bater o pé com os primeiros riffs : Tã! Tã-tãã-tããã! Tã-tãã-tããããã! Risin'up, back on the streets...

Do bordo da parte mais funda, um pré-adolescente Dukakis maravilha toda a populaça com os seus saltos acrobáticos para a água, mesmo ao lado do enorme cartaz de "Proíbido Saltar / No Diving / Ne Pas Plonger", rematado pela nota de rodapé: O Nadador Salvador está fora de serviço. Diga-se, de forma a que a verdade perpasse desde já esta nossa, como lhe chamar?, conversa?, que o aviso, sustentado em dois barrotes de madeira pintada, é um dos ex-libris do reputado CLSVO. Uma peça fundadora até, estrategicamente disposta, de maneira a ser vista de todos os ângulos possíveis e imaginários e fantasiados pelos banhistas. Ainda hoje o pedreiro que berrou a plenos pulmões, dealbava 1987, ano de Campeões em Viena: "Põe essa merda no topo, caralho! Onde toda a gente a veja. Assunto resolvido.", peregrina ao Santuário da Sua Ideia Boa, por sinal a única, pelo menos é o que lhe diz o auto-juízo. Ah, sim, os anos passaram também por ele, disso não resta qualquer dúvida. A guedelha meio encaracolada dos 80's e as camisolas de manga cava - na verdade tshirts com as mangas cortadas à tesourada: Whitesnake, AC/DC, Bon Jovi numa branca, para sair à noite e impressionar as raparigas, que nunca usava ao pé dos amigos, por vergonha - foram dando lugar a camisas simples de xadrez básico, que herdou do avô e depois do pai e qualquer dia do sogro. Roupa não compra ele muita, lá isso não. E nas suas religiosas visitas ao CLSVO, já cantarola Walk like an egyptian I wanna dance with somebody e até o C'est la vie que, vá-se lá saber porquê, faz as delicias dos emigrantes em férias. No entanto, é evidente que só um Here i go again ou Livin'on a prayer, nos poucos anos em que teve a sorte de os apanhar, transformam a sua viagem num acontecimento de profundo significado e descoberta interior. Porque é que no CLSVO se toca quase exclusivamente música de 87, é um mistério que nunca se predispôs a investigar. Aliás, nem sequer lhe passou pela cabeça, essa é que é a verdade. Foi apenas um subterfúgio parvo que o narrador utilizou para chamar a atenção para o facto. Que me perdoem, mas pareceu-me adequado. E não virá dai mal ao Mundo.

Outro facto indesmentível é que nunca os EUA tiveram um saltador para a água chamado Dukakis. Porque é que é sempre Dukakis que me vem à cabeça, não sei, já que é Louganis que se chama a pessoa. Está claro que é este som grego que causa a confusão da mente. Por grande coincidência, o pai, treinador e mentor do pequeno Dukalouganis, sempre que lhe vem o nome Dukakis à mente, lembra-se de uma comédia romântica acerca de uma família grega emigrada na América. O que é muito estranho, pois que Dukakis não é conhecido por ter feito comédias. De todo o modo, não românticas, pelo menos. E se os mais informados de entre vós estarão a notar a coincidência das datas, lembrando a candidatura de um Dukakis a POTUS em 88, o que dirão do

                                                                                                      ( sinceramente, não sei se deva. antevejo uma natural dificuldade em ser acreditado. do verbo acreditar, que não no sentido burocrático do termo. mas vou assumir que é um espinho que vem com a missão, embora o pagamento seja parco e talvez não justifique o risco)

                                                                                     profusamente documentado facto de sempre que o petiz executa um duplo mortal perfeito no CLSVO, a emissão de todos os canais estatais de televisão junto à Linha de Controlo, em Caxemira, ser interrompida e começar a passar uma comédia romântica acerca de uma família grega emigrada nos Estados Unidos?

Enfim, será provavelmente um desvio bem-vindo ao quotidiano de sangue das gentes. Sempre se riem um pouco, mesmo que já conheçam de cor as falas. Diz-se que alguns imãs do lado paquistanês chegam mesmo a decretar breves suspensões da xaria durante estas interferências, o que é celebrado com gritos de Azadi pelas ruas de Srinagar, perante os olhares tensos dos jovens soldados indianos que não conseguiram, até hoje, perceber como flui a informação de um lado ao outro da Linha, como se fosse um único país. Assim se explica que boa parte dos militantes caxemires tenham, desde tenra idade, uma admiração especial por uma série de atores que julgam chamar-se todos, eles e elas, Dukakis, para grande moléstia dos produtores de Bollywood.

CLSVO - Intro





Mas é Domingo. Como que acordam já engraxados os sapatos e vincadas as camisas, entendeis? Até a missa das 12H00 se molenga para as 12H15. Um atraso bilingue, não vão os bifes ficar amarrados à sua bizarra pontualidade, em enormes números garrafais para que não reste qualquer dúvida: até ao quarto de hora, o Senhor não dará acordo de Si.

Afinal, este é o dia sétimo. Ou porventura julgais que o ar feliz e rosado nas faces da canalha que corre pelo adro se deve às bolhas que os sapatos de verniz demasiado duros lhes provocarão? As crianças sabem que este é o recreio, o dia em que o Senhor descansa, a aula sem professor, o dia em que o Senhor dorme. Credo em cruz, cochila, que Ele nunca dorme, pobre Diabo. Credo em cruz duas vezes, Nossa Senhora me valha pelo lapsus linguis ou então saltou-me a pena para a Verdade. Em qualquer dos casos não merecerá esta Alma severo castigo por reconhecer a Totalidade do Senhor, que é Alfa e Ómega e Principio e Fim, logo será natural que seja Ele Mesmo e o Seu Contrário.

O dia da Liberdade, do Livre Arbítrio sem videovigilância, o dia que é hoje, o dia de Domingo. Claro está que para quase outro tanto do Universo conhecido é só o primeiro dia da semana, vá-se lá compreender porque é que os kafir teimam em começar as suas pelo dia dois. E chamam-lhe até assim: Segunda.