quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Nomes - C.C.





- Ainda ás voltas com isto, velhote? - Digo para a pilha de papéis na mesa.
- Cada vez mais interessante. Ora veja lá esta. - Estica o braço com a folha amarelada na mão, não levanta a cabeça, não me olha.

"Nomes - C.C.

Agora é de noite menos tempo, nos dias em que me deixas ir embora. Mas os meus olhos, as mãos, a parte da perna que liga ao peito do pé, permanecem imersas no escuro do Cruzeiro.

Existo num quarto cavado na terra, pontilhado pela luz azul do desumidificador, pelo led vermelho do ecrã na parede, e povoado pelo nosso cheiro. Depois do corpo, o peito e a mente mergulham gratos nesse breu em que somos tudo, sós, inteiros. Oh sim, eu sei que é apenas um marco no meu pensamento, um lugar arquétipo que decido guardar. Houveram lágrimas a denunciar a distância da redenção. Ainda assim, os dias crescem e eu permaneço, tétrico, nesse túmulo perfeito.

Foge-me um sentido, creio que o olfato, para a alegria que nos saltita pelas escadas e para o orgulho que nos ameaça voar pelos céus do Mundo. Com elas toda a obra, grande e inacabada, que somos e queremos ser. E penitencio-me. Sorrio para todos os que sorrimos à luz cada vez mais cedo, mais tempo. Desculpo-me, desculpo-nos.

Nos olhos, nas mãos, em pleno dia já, sei que me deixaste ir embora e vejo e toco o breu do Cruzeiro. A vida resume-se num solavanco do comboio, mas não me rouba da metade que me guardas nessa casa eterna. Guardas?"

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A ronda das mesas



(para o Armando Monteiro, na esperança que continue a passar por cá)

- Mula Velha?

- Sim, é para nós Silva. Olhe lá, então já temos o Eusébio a caminho do panteão hein? Vá lá, diga la que é por ser do glorioso. Aposto que está tudo comprado, não?

- Engano seu, lampiãozito. Eu acho que o Eusébio é, de facto, alguém que transcende o seu clube. Um símbolo nacional, se quiser. Olhe, como a Amália, que também por lá anda. Claro que estou tentado a fazer uma analogia com o Fado, Futebol e Família. Os dois primeiros já la estão. E o que vocês, nesse contraditório vermelho, gostavam do tempo dos três Fs, hein?

- Lá está você... - Interrompo:

- Aqui fica a garrafinha. Bom proveito. Ah, e já agora, um dia destes diga-me o que acha que devemos fazer com o Carlos Lopes e a Rosa Mota. Campeões olímpicos, unanimemente considerados lendas vivas nos seus desportos. Enfim, símbolos nacionais. Construímos um avançado ou uma marquise no Panteão? Que me dizem? Até já


- Ora cá está um traçado, um Três Marias e dois Submarinos. Era isto, certo?

- Nem mais amigo. E os gregos hein? Lá vão levando a água ao seu moinho. Surpreendido Silva?

- Porquê? Por terem conseguido mudar o nome da Troika para Instituições Internacionais? Por terem pedido mais seis meses de resgate e terem conseguido quatro? Por terem deixado cair o perdão da dívida? Por terem até hoje para apresentarem medidas de austeridade, chamem-lhes o que quiserem? Não amigo, nada surpreendido, não é como se tivessem remédio. Mas ainda não perdi a esperança que isto acabe por servir para alguma coisa. Qualquer coisinha é só gritarem ok?

- Você é tramado...


- Tosta mística à Tasca e uma Opinião a estalar. - Sorrio.

- Obrigadinho pa. Olha lá, já reparaste que anda tudo a ferver por não dizermos nada? Eu também já não percebo, porra. É demais o colinho, roubalheiras em todos os jogos e nós moita carrasco! Achas isto bem?

- Nem acho, que é para não discutir contigo.

- A sério pá, o que achas?

- Pelo que vejo nos tascos que vou visitando, acho que a culpa do colinho aos vermelhos é... - Pauso de propósito, fixo nos olhos expectantes do meu compincha. - A culpa, meu caro, é do Pinto da Costa. Tanto nos ensinaram isto, que parece que agora já acreditamos. Haja pachorra. - E viro-lhe as costas.

- Não te vás embora. Já engoliram o Lopetegui, agora parece que vão mesmo ter que engolir o Tello. Deves andar todo inchado, meu sacana.

Não consigo evitar arreganhar a taxa. Instintivamente olho em volta, à procura do Miguel. O tipo avisou-me para não me por com "eu sabias". Mas era mesmo de "eu sabia" aquele sorriso. Espero não ter sido apanhado.


- Meia de leite e meia torradinha, minha linda.

- Ai Silva, você é cá um maroto. - Adoro quando as rugas se distendem e os lábios desenham aquele sorriso e os olhos ficam 40 anos mais novos. - Oiça lá, parece que houve aí um jantarinho  muito secreto, não foi?

- Foi? Não reparei. Se descobrir alguma coisa conte-me logo. Sabe que eu detesto perder essas histórias. - Ela sabe que minto com todos os dentes, incluindo os chumbados.

- Prometido. E fique descansado. - Semicerra os olhos numa linha. - Eu vou descobrir...


- Aqui está a sua tacinha de tinto, avôzinho.

- Obrigado. Ajude-me aqui nas palavras cruzadas: quatro letras, o que é o que pretende ser tudo? Não chego lá...

- Nada!

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

A inegável importância de Sonkaya II



- Quero pedir-te dois favores, pode ser? - Esta segunda pessoa do singular ainda não me é cómoda, mas acho que é um problema civilizacional. Sabe bem, de todo o modo. Tem as mãos firmemente entrelaçadas e apoiadas no balcão, a condizer com a determinação, aliviada?, dos olhos claros.

- Se eu puder, terei todo o gosto... - Respondo diplomático, mas defensivo. Esta é a brilhante maneira encontrada para não termos que nos comprometer nunca. Afinal, é tão subjetivo aquilo que podemos ou não fazer. Quem, para além do próprio, pode ser juiz nesta causa? Anyway, interiormente espero que seja um copo de água e um palito e uma gargalhada. Grande amigo!

- Queria que me reservasses a mesa dos namorados para logo à noite, preciso de ter uma conversa tranquila com o turco . - Ela sorri depois de "turco", eu sinto-me corar até ás orelhas, vermelho como um tomate. - Sim, eu sei! Ou achavas que um miúdo de 11 anos não se descosia?

- Ok, reservada. Que mais? - Não estou a ficar menos corado, caraças!

- Pois... - Hesita. - Não sei, podias perceber se isto faz muita confusão ao puto. Não vai ser um jantar romântico, é mais uma espécie de downsizing. - Ri.

- Despedimento por incompetência ou inadequação ao posto de trabalho? - Rio eu, a medo. 

- Competência qb e bastante adequado. Digamos que o posto de trabalho é que não se adapta. Mas entretanto era um homem e ele um miúdo. Entenderam-se, creio. Agora custa-me... - Revira os olhos, as mãos permanecem firmes.

Percorro a Tasca com o olhar, à procura da mesa do dominó. Bingo! Lá está a pequena cabeça, toda desgrenhada das festas das mãos enrugadas dos seus muitos avós. Sai um jarro de carrascão para lá.

- Hey miúdo, que tal? - Ainda de jarro na mão.

- Tudo bem, Silva. - Sorri-me.

- Ouvi dizer que hoje há cá um jantar especial. - Eis a proverbial subtileza do Silva, sempre próxima da de um elefante zonzo numa loja de porcelanas.

- É. - Os olhos traem-lhe o sorriso que mantém. Há uma sombra... - Não fico lá muito contente, mas paciência. Sabes, o Sonkaya até é fixe. Joga comigo e ás vezes vai ver os treinos. Um dia tens que ir ver os meus treinos Silva... - A mente a fugir-lhe para coisas menos sérias e mais alegres.

- Sim, sim, um dia vou. E agora puto? Vais ficar triste? - Era para saber, não era?

- Um bocadinho, mas não tem mal. Volto a adaptar o avô a lateral direito. - Pisca o olho. 

Eu penso: 11? Achava que eram 10. Não serão antes 61? Raio do miúdo. 

Uma voz pelo meio do catarro:

- Oh Silva, vai poisar isso ou tem alguém que morrer de sede aqui?



quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Post it


Na grade exterior da Tasca esta manhã, um papelinho amarelo:

" Silva,
Porque é que as equipas que jogam contra o teu FCP, parecem sempre mais fracas do que antes? Um remate?! Um?! É muito preocupante...
Lamp "

De sorriso colado, predisponho-me a passar pela bluegosfera azul enquanto a máquina de café aquece. Aposto comigo mesmo o que vou encontrar nas caixas de comentários: o Casemiro é o pior jogador do known Univers; não! o Herrera é que é!; o Brahimi nunca enganou ninguém, essa nódoa; não temos ideias; mas quem é que, tirando o Real Madrid, o Bayern, o Chelsea e o Liverpool, não tem a bola mais de 60% do tempo contra estes gajos?; são tão, mas tão fraquinhos, que só mesmo por incompetência do Antero é que não damos 23 a 0; o Espanhol precisava era de uma murraça, um pontapé no rabo e um corte de cabelo novo; o Tello é pior que o Licá...

Concordo com a parte do cabelo, mas eu sou careca.

Injusto? Parto à descoberta...

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Nomes - E.F.



- Ena velhote, grande confusão de papéis que aqui vai... - Fico com o pano húmido das mesas suspenso no gesto.
- Isto é um achado, Silva. Encontrei no meu alfarrabista. - Remexe o monte de papéis, alguns manuscritos.
- Hum? Um monte de papéis velhos? É que livro, isso não é.
- Isso agora é que ainda não sei. Tenho andado ás voltas com eles e é bem possível que exista aqui uma lógica. 
Rio-me:
- Eu também estou a ler o "Livro do Desassossego"...
- Nada disso! - Insurge-se.- Nada tão complicado e muito mais concreto. Tenho a certeza. Quase a certeza... Para além de que não consigo, pelo menos ainda, encontrar qualquer referência a autores, pseudónimos ou quaisquer outros ónimos.

Pego numa folha ao calhas, aparentemente datilografada. Por um instante não consigo sequer pensar a palavra, até visualizar, num canto ainda não tão obscuro da mente, a arcaica tecnologia. Leio:

"Nomes - E.F.

Por fevereiros são avistados pelo ponto de fuga dos olhos nas bermas. Ou bordejando ribeiros, delineando bosques tímidos no primeiro esboço. Na cama da nossa certeza tranquila rebentam súbitos, invasores de todo o panorama, eles próprios as margens e os contornos. E o resto, as heras, as silvas, mesmo as persistentes azedas, um ou outro ainda tenro pinheiro, esconde-se por trás, ou sob, a explosão inevitável dos paquidermes. Promessas vãs de campos de flores amarelas.

Alinhados marcialmente seguem-nos os percursos com os seus intemporais olhos aguados. Imóveis, atentos. Suspira toda a outra flora encomendada aos braços ágeis dos voluntários calcorreeiros de zonas delimitadas, protegidas. Nas valas das estradas, nas terras de ninguém, nos baldios, reinam um eterno instante. É breve e para sempre o seu tempo - todos os calendários têm algum março.

Avisados geneticamente por gerações de sábia desconfiança e capitulação, não esqueçamos que nas elefantinas memórias guardaram os poisos conquistados e anotaram os terrenos a ganhar na próxima estação, ás costas de uma qualquer beata descuidada. Retornam amarelos depois de não morrerem os elefantes fugazes."

Olho-o no seu entusiasmo missionário:

- Circo?
- Acacia dealbata?

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Farturas Aliáticas




- Oh Silva, se a patroa aqui estivesse, já estava a espumar. - Ri-se.

- Porquê avôzinho? Nem está aí a vizinha dos olhos claros nem nada... - E devolvo-lhe o riso.

- Mas só se ouve falar de bola. E não sei o que mais dos vermelhos, mas porque sim dos verdes e mais outro tanto por causa dos azuis...

- Ah pois! É que parece que isto está a aquecer de novo. Já há quem comece a ficar apertado nos sapatos, quase tão apertado como você. - Pisco-lhe o olho, cúmplice.

- Duvido, mas entendo a imagem. Eu disso não sei nada, só mesmo um ditado que me ensinou um tio meu, por parte do meu avô. Já vê que é coisa muito antiga, claro. Dedicava-se ao negócio da venda ambulante de fritos. Lembro-me ainda bem dele. - Fecha as pálpebras, reconstituindo o rosto do familiar. 

Espero pelo dito. Ele espera pelo empurrão. Há finos para tirar. Empurro:

- E então, diga lá o ditado, fiquei curioso. - Ele sorri como um catraio prestes a fazer uma cabriola.

- Quando os catedráticos ficam pragmáticos, monta a barraca das farturas nos Aliáticos.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

A lista de pontos positivos do senhor Monteiro da Silva



- Ora aqui tem uma das listas que mais tempo levei a concluir. - E estende-me o papel.

Lista de Pontos Positivos

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- Sim, está bem, percebo a ideia. Mas pontos positivos de quê, senhor Monteiro da Silva?

- De todas as coisas que não têm um lado bom, Silva. 

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Medo do escuro ou as palavras desconhecidas.




Ficamo-nos pelas luzes de emergência, todas apontadas à saída, embora saibamos que nos deixaremos estar por aqui até a garrafa acabar. Partilhamos uma tristeza qualquer, por nós e, ainda mais, pelo que estão tristes outros de quem fomos aprendendo a gostar. É um bocado estranho como a tristeza tende a nivelar os escalões da amizade.

Abano a cabeça, enxotando a silvesca mania de desatar a filosofar baratinho nos momentos mais inadequados. Empurro outro shot de vodka pela goela, ele esboça um meio sorriso e, assustadoramente, quebra o nosso silêncio crepuscular:

- Uma das memórias que guardo da minha infância, daquelas recorrentes, é as falhas de abastecimento elétrico. Eram comuns. A luz falhava uma, duas, três vezes e depois...puf!...apagava-se mesmo. Os pais apressavam-se para a gaveta das velas e para o quadro incrustado na parede do corredor. Eu corria para a varanda da sala.

Hoje sei que era estúpido, mas na altura não tinha alternativa, era um impulso irresistível de correr para a varanda. Depois dos ameaços, o meu coração estava aos pulos. Quer dizer, eu sabia que ia acontecer, que era inevitável, mesmo que já me tivessem contado de ocasiões em que só ameaçava e depois, por qualquer milagre, não se apagava. Ainda assim, em todas as falhas momentâneas, ficava agarrado à esperança de que era desta que a luz se aguentava, mesmo que estivesse cada vez mais ténue. E mesmo depois de ficar tudo escuro, essa esperança empurrava-me para a rua.

- Porque estava mais claro lá fora, se calhar.

- Estaria, se fosse dia de Lua. Mas nem era por isso. Era a esperança de encontrar uma luz acesa. Um sinal qualquer, no meio da cidade negra, que me alimentasse aquela crença. Já não a de não falhar a luz, que já se fora, mas agora uma outra que a substituía: a de que o corte fosse de curta duração e tudo voltasse ao que era rapidamente. Como se fosse possível, Silva. Como se entretanto não tivesse já ficado escuro, como se a luz que voltasse pudesse ser a mesma que se apagara. No fundo, corria para a varanda à procura apenas da negação do facto, nada mais. Até a minha mãe aparecer e me puxar para dentro, de volta à casa que agora tremeluzia com a claridade fosca das velas.

E ali ficava, colado à janela, à espera que toda aquela escuridão principiasse a acender-se. Mergulhado no meu silêncio. No pior dos silêncios, que é o de não ter nada que valha a pena dizer.

Apertei-lhe o ombro, menos para confortá-lo e mais para que me devolvesse o conforto. Partilhamos esta garrafa e este aperto e não temos mais nada para dizer hoje. 

- Não inventaram as palavras que possam impedir o escuro... 

- Ou nós os dois não as sabemos, meu querido tasqueiro.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Tenham lá Paciência ou o destino do Bolo Rei






- Ninguém o come! Fica para ali na mesa uma série de dias. Cheio dos seus tons garridos, mas intacto. 

- Sim, mas não é a mesma coisa se não houver. Parece que nem é Natal..

- Mas acaba por ir para o lixo!! É bonito, mas não serve para nada. Um desperdício autêntico.

- Mesmo assim Silva, acho que fica bem e não custa nada. 

- Eu não consigo simpatizar com isso, desculpe lá. Quando havia brinde e fava, ainda os miúdos afiambravam aquilo, frutas cristalizadas incluídas e um dente ou outro de vez em quando. For the sake of the game...

- Olhe, é como o seu amigo espanhol. Custava-lhe alguma coisa ter levado o Paciência para o banco? Não ia jogar, mas ficava ali tão bem, a aquecer os místicos corações da populaça.

- E a ganhar mofo até se estragar...