terça-feira, 19 de agosto de 2014

(Not so) Silly Season II





Deixamos escorrer o que resta do calor lá fora, absortos em dois copos de verde branco bem gelado.

- ... o facto é que é preciso morrer para nos comemorarem duas vezes, essa é que é essa! Ele é o aniversário da morte e o aniversário do nascimento. Como se não fosse suficientemente mau estar morto, ainda nos envelhecem mais depressa. - Explica-me sentado num banco alto do balcão, pés no ar numa pausa de um pouco menor desconforto dos sapatos para sempre apertados.

-  É uma maneira de ver as coisas. Também pode considerar que o fazemos para nos lembrarmos mais vezes dos que partiram. Dos outros, lembramo-nos mesmo quando não queremos. Estão sempre a aparecer-nos. - Sorrio um "é piadinha, não leve a sério".

- Talvez. - Rebusca os bolsos do casaco. Encontra um papel. Penso: para quê o casaco com este calor? - Não sei já quem é o autor, mas adequa-se a este nosso filosofar miúdo. - Estende-me a folha e salta do banco. Aterra com um esgar de dor e caminha no seu passo muito curto para a porta. Volta-se:

- Se não fosse nos bolsos do casaco, onde é que guardava os poemas no Verão, Silva? - E sai devagarinho.

Obrigo-me a fechar a boca e leio o anónimo.

"Espaçaram-se as rosas brancas.
Nestes dias parecem mais vezes gerberas
Algumas estrelícias se me lembro.
Quando tas entrego, no entanto, são sempre alvas
E rosas todas as flores.

Espaçaram-se os cigarros.
Fumamos menos os dois
O meu fumo em rodas, o teu em nuvens
Ambos cortados pelas palavras:
Aconteceu-me isto, Deixa lá que se resolve.

Nunca se espaçam as conversas, nunca se acaba a memória.
Pelos rostos e pelas vozes
Que te trazem de novo a mim, sim!
Mas bem mais, tanto, tão fundo:
A voz que vive na minha mente, tu?"

(Not so) Silly Season I


- Ena Silva, isto está mesmo ás moscas. - Para cumprimento não está mal, não senhor. Respondo indiferente:

- É agosto...

- E os velhos também estão de férias, queres ver?! - Como se ele próprio fosse o protótipo da juventude.

- Estranho é o meu amigo estar por cá. Fazia-o por uma praia do Sul, a encher as vistas das bifas. - Trata-se de uma ironia simpática, brincadeira entre conhecidos, na verdade.

- A mulher está meia doente, ficamos por cá. Má sorte das bifas. - e sorri.- A propósito de gringos, não temos hipótese pá. Já percebi porque é que eles serão sempre mais altos, mais fortes, mais latagões ao fim e ao cabo.

- Que generalização tão parva, meu caro. Logo nós, patrícios do CR7, o paradigma do latagão.

- Esqueça lá isso Silva. Até esse, aos 17, antes de se ir fazer homem para Manchester, era cá um lingrinhas, livra. Tope lá isto: se você tiver 5 garrafões de 5 litros de água para transportar, sei lá, durante um quilómetro, mais um saco de papos secos, e estiver com dois filhotes, vamos dizer que um tem 6 anos e outro uns 12, como é que divide a carga?

- Faço lá ideia, vou de carro e pronto. - Chega? Não, não chega.

- Nada disso, vai a pé. Diga lá!

- Levo 4 garrafões, o mais velho leva um e o outro leva o pão, pronto. Satisfeito?

- Aí está!! Se você fosse alemão ou holandês, ou lá o raisparta que era o tipo - Ah, espera, havia mesmo um bife envolvido. - levava 2 garrafões, o mais velho levava outros 2 e o pequenito levava o restante mais o saco do pão nos dentes. Pimbas Silva! É por isso que crescem mais e são mais fortes, como se praticassem muito desporto desde o berço. Porque os pais não os devem gramar tanto como nós gramamos dos nossos putos. É o que eu acho. - Sentença lida!

- Vai-se a ver o homem é doente das costas ou qualquer coisa do género. E é um exagero dizer que isso é maltratar as crianças não acha? - Tomo a defesa do Saxão ausente...

- Não me pareceu. Era latagão como os outros. E até podem gostar dos petizes, mas nós gostamos mais e depois estragamo-los. Para além de os fazermos crescer mais enfezados, está claro.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Uma flor para a caixa de perdidos


Já não me lembro quem esteve nesta mesa. Havia algum movimento e não reparei na pessoa. Não seria seguramente residente. Era um homem, quase de certeza. O papel ficou, mas não tão amarrotado que possa ser lixo. Guardo-o na Caixa de Perdidos.

"Desfolho a tua flor pelo caminho:

Uma pétala por cada erro repetido
Outra por cada silêncio teu
Mais uma por um mal entendido.
Esta pela palavra que se esqueceu
Aquela pelo amor distraído
E a última que por si só caiu.

Chegado, trago-te as mão vazias.
Dedos de polpas frias
Não seguram as flores que querias,
Mas guardam borras daquelas tantas alegrias
Sementes que me iluminam os dias
A germinar na inevitabilidade das nossas Biologias.

Indistintos no teu sorriso sins ou nãos
Fico preso do lado de fora:
Sabe que houve, ainda agora,
Rosas nas minhas mãos."


sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Praia do Torel, ou as prisões do coração



- Leste isto Silva? Inauguraram hoje a Praia do Torel. É estranho inaugurarem uma praia, não é? Para mais no Torel! Agora já se vai preso de toalha e chinela brasileira. - Risinho de escárnio, por entre os dentes amarelecidos da nicotina. - Cresci a achar que ir ao Torel era péssimo pa. Era igual a problemas com a Policia de Investigação Criminal e quejandos. Mesmo depois de 74, não me entrava na cabeça a ideia de ir para o Torel passear no jardim. E olha que é uma das mais fantásticas vistas sobre Lisboa. É sim senhor, Silva. Uma praia, vejam bem... - Deteve-se um momento, pensativo. Prosseguiu:

- Bom dia para abrirem uma praia, não achas? - Retórica apenas, sem nenhuma necessidade de resposta. - 1 de agosto. Tudo a banhos, tudo pró Torel! É o mês dos emigrantes também.

Sabes, quando era puto, costumava pôr-me a pensar nestes tipos. Os emigrantes. Moram em cidades como Paris e Londres e Berlim. E vêm de férias para Cuba, mas no Alentejo, ou para a Brandoa e assim. Não entendia aquilo! Eu aflito para me pirar para um bidonville qualquer e eles a trocarem os Champs Elysées pela Praça do Pelourinho de Avanca. Um gajo quando é puto é burro. Nunca teve saudades a sério, nem sabe o que é não pertencer. Que é isso de voltar para as pessoas? Não era de lugares que se tratava? 

E depois, ainda percebi mais. Entendi que voltam para matar as suas saudades e também, ou sobretudo, para se refastelarem nas saudades dos outros. Nas que sentiram deles. - Pigarreou, à espera de um sinal de compreensão. Acenei, sim percebo. - Afinal, é para as pessoas que acabamos sempre por voltar, nunca para os lugares. Ou então vamos a fugir. Ou não estamos a voltar, só a ir. E mais, regressamos ás pessoas na expetativa de lhes sentirmos a alegria do nosso regresso. 

Olha, o amor, ai ai, o teu bendito amor caro tasqueiro, é igual! Amamos as pessoas e amamos o amor que nos tiverem. Um alimenta-se do outro, senão desnutre-se. - Devo ter feito algum tipo de gesto que indiciou que ia falar, porque me cortou célere o piu, cerceando a palavra que eu não tinha para dizer. Com a mão direita levantada:

- Não me venhas com histórias Silva. A vida não é um romance do Camilo. Matamos saudades de quem nos sente falta e amamos quem cremos que nos ama, ponto.

- Estão bons os seus filhos? - Tive plena consciência do meu sorriso irónico.

- Jogo baixo, Silva? Sabes bem de que saudades e de que amor se trata. E mesmo nesse caso. Gosto mais da minha do que do meu. A ti posso confessar, que és tasqueiro e o teu código deontológico vale-me mais que o dos advogados. Ladrões esses. E sabes porquê? Se quiser ser completamente honesto, porque sente mais a minha falta ela do que ele. É por isso meu caro. 

- Entendo...

- Mas desconfias, já sei. De resto, não tenho nenhuma dúvida, o sentimento que acreditamos que nos têm é sempre uma parte importante do que sentimos pelos outros. O nosso acelerador ou o nosso travão. Eu sou velhote e não vou arranjar uma namorada - o olhar desviou-se-lhe por instinto para a mesa dos putos, para cabelos ruivos escorridos, exuberantes na sua cor de fogo - por isso, posso dizer estas coisas sem medo nenhum.

- Sabe que houveram rosas... - Escapou-me.

- Hã?!

- Nada velhote, estava a pensar alto. Um dia destes vamos à praia, que me diz?

- Desde que não seja no Torel e que tu pagues as viagens... - Encolheu os ombros, como se preferisse tomar um pastis numa esplanada de Saint Germain. Comigo?