sábado, 16 de fevereiro de 2019

A Declaração de Voto de Anastásio Silva



- Avancemos então para almoço... - O senhor Secretário sussurra ao ouvido do senhor Presidente, interrompendo-o. - Mesmo? Quem? Bom, parece que temos ainda uma inscrição. Falta a declaração de voto do senhor deputado Anastácio Silva. - Perscruta a câmara com o olhar entediado, sem fazer ideia de que de ala se levantará a voz que se interpõe entre o seu apetite e a chispalhada à transmontana das quintas-feiras.

- Anastásio, senhor Presidente. - Uma voz mais ou menos a medo. Os membros das bancadas da frente viram-se. Na verdade, todos se viram, exceto os integrantes da última fila. A esses basta-lhes entortar ligeiramente o pescoço.

- É mesmo Anastásio, com esse. - Encolhe os ombros no seu fato creme, nada slim, dos baratos, mas impecavelmente engomado e vincado. Desta narrativa distância, não se lhe vislumbra nenhuma nódoa na parte visível da camisa branca ou na gravata azul marinho. É um homem mais ou menos baixo, mais ou menos gordito, mais ou menos calvo, de grandes óculos com armação de massa que lhe filtram os olhos mais ou menos mortiços.

Não há naquela Casa da Democracia, do Povo, portanto, registo de que Anastásio Silva, deputado, tenha antes usado da palavra. Encontra-se uma inscrição, por alturas da primeira legislatura, mas infrutífera, dado o acaso de terem os dignos representantes da Nação se pegado à bofetada e a sessão sido interrompida com recurso às forças da ordem.
                                                                                 
                                                                                  (A propósito do que: ORDEM, oh Narrador! Voltemos à vaca fria, que se acaba a chispalhada antes de o senhor Presidente chegar e é o cabo dos trabalhos para aturar o homem de mau humor.)

- Como queira, deputado Silva. Pedia-lhe era que se despachasse que a nossa vida não é estar para aqui a ouvi-lo. Para além de que é de mau gosto fazer-nos isto a uma quinta-feira, mas você lá saberá de si. Adiante, faça lá a sua declaração de voto em relação ao decreto que entretanto já foi aprovado. Inclusivamente com o voto da sua bancada parlamentar. Entende a perda de tempo, senhor Silva? - O senhor Secretário cochicha ao senhor Presidente. - Sim, sim, bem sei. Acha que desconheço o regimento, senhor Secretário? - O outro encolhe-se. - Deputado Silva, estamos à sua espera.

...

- Em relação à recente votação do projeto de lei número... - Procura papeis, demora-se. 

- Todos nós conhecemos o número, ande lá para a frente. - Presidencial.

- Bom, trata-se da reintrodução da Pena de Morte, é isto. Tendo votado contra o sentido da minha bancada, e da maioria desta casa, por ser incapaz de contrariar o meu asco ao facto de poder alguém decretar a morte de outro alguém, sinto-me obrigado pela minha consciência a apresentar esta Declaração de Voto.

Senhor Presidente, senhores Deputados,

Votei contra por duas ordens de razão. A saber: Pessoal e Social. No âmbito da primeira, encontro motivações simples, como por exemplo, por indevido acidente da Vida, a hora errada, o local impróprio, a inveja parva, a ironia kafkiana, ver-me eu próprio confrontado com uma acusação e em vias de ser punido com pena máxima. Pior ainda, encontrar-se a prole em tal situação, justificada ou injustificadamente, creio que pouco me importará. Sabem vossas excelências que isto da Morte é tudo muito lindo, até que chegue aos nossos. Por amor à verdade, devo informar que, só por si, isto me levaria a votar contra, mesmo que não fique bem pensar o deputado tão nele mesmo, estando em representação do Povo.

Incomodado por tão profunda convicção me advir de motivos tão evidentemente egoístas, escavei mais fundo no meu âmago, salvo seja, Deus proíba, tentando perceber se outras razões fundamentavam a minha decisão. E sim, há todo um Universo de altruísmo e bem querer ao próximo que me leva a ser contra.

É certo que os assassinos psicopatas são uma praga, assim como os violadores e todos os que abusam das crianças, das muitas e todas horríveis formas pelas quais uma criança pode ser abusada. Não estando disposta, bem sei, esta câmara a debater sem hipocrisia o facto de termos uns que abusam mas pronto está bem, veja lá não se meta nisso outra vez e dê-me uma hóstia, vá com Deus o senhor importante e Nossa Senhora o guarde, veja lá não viole a Virgem, passo só deste raspão pelo assunto. 

Mas sim, há que punir grave e definitivamente os parricidas e os fratricidas e os icidas de toda a espécie, que a nenhum homem cabe tirar o sopro a outro. Quer dizer, menos se for na Guerra. Na Guerra é matar ou ser morto, mais bala menos míssil, a indústria prospera, o cirurgião cose, o político, que não vós, que não vós, rebola no esterco, o soldado apanha o balázio com a testa, não se vai agora condenar quem lho atirou. Pela Graça de Deus. É muito provável que tenha sido. Sou assim estúpido desde pequenino e isto de matar a mim soa-me sempre ao mesmo. Mas têm Vossas Excelências tido o cuidado de me ir ensinando alguma coisinha, como fica provado.

Sou compelido a não esquecer os tolinhos sem consciência, os traficantes... talvez não os de armas, que acharão vossas excelências? Os tarados de tipo diverso e diversas religiões, os drogados com instinto assassino, os extremistas aproveitadores e o que se aproveitam à grande dos extremos, as pessoas que dizem "prontos" e "fostes", os alérgicos a água e sabão, gente que come com a boca aberta e palita os dentes com a língua, os sem escrúpulos e sem moral, os corruptos e mafiosos, os violentos de modo geral, os que batem nos cônjuges, nos namorados, nos amantes, nos colegas de escola, os que não têm coração. - Um gole de água. 

- Também os que guardam lugar nas praças de alimentação, os que passam à frente nas filas, os homofóbicos, os fóbicos todos, os maricas intolerantes, as vítimas de carreira, os que não se enternecem com uma criança, os que não sentem o peito rasgar-se perante um velhinho sozinho, os que têm prazer em torturar um bicho, os que preferem cães a gatos, os que não querem que sejas do clube que és, os que embirram com narizes grandes, os avaros que não se compadecem da miséria alheia, os falsos pudicos, os que matam por ordem de outros e os que os mandam matar. Cá estamos de volta à Guerra, não é, caros co-deputados? Ai não, desculpem, a Guerra não, foi apenas uma recaída de parvoíce da minha parte. - Um gole de água.

- Sendo quinta-feira, deixemos em paz os gulosos, mas não nos olvidemos dos que deixam outros morrer de fome, de sede, de abandono, os que ouvem música nos transportes públicos sem auscultadores, os incapazes de sorrir, os de mau fundo e péssimos fígados. Enfim, todos estes que, digo eu para comigo, não merecem o ar que respiram. 

Assim, declaro que votei contra a Pena de Morte por uma questão de povoamento do planeta e manutenção da espécie. Bom almoço. - E sai no seu passo curto, abotoando os três botões do blazer fora de moda que lhe escondem a mais ou menos proeminente pancinha.

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Alguns, poucos e selecionados, de vós, sabereis porque é que o disparate acima se deu por via desta notícia. Raisparta!