terça-feira, 29 de julho de 2014

Diz que foi um banho de sangue no Japão...





- ... E então o tipo ameaçou que cometia hara-kiri ali mesmo. Depois pensou uns segundos e mudou de ideias. Passou disso para decepar a cabeça ao outro primeiro e, só depois, abrir a própria barriga. Pareceu-lhe mais justo, creio eu.

- São tão drásticos os japoneses!

- E o pior é que cumprem. Na verdade, ele estava à espera que o patrão lhe dissesse que sentiria mesmo a falta dele, que ele era eficaz, cumpridor, enfim, o tipo certo para o posto. Isso evitaria qualquer tragédia. É estúpido, mas no fundo era apenas uma espécie de carência, já reparaste?

- Mas então não disseste que já o tinham escolhido para funcionário do mês uma série de vezes? Isso devia ser uma grande honra não?

- Sim, era. Mas o departamento de RH limitava-se a afixar o nome no Quadro de Honra. O patrão não chegava a vir cumprimentá-lo sequer. Era a politica da empresa. Ele era o melhor e isso era mais do que suficiente. Além disso, era o mais bem pago e portanto, para o outro, isso deixava tudo claro e não era preciso perder tempo com salamaleques.

- Portanto, era estúpido! Pôs-se de sabre em punho por ser tótó, só isso.

- É provável. Segundo as sebentas que encontraram depois, era importante para ele que o patrão lhe dissesse. Os colegas comentaram mais tarde que ele não se cansava de elogiar o boss. Ás vezes até lhes parecia que o outro ficava incomodado. Houve alturas, sabe-se pelos mesmos cadernos, em que prometeu que não o faria, até o outro perceber que lhe faltava. Mas parece que nunca cumpriu.

- Era o que faltava, agora teres que gramar dos teus empregados. Mesmo dos melhores. Trabalho é trabalho, conhaque é conhaque.

- Ah não, não entendas assim. O patrão adorava o tipo. Era de longe o funcionário preferido. Chegou-se mesmo a comentar, segundo a imprensa da época, se não haveria ali um romancezinho entre os dois. Mas, já sabes, nisso os japoneses são diferentes. Cada um sabe da sua vida. Não chegou a haver assunto. Mas claro que isto é só a minha opinião.

- Espera! Mas então o gajo estava de sabre em riste, salvo seja, e disse ao outro o que queria? 

- De acordo com os documentos da policia, e pela minha interpretação, sim. Uma secretária contou que o ouviu berrar: " o que não se diz, não existe! A palavra. É a palavra que te falta! Falta-te tudo!"

- Era só dizer. Porque não disse?

- Ninguém sabe. Uns acham que não disse por honra. Não sentia e portanto não podia dizer. Mas do que investiguei, não acho nada isso. Parece-me que não disse antes porque não se lembrou, distraiu-se talvez, era um dado adquirido, não precisava de ser verbalizado. Depois, já não era preciso, porque seria sempre a pedido. O facto é que dizer não estava nele, ponto. 

- Pois. A tragédia do silêncio... Só se compara mesmo ao drama de desperdiçar palavras até elas perderem todo o significado. Caramba, ao mesmo tempo...

Ter a porta aberta e o lema: "se não vier ébrio é bem-vindo, se não sair satisfeito é porque ainda não terminou", tem os seus contras. Por exemplo, passar o dia a gastar neurónios a ouvir histórias estúpidas sobre crimes no Japão. Os executivos hoje devem ter muito tempo de ócio. Ocupam-se de cada disparate, livra...  

terça-feira, 22 de julho de 2014

A rapariguinha do shopping

Um anúncio dramático:

- Silva, estamos velhos, meu irmão! Velhos, caquéticos, a cair de podres! - estende-me uma folha branca, com um poema impresso, sobre o balcão. E não consigo perceber se o olhar é derrota ou gozo. Um pouco dos dois, arrisco.

Antes de ler, atinge-me a primeira picada: velhíssimos, assim mesmo, no superlativo, ou não trocávamos folhas. Folhas!!, com poemas. Não me permito verbalizar e ataco o texto.

- Oh, que disparate! Toda a gente gosta de músicas velhas, caraças! Até aqueles putos ali. Olha a camisola dos Maiden do mais pequenito. É por isto que achas que estamos velhos, minha besta? - O conforto das linhas familiares e, em certa medida, o balanço bluesy alegre que me enche a mente, desviam-me do lado sério da questão. Se é possivel isto ter um lado sério, penso. É!

- Disparate?! Ai sim? Sabes quando é que isto saiu, sabes? Nem vale a pena, não sabes!! Desconfias que foi ali no inicio dos 80. Mas eu digo-te meu jovem, foi em 1980, exatamente! E olha que exatamente se escrevia com c! - O sorrisinho vai mantendo o tom suficientemente leve para que não esteja a discutir. Ou a lamentar-se. Ou a chorar?! Continua:

- O drama é que... nos lembramos pá!! Não te lembras disso? Não te lembras de ouvir isso? Não uns anos depois, mas logo! Acabadinho de aparecer, ainda quente. - O indicador a abanar em direção à folha branca. Sem c em direção...

- Acho que sim. Caramba, tenho a certeza que sim. E depois? Não acho que tenha 22 anos, amigo. Sei a minha idade e dou-me fantasticamente com ela. Somos melhores amigos até. - Estou empenhado em não me deixar deprimir por esta conversa parva. Mas um franzir da minha sobrancelha, talvez um ligeiro descair do lábio, mostrou-lhe que tinha a curiosidade lançada. Mas que vem a ser isto?

- Silva, acorda!! Somos dinossauros! Vê bem meu irmão: já éramos gente, consciente, quando as miúdas betinhas, giras e hiper cool... - Pausa dramática. - Andavam com revistas de bordados no shopping. DE BOR-DA-DOS! - Perfeita divisão silábica. Primeiro tiro no porta aviões. Há mais?

- Mas não é só! Repara lá, o que acontecia depois de se pavonearem no shopping? Iam apanhar o autocarro! E faziam o quê? MALHA!! Faziam malha Silva! F***-se, desde que me pus nesta trampa de poema que não me sai da cabeça que é muuuuuuuuuiiiiiiiiito provável que me tenha, sabes, errr, "satisfeito" a pensar numa tipa que andava a fazer malha na camioneta! Estou demasiado velho para estas epifânias Silva, o meu coração não vai aguentar. - E riu-se com algum, mas não todo o, gosto.

Pouso um fino a escorrer espuma no balcão. Empurro-o para ele. Amarroto a folha e atiro-lha.

( A vocês, que por algum motivo estranho aqui vieram parar e assistiram, deixo-vos o conteúdo. Infelizmente não numa folha. CLICAR AQUI)

- Por conta da casa, se te calares com essa conversa. Estás a deprimir-me...

- Aposto que tens aí o vinil. Aposto! - Desafia.

Pisco-lhe o olho.

- Eram bem giras as rapariguinhas do shopping. - Avanço para o hi-fi, ainda com prato e agulha, como é suposto, e deixo que a idade da pedra anime a Tasca.





quinta-feira, 10 de julho de 2014

Pantera Cor de Rosa, Missão: Estalinegrado


Ah, a primeira neve! Por fim. 
Tenho a imensa sorte de apertar contra o peito a minha Tokarev. Acaricio a coronha, agradeço-lhe a fome que sinto. Sim, eu pertenço ao grupo de felizardos que ainda têm fome. Não sei quantos somos, sei apenas que somos muito menos que eles. Mas pela fresta da janela entaipada, onde cabe apenas o cano da minha companheira, vejo a primeira neve...

Visto uma T Shirt predominantemente vermelha, não totalmente, o que ameaça tornar o dia bastante incongruente. Para cúmulo, tenho estampada no peito uma esfinge do Guevara, logo abaixo da proclamação: Hasta la victoria siempre! O que sobra de azul e branco nisto, é uma bandeira de Cuba. Se é para ser incongruente, então que seja siempre !
É mais ou menos herdada esta T Shirt. Mas é minha e eu preservo-a (quantos anos já?), como ao resto da roupa. Coisas tuas D. Dulce, obrigado. Poucas, mas algumas, vezes por ano ela brilha. Quer dizer, visto-a. Assim como se fosse o Presidente da Junta de Esmoriz: ninguém faz ideia quem seja, até que o mar leva a primeira linha do bairro dos pescadores e ele aparece na TV. Por trás do Presidente da Câmara, naturalmente.

Será possível? Até onde vai a confiança destes rapazes? Ou é apenas irreverência da juventude? Falta de informação? Ninguém lhe explicou?
Apesar de a farda os tornar todos iguais, olhando daqui parece-me jovem. Mais que o habitual. Encosta-se displicente à carcaça de um tanque queimado. Acho que vai acender um cigarro.
Beijo a Tokarev, penso: Não fumarás! Quase agradeço a oferta. Obrigado pela oportunidade de devolver algum do nosso sangue derramado. Neva, schwachkopf. Devias entender os sinais...

Ele entra descontraído. Peço por tudo que seja este a dar-me a oportunidade. Ando há semanas a remoer isto. A tatear o argumento eficaz, em busca da explicação que dure pelo menos uma época. Este era o tipo ideal: puto, cheio de ar, vermelho... Please?

- Olá Senhor Silva. - O sorriso meio trocista enche-me de esperança. Aceno com a cabeça, apenas. - Entãããããoooo, parece que voltaram a imitar o Glorioso hein? Rosinha, Senhor Silva?!

Obrigado, obrigado, obrigado...

O cano da Tokarev é praticamente invisível a esta distância. Mas há snippers do outro lado da Praça. Como eu deste. Treinados para perceberem o mínimo reflexo, experientes em determinar de onde vem a bala. Preparo-me para o coice da semi-automática, já de cócoras, pronto para correr para o próximo buraco. Sinto o gosto do teu sangue na boca, schwachkopf. Sabe que é uma ínfima parte de todo o sangue que me deves. Vamos pintar de vermelho esse pedaço de neve, tu e eu. A bala parte, tu morres, eu sorrio...

Nem uma palavra. Lentamente puxo o PC para cima do balcão. Levanto o ecrã. Sou um snipper soviético em Estalinegrado, meu docinho. E parece que já neva. Viro a máquina para o miúdo, aponto para a noticia:

Sara Sampaio pediu e o FC Porto deu (sim, é para clicar aqui!)

Por breves segundos, mantém o sorriso trocista. Olha para a imagem do twitter que comprova a história. Lê mais umas linhas. Tenho a impressão que empalidece, mas sei que é só a minha mente hiperbólica a enganar-me. Vai cair redondo, morto! Limita-se a trocar o sorriso por um esgar que pretende ser sorriso:

- F***-se! Ops, desculpe Senhor Silva, saiu-me...

terça-feira, 8 de julho de 2014

A inegável importância de Sonkaya.



- Cá está ele! É este! O grande Sonkaya! - aponto entusiasmado para a pequena foto no ecrã. O puto abandonou o avô na mesa dos velhos e ocupou o seu, por uso capião, banco ao balcão. Eu satisfeito por poder cumprir a promessa de lhe apresentar o turco, ele intrigado com a figura.

- Pois, não conheço, não. A camisola era gira...

- Claro que não conheces. O pior jogador de futebol da História, tenho quase a certeza. - Exagero. É uma hipérbole costumeira, da casa, sinto-a como se fosse uma cadeira, ou um aparador, enfim, mobília da minha mente. De tanto dizer isto, consigo já que uma parte de mim aceite o postulado como verdadeiro. 

- Se era assim tão mau, porque o fomos buscar? 

- Aprende miúdo, quando não temos um Sonkaya, corre mal.  Todos os grupos devem ter o seu Sonkaya. Ele é aquele que faz os outros acreditarem: se este tipo consegue jogar no FCP, eu consigo também. E então dão 200%, comem a relva mesmo. Repara puto, é como se fosse um rapaz muito, muito feio que namorasse com a miúda mais gira da escola. Se ele pode, porque é que tu não poderias namorar com quem quisesses? - Sorrio-lhe. E agora já não me importa que o meu interlocutor seja um rapazinho de 10 anos, já não tenho como parar:

- O Sonkaya faz bem à auto-estima do resto do grupo, em vários sentidos. É o patinho feio, de quem toda a gente quer tomar conta e apoiar. Por isso fortalece o espírito de corpo, a união. Mas não pode ficar por muito tempo. É preciso renovar amiúde os Sonkayas. Senão ele acaba por se acomodar à condescendência e deixa de se esforçar. E os outros entregam-se à complacência e acabam por se aborrecer dele. É por isso que não podemos ter o mesmo Sonkaya para sempre, infelizmente. - Noto o vazio nos olhos dele. Não percebeu patavina. É um puto de 10 anos, pela Santinha, tenho que controlar a verborreia, definitivamente. Desculpo-me:

- Pois, não é lá muito interessante. Mas ok, é este o Sonkaya, o verdadeiro. E ainda não descobri quem será o deste ano. Sem um, estamos tramados pa! E hoje tens cá o avô hein? Que bom... - Desviar o assunto, passar depressa ao trivial.

- É. Veio tomar conta de mim. Ele e a avó. Dormem cá hoje.

- Ah.

- A mãe vai sair. Parece que vai jantar com um Sonkaya...