quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Uma desagradável coincidência.

"Quando isto acabar, podíamos ir jantar, boa?!"


- ... E lá estava a rapariga, cheia de sacos e mais sacos, à procura da chave para abrir a porta do prédio. Caramba, somos vizinhos, já nos cumprimentámos uma série de vezes no elevador, já concordámos e discordámos em Assembleias de Condomínio, sempre fomos cordiais, ia agora deixar a moça às aranhas? Claro que ajudei. Alguma coisa de anormal nisso?

- Até agora, nada. Mas o problema é esse?

- Quer dizer, não propriamente. Carreguei um monte de sacos para o elevador e ainda sobraram uns três ou quatro para ela, mais a chave de casa e a mala e o raio que a parta. Prontifiquei-me para lhe deixar a carga em casa, naturalmente. A tipa abriu a porta e disse: ponha tudo na cozinha, por favor. Ai obrigada, obrigada, desculpe e desculpe, que incómodo e renheunheunheu, enfim, o típico. E olha que aquilo pesava, chiça. Haviam de ser toneladas de comida para a besta gorda do marido, cabrão de merda. Bem, até transpirei.

- Estou a ficar ensonado. Saltas para a parte gira ou vou limpar as mesas?

- Não sejas parvo Silva, isto é sério! Ora, como manda a boa educação, a tipa pergunta se não quero um café, uma cerveja, um copo de água. E eu, estúpido!, aceitei o café...

- Mas não estavas a transpirar do esforço?! Café quente?!

- Também aceitei a água, não me interrompas! Lá ficámos na cozinha, a trocar dois dedos de conversa enquanto ela preparava o café e ia arrumando as compras nos armários.

- Pois, falaram acerca de elevadores e da limpeza do átrio e assim, aposto.

- És mesmo estúpido, Silva! Não se pode desabafar contigo, foda-se pá! Para que saibas, falámos de coisas completamente inocentes. Livros, viagens, preços das mercearias. Bom, o problema foi quando ela se lembrou de guardar os enlatados na despensa. Tu nem acreditas homem! Nunca tinha visto uma coisa assim. Uma infestação de pulgas, mas aos milhões. A parede branca estava preta!

- Puxa, que coisa...

- Mesmo! A mulher deu um grito, eu aproximei-me para ver o que era e pumbas, atacados pelos bichos como se fossem leões e nós indefesos bambis. Tu sabes lá o que é sentir milhões de picadas ao mesmo tempo, pelo corpo todo. Desatei a contorcer-me e a bater em mim próprio, desesperado.

- E ela?

- Queria lá saber da gaja! Também devia estar a fazer o mesmo, acho. Pelo resultado, estava. Só sei que no meio do desespero comecei a desapertar a camisa e acabei por fazer o mesmo ás calças e coçava-me ferozmente. Tenho marcas no peito e nas coxas que mostram a força com que me arranhava!

- Pois, cálculo...

- Com isto tudo, ninguém se tinha lembrado de fechar a porta da rua. Tínhamos os dois acabado de nos encharcar com água, da pia da cozinha, quando ouvimos alguém gritar "COMO??!! A SÉRIO??!!".

- O marido, está claro.

- Pois, o marido. Que situação pá! Eu e a mulher em roupa interior, molhados nós e o chão e a porta da despensa fechada, a esconder a causa de tudo, e o café entornado na mesa, as compras espalhadas por onde calhasse.

- Cristo! De facto... E disseste o quê?

- A verdade, óbvio! Disse-lhe: Trata-se de uma desagradável coincidência. Tudo isto é bastante inocente, como perceberá quando lhe explicarmos...


segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A Lista de Músicas Parvas do Senhor Monteiro da Silva



- Na família, todos temos um comportamento obsessivo qualquer. Quero dizer, pelo menos um. Há quem tenha vários... A mim calhou-me isto das listas. Tenho um primo que é obcecado com danças de salão. Viveu anos na penúria, a gastar cada cêntimo em aulas de dança, em danceterias, em clubes de danças latinas, em tudo o que lhe permitisse estar sempre a dançar. Até que lhe ofereceram emprego nos "Alunos de Apolo". Limpa, arruma, toma conta, faz de guarda noturno... Um tio meu era obcecado por orgãos preservados em clorofórmio. Já está a ver que não me posso mesmo dar por infeliz, não lhe parece Silva? Afinal, fazer listas de tudo e mais alguma coisa não é assim tão estranho e nem sequer é muito incomum. Toda a gente passa a vida a fazer listinhas disto e daquilo, eu só exagero um pouco. E agora, diz-me o meu mais novo, até parece que é moda numa dessas coisas da internet social. Listas, montes de listas.

Encolheu os ombros e suspirou. Nenhum sinal de desconforto, nem ponta de vergonha. Só um ligeiro ar de resignação. Podia ser uma personagem do Murakami, o senhor Monteiro da Silva. Proclamou:

- Deixe-me acrescentar o seu nome à minha lista de pessoas a quem já falei disto, antes que me passe. E já agora, você que é todo melómano, dê-me aqui a sua opinião desta listinha:

Lista de músicas parvas

1. Crocodile Rock (LYRICS)
2. De do do do de da da da (LYRICS)
3. I'd do anything for love (LYRICS)
4. Rat in my kitchen (LYRICS)
5. 99 Luftballons (LYRICS)
6. Push it (LYRICS)
7. Blue Suede Shoes (LYRICS)
8. I walk beside you (LYRICS)

- Hey?! Oiça, percebo a lógica. Tem piada até. Mas... este "I walk beside you" está deslocado não? Olhe que não deve ser da mesma lista!

- Ora, nem todas as maneiras de ser parvo são estúpidas, não concorda Silva?

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Mapas do caminho para a Santidade


- É tão feio bater em quem está no chão Silva! O homem faz o papel dele, podes deixá-lo em paz, sim?

Não posso rebater o argumento. Tudo em mim sabe que está certo, que, salvo a hipocrisia, a atitude correta é ter piedade até do inimigo. Muito mais quando são coisas sem importância, que no fim do dia não nos magoam verdadeiramente, nem aos nossos, aqueles mesmo, mesmo nossos, que amamos.

O nosso receio, ou será hábito?, da arrogância - a alheia, pois claro, que os próprios nunca são arrogantes, modéstia à parte - faz-nos olhar tão desconfiadamente para os magnânimos. Talvez seja pura inveja o que nos leva, tantas vezes, a achincalhar-lhes a nobreza. Esta nossa necessidade intrínseca de fazer pior tudo o que nos rodeia, para que possamos assim viver bem com as nossas fraquezas: ah a imensa alegria de não ser pior do que os outros. E no entanto, perdoar é Santo, sempre que é verdadeiro. Ainda mais se se trata de perdoar os pobres de espírito, que seus serão os Reinos do Céu. À santidade não chegaremos os mais de nós, mas que diabo, salvo seja!, podemos aspirar.

Tenho todo este novelo a desembaraçar-se no cérebro, frações de segundos ou minutos inteiros, não sei, e ouço-o reforçar:

- Por agora deixemos o Bruninho de lado, combinado?

Magnânimo Silva, sem arrogância, sem ódio, diz-me o meu anjo.

- Nem penses! Há-de ser ainda pior! Filho de um grande transatlântico de meretrizes siflíticas... - Respondo eu.