terça-feira, 13 de maio de 2014

Uma clareira para a Caixa de Perdidos



Por esta hora arrumam-se mesas, nada mais. Os velhos de sempre envelhecem pendurados nos seus cigarros, ligados pelo catarro à vida e uns aos outros. Discutirão daqui a pouco, para se provarem que existem, ou troçarão dos derrotados no dominó.

Junto pedaços de um papel rasgado e largado sobre o balcão:

"Olá,

Escrevo-te do fim do amor. Assim, com letra pequena, porque se foi diminuindo.

É uma clareira. Um lugar menos inóspito do que o imaginava, talvez porque ainda esteja para cair uma tempestade qualquer. Granizo e neve e uma onda de fogo que o faça tão desolador como era suposto. Não dói menos, nem aumenta a vontade de cá estar.

Para trás as bestas negras que nos empurraram para aqui. Que digo? Nos? Me. Não te vejo por cá, embora reconheça traços da tua presença. Não chegou a ser uma luz isto. Não estás porque já estiveste, não porque não tenhas chegado.

Adiante nevoeiro. Mas há um homem da meteorologia no meu cérebro: chuvadas, geadas, frios de rachar, nevoeiro, pois claro, e algumas abertas, ténues; mais para o fim da semana aguaceiros, ligeira subida da temperatura, poucas mas boas abertas; noutra altura que não saberemos agora especificar, pode ser breve ou nunca, voltará o Sol e o calor a sério; não deite fora o calção de banho, até porque lhe fica bem.

E é por este boletim que o que me é verdadeiramente insuportável é o que está à volta, nem à frente, nem atrás. És tu: um fio dental numa casa de aldeia; péssimos poemas capazes de trazer lágrimas a olhos tão, mas tão, felizes; a maneira de fechar portas sem olhar; uma saia envergonhada sem que se pudesse perceber porquê; envelhecer em cadeiras lado a lado, pés descalços sobrepostos; a paixão em cataratas nos teus olhos, nas tuas mãos e na tua boca - esta, a da boca, confesso-te que se sentiu sempre, mesmo quando não se podia acreditar. Agora já não.`

À volta desta clareira está, pois, tudo o que me daria sentido e me pareceu roubado. Não me terei enganado, mas é certo que me deixei assaltar com facilidade. O que rodeia o fim do amor é Amor, how ironic. Será Vida o que envolve a morte?

Não cálculo sequer se chegarás a este parágrafo, acho pouco provável. Tão pouco é importante que aconteça, só importa que fique dito, escrito, porque já não sabemos falar com os olhos - tirando dois segundos anteontem, em que nos despedimos e chorámos juntos no meio de tanta gente e ninguém notou. Eu também tive a mesma saudade nesse instante ou outra, pode ter sido só para mim... Perco-me, desculpa. O que se vinha dizer:

Eu escolho sair dos trilhos. Nem para a frente, nem para trás. Vou a corta mato pelas redondezas, alinhar os pedaços por aí perdidos em beirais de janelas. Ficar a contemplá-los. Não temas, serão apenas meus, é claro. Seria bom que o soubesses para que não penses que os sorrisos estão deslocados. Não estarão. Sou só eu a sorrir-nos, aos dois que se dão a mão na mesma, dedos entrelaçados. Os dois que fizeram casa à volta do fim do amor e não se mudam. Tenho passado tempo com eles e deves saber que me determinei a não o esconder. Continuarei por ali não sei até quando, na esperança de me perder num atalho qualquer e ficar, eu também, preso à volta desta clareira. Sem precisar de entrar nela de novo. 

Sabe também que ela é a tua cara chapada e em muitos momentos tenho a certeza que existe em ti. Lampejos. Talvez só uma chama que se protege com as mãos e que o vento do tempo se encarregará de apagar. Isto roubei ao japonês. Como tudo afinal, roubei. Eu, o salteador de estrada que empurro os viajantes para estas clareiras, roubei-me desta vez.

Dói-me muito saber que se olhasses para eles não me reconhecerias. Não sou eu que passeio à volta da tua clareira. 

Já podes, se não o fizeste antes, rasgar este como os outros papeis. Pelo carinho que te sobra, não o deixes em pedaços onde o possa ver. Se quiseres, é só essa a água que preciso de levar no meu cantil: estará guardado em algum sitio, inteiro, aquele papel.

É Amor, foi amor, foi Amor, será quase nada. Eu prolongarei as minhas maiúsculas até me serem demasiado pesadas, se forem. It's a lonely journey ahead, mas tem sorrisos.

Teu. "

Guardo os pedaços na Caixa de Perdidos. Ninguém os virá reclamar, mas...

- Silva, tira lá um "3 Marias" aqui pró campeão, se não te importas. Pagam estes trouxas. Pode ser que um dia aprendam a jogar o belga em condições.

Sorri enquanto fica dois golos de vinho branco mais perto do Fim. Campeão.  

Sem comentários:

Enviar um comentário