terça-feira, 12 de maio de 2015

Porvires e Prestes a Passar ou a questão do cocó de cão




Entre algumas outras particularidades, o Sr. Monteiro da Silva tem um azar bestial com excrementos no passeio. Quero dizer, passa a vida a pisar bosta de cão.

Em si, é um facto mais ou menos desprezível, embora nunca agradável, está claro. Quem nunca sentiu a sola a escorregar quando não era suposto? Detesto enjoar-vos com isto, mas é necessário que se compenetrem não apenas do repugnante da matéria, mas também da impossibilidade de nos colocarmos, qualquer de nós, a salvo de um evento deste género. No entanto, na pessoa do Sr. Monteiro da Silva encontramos o tipo que levou com um raio vinte vezes. No mesmo sítio. De queda do raio, evidentemente. Não faço ideia onde lhe acertou de cada vez. 

Tendo em conta que nenhum dos frequentadores da Tasca é conhecido por tratar dos sapatos ao homem, muito menos o proprietário - este vosso criado, salvo seja! - estou a ver-vos aí sentados a pensar: Oh homem, se não tem nada para dizer, fique caladinho. Você caladinho fala tão bem... Só se passa assim porque sois de vistas curtas, pese embora alguns dos olhos que por cá passam serem bonitos que se farta. Já se sabe que beleza e alcance não são uma e a mesma coisa, ao contrário da Dina e do Zé Gato.

É por isto que quando ele se aproxima do balcão, como agora mesmo, e o fedor começa a elevar-se do soalho, já não estranho assim tanto e começo, mecanicamente, a pensar onde estará a esfregona e o balde. Hoje, apanha aqui debruçado sobre o jornal o Rei do Dominó - um dia conto-vos sobre ele. - que é um rapaz com a mania da frontalidade. As mais das vezes é só mesmo falta de tato, outras, mas menos, falta de educação. Funga duas vezes, a segunda só para confirmar. Sem levantar os olhos do papel, diz alto:

- Bom dia, Sr. Monteiro da Silva. É que não podem restar dúvidas de que é o meu caro e bastante mal cheiroso amigo que de lá vem. - Abana a mão à frente do nariz.

- Mal cheiroso não, desculpe lá. Pelos vistos tive o azar de pisar cocó de cão lá fora. - Anuncia o pisador fedorento.

- Outra vez, meu caro, outra vez... - Diz-lhe o outro, ainda sem o olhar, com um meio sorriso de gozo.

- Se as pessoas fossem minimamente civilizadas, estas coisas aconteciam menos. Caramba, estamos a deixar de ter passeios. Uma pessoa anda que faz lembrar o Niki Lauda numa pista só com chicanes. - Queixa-se amargurado, enquanto olha em volta à procura de uma solução milagrosa ou apenas de solidariedade.

O outro ferve e lateja-lhe uma veia ameaçadora numa entrada da careca. Bate com as mãos no balcão. Exaspera-se:

- Mas que raio, homem! Não lhe parece estranho que lhe aconteça sempre a si? É possível que você ande permanentemente com a cabeça na Lua? Mas não vê onde põe os pés? - Alisa os fios de cabelo brilhante que lhe compõem uma peculiar espécie de franja. O tasqueiro está já ao alto, esfregona e balde apostos, mas meio encantado com o diálogo.

De sapato na mão, desequilibrado sobre uma meia preta e o outro sapato completo, o Sr. Monteiro da Silva inspira e responde sem subir uma oitava ao seu tom normal:

- Não, senhor. Não olho para os meus pés enquanto ando. Ponho os olhos no horizonte. Lá à frente, onde estão as coisas que vêm e não as que se aprestam a passar. Você nunca andou de bicicleta, pois não?

- Por isso é que pisa merda de cão!

- Será. Mas nunca esbarro com as fuças contra um poste!

- Chiça, antes cagar um pé todo... - Acrescento, por instinto. E procedo a limpar as pegadas do meu singular freguês.  

3 comentários:

  1. Respostas
    1. Pois claro, caro Carrela. Mas não se preocupe, os mantos encobrem. É como os tapetes, se o pusermos em cima de um, digamos, poio de cão, podemos tapá-lo, mas não fica o chão limpinho, limpinho ;)
      Abraço.

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