Será um hábito um tanto estranho, este de me deixar estar
quieto - mais pareço um daqueles insetos que conseguem ficar iguais aos ramos
das árvores - envolto no ecossistema, calado à escuta de mim, enquanto dura a
cimeira com o meu cérebro, na qual decidiremos cinicamente se poderíamos viver
aqui. Eu e ele, se mais ninguém. Aqui é onde calhar aterrarmos ou
desembarcarmos, uma estação de comboios de vez em quando, um terminal rodoviário
mais raramente: na neblina Londrina, onde nos sentimos tão desembaraçados; no
tédio das planas avenidas de Copenhaga, com o tráfego a empurrar-nos para Sul;
funanando na Morabeza da Mãe, infinitamente mais pequena do que o que nos
tinham ensinado; ou simplesmente aqui, desta vez, perdendo o olhar no Oceano
que já antes nos viu partir.
Assim, brevemente sossegados, eu e o meu cérebro conversamos.
Concluímos umas vezes que sim, outras que não e quase sempre deliberamos que
precisaremos de voltar para fazer boas escolhas. Mas desta vez somos ambos
silenciados e é dos poros que brota, súbito, o reconhecimento do cheiro das
cadeiras nos alpendres ou simplesmente à frente das portas escancaradas, ao
fresco possível. Abertas igualmente as janelas que a casa se quer arejada, como
a roupa que seca nas cordas do quintal, em redor dos meninos acocorados num
jogo qualquer. Como se nada fosse mais natural que o telhado de zinco e as
paredes de tábuas velhas da cantina do monhé, onde se guardam, suando, as
maravilhas do Mundo ou as lentilhas que cozinham devagar no molho de caril. A
terra ocre entre os dedos dos pés, rolando pneus com paus - um pouco de água
por dentro - em corrida pelos buracos do alcatrão colonial.
Ou então urbanizo modernaço, os tapumes no mesmo zinco mas os reclames já iluminados e os olhos cansados de fumo e tráfego, repousando nos uniformes imaculados das meninas do Basilica College e sua herança de chá das cinco. Os seus maridos to be jogam críquete no campus, longe dos tuk tuk que abrem caminho à buzinadela pela vida. Um estranho "sim, eu sei" que me aflora os lábios perante as sombrinhas e as roupas simples e feias. À esquerda será a Estação, digo eu que nunca aqui vim para mim que nunca cá estive. E não era. Só um pouco mais adiante.
Ah, casa. A Avó que não saiba! Apressar-se-ia a retocar o
pó-de-arroz, embranquecendo as faces, ao contrário dos banianos, esses, eles,
nós!, escarrapachados nas fotografias de antanho. Gritaria ordens para se
distrair: É preciso fazer arroz branco para o menino. Ele não come as suas
lentilhas sem arroz branco. Nem outro caril que seja.
Será este Oceano, Senhor Knopfli, que nos predispõe ao
disparate? Ao cinismo de arrumar, muito direitas lado a lado, as sapatilhas
NIKE e sair chinelando por aí, ao sabor do que o meu IPHONE quiser fotografar:
estas tartarugas que vieram comer à praia, um plástico cheio de mandioca
estendido no chão, aquela velhota a catanar cocos na berma da estrada. E
adormeço no balanço do coral.
…
Sonho com a ratazana de Natal de Herr Grass. Ri-se, como sempre, da estupidez dos homens. Este que
dorme à sombra do tsunami que levou cinquenta – mil – quão diferente poderá ser
dos outros, acordados, poderosos, que tão alegremente vão praticando as suas estupidezes? Dobra o riso e declara:
- Rio-me sem parar desde 1986 e não envelheci um dia. Até o
pobre do Günter já enterrei e parece que lá fora nada mudou. Só me doem um
pouco os maxilares. E a barriga.
Em rodapé da notícia do Fim do Mundo, passam os resultados
da bola. A ratazana estranha:
- Ris tu também? Porventura pensas estar a salvo,
preso em órbita numa cadeira de rodas, achas? Nem ratazana és, porque te ris?
Ah, casa. O meu Dragão rejubilando na vitória. Duplicada,
que são já duas. Avisai o Avô imediatamente. Ele saberá como fazer para que se
adie o Fim do Mundo. Talvez saia para a caça grossa com os estúpidos e os dê de
comer aos leões. Suspenda-se o cogumelo nuclear, a morte Amazónica, o degelo da
calota, mesmo que seja só até maio. Deixai sair a nossa Nação para a Avenida,
sambando como se fosse Carnaval em Ovar. E acordo rodeado de pequenos tubarões
de pontas negras.
…
Faltam-me dados concretos devido a dificuldades no wifi, mas afigura-se muito possível que
se tenha dado o Apocalipse. Não encontro melhor explicação para o facto de me
ter adormecido numa ilha tão familiar, mesmo que nunca lá tivesse estado, e
acordado em pleno Paraíso. Ao meu lado, o Anjo Pecador de sempre. É neste
estado de semiconsciência pós-Apocalíptica que me cai o corpo na água turquesa.
Tépida. Reconheço o sabor deste Mar, pese embora o toque seja diferente.
Seguro-me nas pernas, os pés firmes sobre o coral morto.
Estendido na areia, sem toalha, envergando um modesto
exemplar de calções de banho aos quadrados, tipicamente de meio do século
passado, o Senhor Knopfli brinca com uma ratazana de esgoto. É natural que,
efeito das chuvas ácidas do Dia Seguinte ou das cinzas radioativas, o meu
falecido cérebro sofra de intermitências. No lugar dos coqueiros que se
estendem quase até à água, surge em algumas frames
a fachada do Polana. Uma garça fixa o espelho azul claro da piscina, presa
do jantar das suas crias. Aceno ao poeta:
- Hey, Rui, terá se acabado o Mundo?
A ratazana segreda-lhe ao ouvido. Está claro que as
ratazanas - ainda para mais esta, de origem e fiabilidade Alemã – sabem de
coisas. Os bigodes fazem cócegas na face, colando um sorriso maningue parvo ao
seu interlocutor. Ele responde-me a esfregar a cara com uma mão, a outra içando
o copo de Laurentina gelada:
Que um dia seja a Felicidade a devolver-te a ele.
ResponderEliminarAbraço
Ayubowan! 🙏
EliminarObrigado pelo esforço, Rúben. Era quase Português... Continua a tentar! Força! Tudo o que é muito bom exige algum trabalho. Falar Português, por exemplo.
ResponderEliminarCaro Silva,
ResponderEliminarDisparates do saber estar...
1 abç e boa continuação-
Luis Oliveira
PS: Aquela tirada do Ruben foi armação????
Obrigado Luis.
EliminarQuanto ao Rúben, não faço ideia e, sinceramente, não quero saber. Disse ressabiamento? 😁
Abraço.
Caro Silva, pelos vistos voltou a Moçambique matando as saudades e confirmando memórias.
ResponderEliminarTambém eu tive oportunidade de voltar a Benguela/Angola, mas por isto ou por aquilo, tal não aconteceu. Também, pelo que vou tomando conhecimento prefiro ficar com as memórias, que essas pelo menos não me decepcionam.
Grande abraço.
Infelizmente não, meu caro. Apenas o Oceano é o mesmo. As gentes é que partilham muitas coisas. Dizem-me que Benguela não está nada mal. Mas é gente que nunca lá tinha estado antes, pelo que...
EliminarGrande abraço.
Fodasse Silva!
ResponderEliminarObrigado!
Muito bom mesmo!
Abraço
Obrigado Carrela.
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