quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Disparates meus no Indico



Será um hábito um tanto estranho, este de me deixar estar quieto - mais pareço um daqueles insetos que conseguem ficar iguais aos ramos das árvores - envolto no ecossistema, calado à escuta de mim, enquanto dura a cimeira com o meu cérebro, na qual decidiremos cinicamente se poderíamos viver aqui. Eu e ele, se mais ninguém. Aqui é onde calhar aterrarmos ou desembarcarmos, uma estação de comboios de vez em quando, um terminal rodoviário mais raramente: na neblina Londrina, onde nos sentimos tão desembaraçados; no tédio das planas avenidas de Copenhaga, com o tráfego a empurrar-nos para Sul; funanando na Morabeza da Mãe, infinitamente mais pequena do que o que nos tinham ensinado; ou simplesmente aqui, desta vez, perdendo o olhar no Oceano que já antes nos viu partir.

Assim, brevemente sossegados, eu e o meu cérebro conversamos. Concluímos umas vezes que sim, outras que não e quase sempre deliberamos que precisaremos de voltar para fazer boas escolhas. Mas desta vez somos ambos silenciados e é dos poros que brota, súbito, o reconhecimento do cheiro das cadeiras nos alpendres ou simplesmente à frente das portas escancaradas, ao fresco possível. Abertas igualmente as janelas que a casa se quer arejada, como a roupa que seca nas cordas do quintal, em redor dos meninos acocorados num jogo qualquer. Como se nada fosse mais natural que o telhado de zinco e as paredes de tábuas velhas da cantina do monhé, onde se guardam, suando, as maravilhas do Mundo ou as lentilhas que cozinham devagar no molho de caril. A terra ocre entre os dedos dos pés, rolando pneus com paus - um pouco de água por dentro - em corrida pelos buracos do alcatrão colonial.

Ou então urbanizo modernaço, os tapumes no mesmo zinco mas os reclames já iluminados e os olhos cansados de fumo e tráfego, repousando nos uniformes imaculados das meninas do Basilica College e sua herança de chá das cinco. Os seus maridos to be jogam críquete no campus, longe dos tuk tuk que abrem caminho à buzinadela pela vida. Um estranho "sim, eu sei" que me aflora os lábios perante as sombrinhas e as roupas simples e feias. À esquerda será a Estação, digo eu que nunca aqui vim para mim que nunca cá estive. E não era. Só um pouco mais adiante.

Ah, casa. A Avó que não saiba! Apressar-se-ia a retocar o pó-de-arroz, embranquecendo as faces, ao contrário dos banianos, esses, eles, nós!, escarrapachados nas fotografias de antanho. Gritaria ordens para se distrair: É preciso fazer arroz branco para o menino. Ele não come as suas lentilhas sem arroz branco. Nem outro caril que seja.

Será este Oceano, Senhor Knopfli, que nos predispõe ao disparate? Ao cinismo de arrumar, muito direitas lado a lado, as sapatilhas NIKE e sair chinelando por aí, ao sabor do que o meu IPHONE quiser fotografar: estas tartarugas que vieram comer à praia, um plástico cheio de mandioca estendido no chão, aquela velhota a catanar cocos na berma da estrada. E adormeço no balanço do coral.


Sonho com a ratazana de Natal de Herr Grass. Ri-se, como sempre, da estupidez dos homens. Este que dorme à sombra do tsunami que levou cinquenta – mil – quão diferente poderá ser dos outros, acordados, poderosos, que tão alegremente vão praticando as suas estupidezes? Dobra o riso e declara:

- Rio-me sem parar desde 1986 e não envelheci um dia. Até o pobre do Günter já enterrei e parece que lá fora nada mudou. Só me doem um pouco os maxilares. E a barriga.

Em rodapé da notícia do Fim do Mundo, passam os resultados da bola. A ratazana estranha:

- Ris tu também? Porventura pensas estar a salvo, preso em órbita numa cadeira de rodas, achas? Nem ratazana és, porque te ris?

Ah, casa. O meu Dragão rejubilando na vitória. Duplicada, que são já duas. Avisai o Avô imediatamente. Ele saberá como fazer para que se adie o Fim do Mundo. Talvez saia para a caça grossa com os estúpidos e os dê de comer aos leões. Suspenda-se o cogumelo nuclear, a morte Amazónica, o degelo da calota, mesmo que seja só até maio. Deixai sair a nossa Nação para a Avenida, sambando como se fosse Carnaval em Ovar. E acordo rodeado de pequenos tubarões de pontas negras.


Faltam-me dados concretos devido a dificuldades no wifi, mas afigura-se muito possível que se tenha dado o Apocalipse. Não encontro melhor explicação para o facto de me ter adormecido numa ilha tão familiar, mesmo que nunca lá tivesse estado, e acordado em pleno Paraíso. Ao meu lado, o Anjo Pecador de sempre. É neste estado de semiconsciência pós-Apocalíptica que me cai o corpo na água turquesa. Tépida. Reconheço o sabor deste Mar, pese embora o toque seja diferente. Seguro-me nas pernas, os pés firmes sobre o coral morto.

Estendido na areia, sem toalha, envergando um modesto exemplar de calções de banho aos quadrados, tipicamente de meio do século passado, o Senhor Knopfli brinca com uma ratazana de esgoto. É natural que, efeito das chuvas ácidas do Dia Seguinte ou das cinzas radioativas, o meu falecido cérebro sofra de intermitências. No lugar dos coqueiros que se estendem quase até à água, surge em algumas frames a fachada do Polana. Uma garça fixa o espelho azul claro da piscina, presa do jantar das suas crias. Aceno ao poeta:

- Hey, Rui, terá se acabado o Mundo?

A ratazana segreda-lhe ao ouvido. Está claro que as ratazanas - ainda para mais esta, de origem e fiabilidade Alemã – sabem de coisas. Os bigodes fazem cócegas na face, colando um sorriso maningue parvo ao seu interlocutor. Ele responde-me a esfregar a cara com uma mão, a outra içando o copo de Laurentina gelada:


Chama-se Responsabilidade o avião que me roubará de novo ao Indico. Até quando?

9 comentários:

  1. Que um dia seja a Felicidade a devolver-te a ele.

    Abraço

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  2. Obrigado pelo esforço, Rúben. Era quase Português... Continua a tentar! Força! Tudo o que é muito bom exige algum trabalho. Falar Português, por exemplo.

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  3. Caro Silva,
    Disparates do saber estar...
    1 abç e boa continuação-
    Luis Oliveira
    PS: Aquela tirada do Ruben foi armação????

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    1. Obrigado Luis.
      Quanto ao Rúben, não faço ideia e, sinceramente, não quero saber. Disse ressabiamento? 😁
      Abraço.

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  4. Caro Silva, pelos vistos voltou a Moçambique matando as saudades e confirmando memórias.
    Também eu tive oportunidade de voltar a Benguela/Angola, mas por isto ou por aquilo, tal não aconteceu. Também, pelo que vou tomando conhecimento prefiro ficar com as memórias, que essas pelo menos não me decepcionam.

    Grande abraço.

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    1. Infelizmente não, meu caro. Apenas o Oceano é o mesmo. As gentes é que partilham muitas coisas. Dizem-me que Benguela não está nada mal. Mas é gente que nunca lá tinha estado antes, pelo que...
      Grande abraço.

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  5. Fodasse Silva!
    Obrigado!
    Muito bom mesmo!

    Abraço

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