terça-feira, 17 de outubro de 2017

Para que lado é Marte?

Enche o balde, corre à eira, foge da fagulha, despeja a àgua, volta, enche o balde. Não respires, não desistas, foge da fagulha, despeja a àgua, volta, enche o balde. Corre à eira, até ficares sem beira, olha a fagulha que te apanha, larga o balde, volta. Pega na criança, arrasta a mulher, liga o carro, corre, corre.

O senhor secretário manda dizer que não devias deixar o balde, a senhora Ministra está extenuada, havia de tirar uns dias de repouso, meter uma baixa, mas faz-lhe jeito o dinheiro. O senhor enlutado lamenta que a estrada esteja impedida, as bermas um Inferno só, mas promete que não volta a acontecer. Sofre ele próprio, pois amigos seus de ocasião estão desaparecidos. Omissos.

A criança chora, a mulher grita, o fogo canta, ou será Dom Dinis que recita, qual Nero, perante a sua Roma mandada plantar? Ah, não é altura, agarra no cachopo, nos cabelos da mulher, corre, corre, larga o carro, foge da fagulha, não respires, não desistas, leva o balde, nunca se sabe. Como se corresses à eira, extinta, com uma pouca de água, inútil, vai aos trambolhões pelo meio do lume, antes que o fumo te cegue. Te seque.

Na improvável clareira do Inferno, os telefones não funcionam e os rádios avariaram, mesmo quando era preciso coordenar o salvamento. Diz que o Mundo vai rebentar e tu, já agora, gostavas de estar cá para ver. Parece que o Porto vai ganhar e tu, assim sendo, preferias estar no café a festejar. O petiz tem teste, a mulher tem trabalho, a eira é que já lá não tem nada. 

As televisões mudaram de canal e transmitem as passeatas de protesto, veemente, e gritos de ordem e exigências de dignidade. E aumentos de uns quatrocentos euros, 400. É o povinho que buliu e não mugiu, enquanto lhe vergastaram sem piedade o lombo com o austero chicote; e agora, uma folguinha nas costas, sai em alegre algazarra, reclamando a sua fatia do bolo imaginário. A maior de todas, essa é que é a justa, até deixar de haver bolo. Eira. 

O SIRESP falhou e nos walkie-talkies só se ouve os comentadores falhados, os duendes premonitórios, os sabichões que bem tinham avisado e os populares ávidos do direto, abanando concordantemente as suas cabeças. Distantes.

A rede social está inacessível enquanto a tragédia lavra. Gatinhos e cãezinhos amorosos estarão seguramente a ser deixados para trás, abandonados à sua sorte, quiçá escondidos nos restaurantes que frequentam. O drama suporta-se melhor em ambientes familiares. Poderiam as cabras, assadas, ter ido ao restaurante? 

O tempo que te sobrou para a imbecilidade, meu caro, aí agarrado de unhas e dentes ao cachopo e à senhora, que a eira já lá vai. E as cabras. E a casa. E o carro. Restou esta fuga da mente, uma espécie de descanso. O que daria a senhora Ministra por um momento destes.

Na cada vez mais mirrada clareira do Inferno, não há cibernética, nem cúpula de proteção climática, nem fusão a frio. Não há operacional, nem veículo, nem meio aéreo vindo do estrangeiro. Mas chove. Nem muito, nem pouco, apenas o suficiente para que estes três não se acrescentem a determinada lista.

Não respires, fica direito perante o Presidente, não chores, olha que está a dar na televisão, não protestes, há uma altura certa para tudo. Agradece ao senhor secretário, abraça o senhor enlutado, pergunta pela senhora Ministra. Que não veio, meteu, por fim, umas merecidas férias. Chega-te para lá, que têm de caber na fotografia os senhores que comentam e mais os diretores disto e daquilo, arreda, não tens uma eira para cuidar? Limpar mato? Depois admira-te se arder.

Um estúpido que fez tanto - não! ainda menos! - como os outros, puxa-te pela manga da camisa esfarrapada. Quer pedir-te desculpa por não te ter conhecido noutras circunstâncias. Antes de teres muitos e vários motivos para o mandares apanhar no cu. Desculpa.

Corre, corre, pega na criança, arrasta a mulher, foge daqui antes que venha a cheia. Para que lado é Marte?

...

- Já está, Senhor. - Com ar estranho.
- Muito bem, Pedro. Sei que discordas, mas às vezes tem mesmo que ser. Só aprendem assim, lembra-te do Egipto. - Triste.
- Sim, Senhor. Posso ir, Senhor? - Apressado.
- Pois claro, senhor Pedro, o Pescador, vá lá à sua vidinha. 
- Até depois, Senhor. - Em passo de corrida para a saída.
- Ah, Pedro, é verdade, mantém-me a par da queimada. E nada de disparates, como chuva e assim. Ainda me faltava estragar-se o plano de castigo por falha dos serviços.
- Sim, Senhor. - Sai a correr, comprometido. Bastante.

...

Soundtrack to wildfire: Burn it all!



11 comentários:

  1. Quatro questoes para as quais espero resposta do governo:

    - Quais as causas dos incendios? Como se combatem?
    - Que "protecao" civil é esta? Como se elimina este organismo e cria algo de jeito?
    - Como estes fogos ficam incontrolaveis tao depressa? Medidas concretas e de choque para evitar propagacao?
    - Que ministra é esta? Nao chegam metade dos casos em que revelou incompetencia para ser substituida?

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  2. Outra questao: tendo acontecido o que aconteceu ha 4 meses, como é que o arvoredo continua a arder em cima das estradas? Nao dava para aplicar a lei e mandar cortar isso tudo? Da para proibir a proliferacao absurda dos eucaliptos neste pais? As empresas de celulose têm assim tanto peso?

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    1. Sim, creio que tem. Mas a celulose não pega fogo aos seus eucaliptos.

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  3. E como dizia o José Gomes Ferreira, é precisa uma auditoria internacional, de para onde flui todo o dinheiro associado ao negocuo dos fogos em portugal, desde ha 15 anos a esta parte.

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  4. Quem é favorecido pela politica de terra queimada?
    Quem clamava de joelhos pelo Diabo?

    Tirem os fósforos aos gajos!

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    1. Assim de repente, não sei. Uma banda de Black Metal Norueguesa? Ande lá, esclareça-me.

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  5. Acho que é a PJ. Arranjou boleia dum carro de bombeiros de Pedrogão I e chegou hoje a Lisboa.

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