quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Quebra-se o encanto



Quando as nuvens ainda se espreguiçam pela estrada, as lâmpadas de iluminação pública pairam uns metros acima da cabeça, emitindo uma luz baça pelo meio do nevoeiro, os faróis que se cruzam parecem cumprimentar-se efusivos - ena, por aqui também a estas desoras? Vens ou vais, chegas ou sais? - e a voz do Senhor Kilmister soa doce como o décimo primeiro shot de tequilla, esse que te traz a clarividência de todas as coisas do Universo e, por isso, te leva as forças das pernas e te tomba, derrotado, amassado pela Verdade de seres incapaz de mudar o Mundo e assim cais, enquanto os outros te rodeiam em gargalhadas entarameladas, ignorantes, oh pobres!, da imensa dor da nossa insignificância: sixteen years old when i went to the war.

Dizia, quando são quatro e meia e estás a levantar-te da cama onde queres dormir, sabes que o dia será longo. E que às seis da tarde, tudo terá o aspeto gasto das segundas-feiras às dez da noite.

Por isso, não se pode dizer que deixar cair a carcaça no comboio das dezoito, apenas doze horas depois de teres percorrido os mesmos carris, só que no sentido mau, seja uma má recompensa. Até porque há toda uma ciência da escolha de lugares que pudeste desenvolver em anos de tentativa e erro: isolado de preferência, o mais perto possível do isolado, quase sempre. A lógica é tão simples que faz impressão: se não podes ir sozinho, pelo menos elimina uma possibilidade - um individuo - de te apoquentarem os nervos, dada a ausência de parceiro do passageiro que viaja refastelado e isolado.

Eu sei de cor onde ficam os lugares, portanto nem olho para o número quando peço licença ao senhor abancado do lado do corredor, para que possa morrer por duas horas no assento do lado da janela. Ele levanta-se, com certeza, e noto que emparelha com o casal nos dois lugares da outra margem do corredor. Este espírito alcoviteiro, que reputo de interesse sociológico para me enganar, prende-me imediatamente ao trio. Eles acima dos 65, ou mesmo a rasparem-lhe, ela um cisquinho mais nova. Um pouco mais adiante - mas fica já dito, não vá esquecer-me - virei a saber que partilham o mesmo nome próprio ambos os rapazes. Um de pólo verde, Lacoste, outro de pólo azul, Boss. Ela tem dois óculos escuros dependurados da rede nas costas do banco da frente e

                                       (Ray Bon, no quiosque do monhé, em frente da Sagrada Família, quarenta graus, nós de turistas, os teus pés ainda fresquinhos de não terem percorrido toda a Rambla de salto alto. Se sairmos nesta podemos fazer La Rambla inteira. Que tal, Amor? E tu ingénua que sim, que pode ser, sem saberes que eu nunca a tinha caminhado completa, não sóbrio pelo menos, não fazia ideia da distância. A única coisa que sim, sabias, é que não sei que seja andar em cima de saltos. Depois o arroz negro do Caracoles, bastante menos interessante do que o Caracoles em si, as mãos dadas de sermos namorados outra vez, o quarto à espera, Barceloneta amanhã, quero cá saber que seja mesmo de turista, enchem-me a Alma e o filhadaputa do bar que te quero mostrar não aparece. Sabes, metade, é em Madrid, acabo de me lembrar. Estamos, aqui ou onde for, e damos as mãos e os meus óculos são Ray Bon e o monhé riu-se connosco da marca e cobrou apenas cinco exagerados euros, ou terão sido dez, e sim, somos sempre felizes calcorreantes sem vontade de voltar. Um.)

                                                          uma mala branca, de mão, pousada na mesa retrátil. Não tenho como ter a certeza, mas está decidido que o verde é Lacroste e o azul é Hugo Doss, certificado de garantia da Feira de Espinho ou do Mercado de Ovar. Proeminentes nos seus pólos de marca, valentes panças arredondadas. Ela menos exuberante de abdominal, mas provavelmente de igual calibragem se fosse possível derreter-lhes as gorduras para recipientes medidores.

O Lacroste é o marido. Sei-o porque o trata um pouco pior e lhe arremessa a mãe e a irmã, as dele, à penugem grisalha do rosto, à conta de não saber dobrar o casaco que ela quer que ponha na prateleira acima dos bancos. O Doss é que trata da situação, embora, igualmente baixote, nenhum deles se ajeite a chegar ao lugar altaneiro onde é suposto repousar a veste. Quem são estes meus companheiros de viagem?

É-me inevitável, não consigo escapar a isto. A mais que tudo está sempre a dizer-me, em cafés e restaurantes, para eu não me sentar, de olhos e ouvidos, na mesa de desconhecidos. Mas eu quero saber do que conversam, que histórias têm para contar, raisparta, de que clube são. Não quero sequer que falem comigo, quero só assistir à sua conversa, partir dela para inferir a sua história, teorizar a relação, perspetivar o que acontecerá a seguir. Se isto não é um voyeur, não sei o que seja, Mr. Chance.

Corrijo, O que são Lacroste, Doss e Ela?

...

Doss é irmão dela! Ou terei adormecido entre tentar ouvi-los e fazer uma piada idiota a alguém remoto. É o irmão encalhado, preguiçoso, que saltou de trabalho em trabalho, que nenhuma mulher aturou por muito tempo. Definitivamente, não é o irmão padreco, introvertido, abusado, que ficou até ao fim a cuidar da mãe e a masturbar-se às escondidas, usando as cuecas da irmã. Demasiado extrovertido para isso, está claro. Portanto, resta-nos a primeira hipótese.

Ela, evidentemente, tem uma relação maternal com ele, daí apaparicá-lo enquanto procede a desancar o outro. Apesar de mais nova, foi Ela quem aprendeu a cuidar do irmão, a fazer-lhe a comida e tratar-lhe da roupa, enquanto a mãe dava horas a dias para que ele pudesse estudar. Do pai não sabemos nada. Talvez o álcool, talvez as mulheres, talvez o jogo. Quem sabe são bastardos de um senhor importante e endinheirado. Irmãos, claramente. 

Ela cuidou da mãe quando o corpo lhe morreu, anos antes do cérebro e do coração; cuidou dele desde de que se lembra; e arranjou maneira de cuidar de mais um - e filhos? haverá filhos e sobrinhos? - não fosse a vizinhança pensar que era menos mulher do que as outras. Apesar dos passeios a Lisboa e da língua despachada, é isso que Ela faz: cuida.

Que Lacroste pareça tolerá-lo tão bem é que é estranho. Vai-se a ver, os anos derrotaram-lhe as irritações e decidiu, secretamente, não se aborrecer mais. Por outro lado, à medida que envelheceu, foi-lhe dando cada vez mais jeito um parceiro de copo e sueca, de duas de treta e olhar cúmplice para as mamas das cachopas. Ou torcem pelo mesmo clube ou não ligam nenhuma à bola, isso é certo. Já não são cão e gato, como antes, mas dois amigalhaços que partilham o amor de uma só mulher que o divide em fatias generosas

                                           - ATÃO, ESTAIS A PREPARAR A CALDEIRADA? JÁ SÃO HORAS, EHEHEH. - Grita Doss a poucos centímetros de mim, acordando-me em sobressalto. Está a olhar para o ecrã do seu telefone, no qual decorre uma video chamada, para as fuças de outro qualquer, congeladas na rede instável do Alfa Pendular. Olho para as horas, ainda não se vê Coimbra nos ponteiros.

...

                                                       que depois oferece a um e a outro, consoante a ocasião. Sim, são um trio. Um casal e o seu amigo de anos e anos. "Amigo", assim é que é. 

Que tem? Lacroste agradece a ajuda que lhe tirou, desde cedo, uma série de preocupações tipicamente masculinas de cima. Isto a dois, não há tarefa que não se faça. Ela não tem dúvidas de onde está a sua lealdade e, mesmo que com o tempo acabasse por dividir o coração, é sempre com Lacroste que dorme. O que não impede, hoje ainda, uma ou outra visita ao quartinho de hóspedes. Ou os serões a três, sem televisão, na sala, quando a Ela lhe apetece e a eles não sobrevém nenhuma maleita impeditiva. Se até os vizinhos se habituaram, havia de ser um tão temporário companheiro de carruagem a ter opinião? 

Que tem, como em relação a tudo, raios o partam, mas não importa nada para o caso.

Doss acabou por se resignar a não ter mulher que chamasse de sua. Mas também, tanto tempo investido nestes dois, mais o trabalho e um anexo minúsculo na periferia, como lhe sobraria dia para a corte, o galanteio, uma ida ao cinema à tarde, à danceteria à noite? Não que o não tenha feito, que fez. Mas com Ela, durante um tempo às escondidas, durante o resto com o parceiro do outro lado do corredor deste comboio, sentado do outro lado dela, cada um a segurar-lhe numa mão, enquanto pela cabeça lhes passa

           - BEM, NEM SABES O QUE ME ACONTECEU, MULHER! - Grita Ela para toda a carruagem, telefone colado ao ouvido. Estremunhado, afino o tímpano, porque Ela baixa o tom. É agora que se vai, de alguma maneira, confirmar o que aqui se passa, nesta coincidência de barrigas e pólos de marca coloridos. Sem pôr a mão à frente da boca, como agora fazem os jogadores de futebol, prossegue dois piquinhos de volume abaixo:

- Estive a tomar antibiótico estes dias, por causa de um ouvido, vê lá tu. Deu-me uma diarreia... que maçada. Quando uma pessoa está em casa, ainda vá... - E eu procedi a discutir a etimologia da punheta numa rede social, com pessoal especializado. Bem feito, para não andar a sonhar com a vida dos outros.

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