segunda-feira, 18 de maio de 2020

CLSVO III

É importante que o braço esteja de fora, de modo a que os dedos possam tamborilar na carroçaria, enquanto o vento lhe dá em cheio na bigodaça. Nos velhos tempos, teria um Gold Leaf preso no canto da boca, cruzando Jalalabad Stadium Road, as raparigas do Medical College refletidas nas lentes espelhadas e os Strings a ecoar nas quatro Kensonic, duas à frente e duas atrás, para escândalo dos transeuntes. Ah, lembra-se bem, sempre com o ferro quente da saudade a traçar-lhe o contorno do externo. 

Apesar de tudo, não gosta muito de se perder nessas recordações. tem um estranho carinho por aquele condutor, que é ele próprio, já se sabe, mas, ao mesmo tempo, é outro que o seu novo eu, o seu verdadeiro eu, louvado seja Deus, desprezaria pela futilidade. Seria até digno de pena, quando  não de alguma raiva, tal era a distância que guardava para a palavra do Senhor, pesem embora as cinco orações escrupulosamente cumpridas todos os dias. Era como lavar os dentes, uma coisa que se faz mas cujo significado profundo nos escapa tanto que acabamos a pensar que não tem um. Até nos doerem os dentes.

Esse era aquele que passava a noite em Upper Adda, rindo entre amigos, cuspindo fragmentos de osso de galinha, do pulao, vestido à ocidental para se confundir com os estudantes da Azad Jammu & Kashmir University e segui-los em romaria, para gelados e kulchas, na Rahat Bakers. Ou pizzas no moderno Houston Cafe, com os seus sofás brilhantemente vermelhos e as grandes janelas para a rua. Paredes meias com as barracas dos mecânicos, a cheirar a merda e borracha queimada, onde os empregados se aninhavam no chão, passando os olhos por sonhos de pãezinhos frescos, com sementes de papoila por cima, e chá verde com amêndoas e pistachios. Apenas para acordarem para mais um dia de fome e óleo e fumo de escape.

Até à noite em que um funcionário do Dubai Islamic Bank lhe mostrou uma fotografia do Burj e a existência passou a fazer-lhe um sentido inversamente proporcional às ruas esburacadas de Muzaffarabad. A partir desse momento, todas as noites se imaginou, pequeno, a contemplar o edifício, até onde os seus olhos de humano permitissem, ali mesmo da praça, à saída do Dubai Mall

É certo que entretanto casou e nasceu a pequena Azari, mas tudo se passou como se assistisse a um documentário sobre a sua vida. Ou estivesse a ver um filme no Neelum Theatre, antes do terramoto, quando havia cinema. E é talvez por isso que a distância lhe dói menos do que sente que devia. Puxando a fita este pouco atrás, uma vida só, até ao dia da despedida, poderíamos notar o ar resoluto com que enxugou as lágrimas da filha que não sabia se voltaria a ver; e a certeza na promessa à mulher: mando dinheiro. E toda a gente lhe disse adeus da soleira da porta, com admiração, como se estivesse a entrar na camioneta para Srinagar, carregado de todos os explosivos que iriam libertar os oprimidos do outro lado da Linha de Controlo. 

Azadi, azadi, gritariam pelas ruas, segurando cartazes com a fotografia de Abdul Azim Dukakis e fazendo avançar um caixão vazio. Porque o corpo do mártir se fez em fogo de artifício, para grande honra de todos os seus. Com sorte, a interferência do Senhor desviaria a atenção dos soldados do lado indiano na Passagem de Wagah e, enquanto os hindus gordos se rissem defronte dos seus televisores Onida, as forças de libertação entrariam imparáveis na terra ocupada e expulsariam os infiéis e todos lhe agradeceriam e o Presidente dava-lhe uma medalha tão grande que poderia comprar o Burj com ela. 

Afinal, por qual trejeito da mente não importa agora, estava bem vivo e numa peça só, a caminho da terra prometida, usando, por fim, o shalwar qamiz que o igualaria a todos os outros escravos no bojo do negreiro alado. Allahu Akbar.

...

Navega os quarenta e muitos graus do deserto, as rodas coladas ao asfalto negro, riscando a areia amarela, infinita, os vidros abertos, a poupar o ar condicionado, e as pouco potentes Pioneer dizem-lhe today's another day to find  you, shying away, e tudo isto é capaz de ser pecado mas enche-lhe o coração de uma inesperada alegria, à medida que vai deixando para trás os edifícios de habitação dos subúrbios de Xarja. Passará ao largo dos arranha-céus de Ajmã, a nova Dubai - de dentro da mente alguém lhe grita: kafir! - de olhos postos nas ondas de calor que desaguarão no golfo, sim, mas em Al-Khaima, o último Emirado.

A experiência diz-lhe que o Waldorf é claramente sobrevalorizado, se vamos falar de resorts. É por isso que se dirige invariavelmente para o Hilton, o Beach & Golf em Al Hamra. É mais pobre, que é, mas tem mais brancos. Não é a transportar emiratis que um pakistani segura o emprego e dá de comer a três gerações de familiares. Desde logo porque só por milagre - Alá é o Maior - precisariam de transporte, depois porque estaria a uma respiração errada de uma queixa à central e de um voo só de ida para Islamabad. 

Os brancos não pensam muito diferente, mas têm talvez o peso da culpa na consciência e procuram, ao menos, mostrar-se simpáticos. Com alguns até se pode falar, com as devidas distâncias e suportando a ignorância inerente a qualquer kafir, sobretudo a estes que se julgam mais instruídos do que todos os outros e que das coisas verdadeiramente importantes sabem nada. Basta perceber que vêm aos magotes ao tilintar do ouro, como o resto dos desgraçados, e chegados a uma terra que, embora vá perdendo o rumo, é ainda do Profeta, a primeira coisa que aprendem do Ramadão é a dizer Eid.

Cheira a maresia. Um odor que só aprendeu deste lado do Golfo, mas que de certeza era muito mais intenso do lado de lá, em casa. O erro no Golfo é apenas natural em alguém que nunca tinha visto um rio tão largo. Se vamos lá pelo cheiro, é bem provável que cheirem ao mesmo todos os Golfos, pelo que se considera, para os efeitos apropriados, francamente desnecessário meter-se o leitor mais atento em trabalhos de pesquisa geográfica. Um de Omã, outro Arábico, para Abdul Azim é tinto. Que, já que se toca no assunto, não bebe. Haram.

Nos momentos em que não definhava em suor na cozinha ou fingia dormir, para enganar o corpo, num catre na cave do hotel, procurava tornar-se invisível no meio das multidões na marginal de Jumeirah, como um cão vadio com medo de ser pontapeado. Deixava inundar os pulmões com o que conseguia apurar de ma, por entre o cheiro a batatas fritas,  a gelado, a frutos secos a caramelizar a la minuta. Ao lusco-fusco, quando os brancos - alguns brancos são negros - se começavam a retirar para o resto dos seus afazeres, vermelhos como as lagostas do buffet, sentava-se na areia, tão longe quanto possível dos varredores de areia, beijava, por hábito, a foto da mulher e da filha e lia muito baixinho alguns versos. Alguém que tenta não incomodar. Ao que chegámos: os versículos do Profeta lidos baixinho, numa terra sua, onde os seus filhos são atirados para caves imundas, nos palácios onde os infiéis vêm folgar, por irmãos maléficos que temem a sua revolta. E assim os esmagam sob o peso das suas grandes patorras besuntadas de petróleo. Ah, todas as raças deviam ter uma lenda como esta.

E de toda a inveja, fedor, derrota e saudade, só no Livro encontrou paz. A essa paz se consagrou o hoje taxista Dukakis, da companhia Al Hamra, posse do estado. Para olhos pouco treinados nestas coisas da ascensão Divina, podemos até considerar que não é grande paga para a devoção passar de uma cozinha em Sheik Zayed Road para um volante no deserto. Limitemo-nos por ora a contar o que vemos e ouvimos, sem nos imiscuirmos nos assuntos de espírito das pessoas, sim? 


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