sábado, 19 de dezembro de 2020

Eu joguei à bola com o Samuel!

Gamado em Portugal 80s Metal


Se fosse um filme, talvez a vista fosse da estratosfera. 

                                                         (Meh, mais para cima. Isso, mais para cima. Recomecemos.)

Se fosse um filme, abriria com uma imagem da superfície vista da mesosfera - vá lá, a mesosfera está muito bem, chega perfeitamente para o propósito - e a câmara desceria a velocidade vertiginosa, quebrando a barreira do som e ignorando a estratopausa, detendo-se abruptamente

                                   (Defina-se abruptamente: um salto de bungee sem ressalto. É este abruptamente)

                                                     sobre um pátio de cimento perdido no meio dos prédios que se amontoam ao calhas. Uma espécie de clareira sem serventia de qualquer espécie, dado o aviso sério no momento do aluguer: não é para utilizar! Porquê, nunca saberemos e nunca souberam os arrendatários. Talvez fosse, seja, uma mera pausa urbana. Um improvável suspiro de betão, o alvo perfeito para uma câmara que descesse vertiginosamente da mesosfera, à procura de um local para se deter. Abrupta.

                                                                 (É sobre pátios, isto? Para inicio já vai quase a meio. Adiante!)

Dois miúdos comunicam-se sem se ouvirem, separados por metros horizontais e verticais. Digamos que se gesticulam na diagonal. Por sorte, sabemos a idade exata de ambos: o da marquise de baixo, rente ao pátio, tem 12 e o outro, o da marquise de cima, penúltima do prédio vermelho, tem 13, embora seja consideravelmente mais baixo. 

Acontece que o dilúvio dos últimos dias parece ter tirado uma folga, como que encontrasse o seu próprio pátio inútil, e isso talvez abra uma janela de oportunidade para que se cumpra o planeado jogo grande. O que se dizem, mais por quererem crer do que por honestidade intelectual, é que já não chove assim tanto, está bom até, bem bom, um dia de praia quase, um pouquinho nublado talvez, mas esta cacimbazinha até ajuda que isto não é para meninas. No fundo, estão a fazer figas para que não volte o granizo ou os pingos grossos que fazem barulho e que chamarão a atenção das mães no exato momento em que gritarem "xauxau, é hoje o jogo e já venho, está um calor do caraças". Se lá fora houver um pingo de silêncio nesse instante, passarão despercebidos e safam-se com um "isséonde? vais para a escola a um sábado? se fosse para estudar... vê lá não te magoes e ai de ti que chegues tarde". As mães têm mais o que fazer, já se sabe, mas são bichos muito atentos aos barulhos. Se lhes parece que caem pedras de gelo do céu, tendem a embirrar bastante com os petizes que se aprestam para sair de casa em calções, manga curta, meias pelo joelho e sapatilhas de lona. Mormente ao fim de semana.

           (Eheheh, agora pensei: chuteiras. Vê tu o disparate, serem sapatilhas de lona não era nada mau.)

Paulos os dois, mas o mais pequenito só responde pelo nome nas chamadas dos professores e no pouco tempo em que tem companhia em casa. No resto dos dias é Cuca. Estupidamente alegres e aliviados, encontram-se na esquina e iniciam a subida. Será sempre a subir nos próximos 15 minutos e depois uns 5 a descer, até à Escola Secundária da Falagueira. Estes vêm do lado da Brandoa e são os únicos desta proveniência. Se nos pudéssemos afastar desta condição de narradores observadores - e não podemos, é certo - perceberíamos quão irónica seria a preocupação daquelas mães com o estado do clima, a roupa ou uma ou outra canelada bem assente num jogo de futebol, tendo em conta que os seus rebentos crescem á solta e por sua conta nestas ruas. Que são suas. E é seguramente isso que os fará sobreviver, ou não, aos anos que faltam para as largarem. Ou não. Outros virão do lado da Amadora, percorrerão o Bairro do Bosque, a Falagueira, meterão os pés na lama do caminho recém aberto, até entrarem pelo portão principal. Do outro lado, o portão é secundário e já tratámos - digo, trataram - de o violentar as vezes suficientes para que permaneça eternamente aberto. Como se quer, afinal esta é a casa do conhecimento e deve estar sempre de portas escancaradas.

É o primeiro jogo do primeiro campeonato do primeiro ano de funcionamento da ESF. Estranhamente, o que nos traz a esta memória estupidamente - e surpreendentemente - vívida, é música e não futebol. 

A escola vai do sétimo ao nono. Quem não souber a enorme diferença que vai entre os 12 e os 15 é porque teve uma infância muito esquisita. Isto decidimos nós, narradores observadores e, por inerência do cargo, gente que manda nesta prosa.

Sabemos a idade dos nossos, diremos dos outros que são o nono uma merda qualquer, provavelmente uma letra. De um lado a Associação Recreativa dos Desvalidos e Enfezados da Vida, do outro o Sport Clube Matulões Namorados das Gajas Boas Todas. O maiorzito dos nossos Paulos é um Cuca em comparação. Mas é canalha que enfrenta a chuva e que todos os dias mete os pés na lama. Se vêm do lado destes, aprenderam o caminho por entre os buracos de esgoto sem tampa, sob o lençol de água que os cobre em dias de chuva. E o que tem chovido, senhores.

                            (Já que falas nisso, havíamos de ter t-shirts a dizer "Eu sobrevivi à ESF". Espera, espera, melhor: "Eu fui o primeiro a partir um vidro na ESF". Ah não, foda-se, isso foste tu.)

Os bonzões passaram metade do jogo a recuperarem da surpresa de os pequenitos terem sequer aparecido em numero suficiente para jogar, outro terço a tentarem sacudi-los das pernas, enquanto procuravam a bola no meio das poças de água no saibro. No terço que falta, marcaram, salvo erro, dois golos e sofreram um, sabe-se lá como. Fim. 

Regressam a casa saídos direitinhos das 20.000 Léguas Submarinas. E isto tudo não interessa para nada. Até porque um dos nossos reencontraria um dos deles, anos mais tarde, na final de outro campeonato muito mais sério e ganharia tranquilo. Embora a partir do banco, mas quem é que está a reparar?

O que nos importa mesmo é que um dos Matulões se chamava, sabemos hoje, Samuel Lopes. Irmão de João Carlos Lopes. Naquele campo de saibro, cheio de poças e lama, num ambiente de autêntico desastre aquático, inadvertidamente, tinha o primeiro contacto com algo que viria a ser uma parte importante da minha vida e de quem sou: Heavy Metal

Se o Samuel já sabia na altura que seria baixista dos Satan Saint's, não faço ideia. Assim como não sei se o João já tocava baixo ou se tinha noção de que seria membro dos míticos STS Paranoid.

                                          (Fast forward to Pigalle, por favor)

...

O Café Pigalle, na Amadora, era o poiso da malta da Secundária e dos metaleiros em geral. Diga-se que a Linha, que não a benzoca de Cascais, mas a clandestina de Sintra, era - é? - uma autêntica incubadora de bandas. Daria origem, e fica já aqui o spoiler, à maior banda da história da música portuguesa. E isto não é aqui o estúpido a exagerar.

A Falagueira ficara para trás no 9º Ano, sendo que o oitavo marcaria a conversão definitiva desta Alma ao metal pesado. Chegar à Secundária da Amadora e, ainda mais, ao Pigalle, era como ser admitido no Paraíso. Bebíamos cerveja, jogávamos snooker, trocávamos cassetes, invejávamos as importações de quem conseguia discos de jeito e conversávamos com gente das bandas, com admiração e uma pontinha de inveja. E sim, havia muita droga disponível, tanta que não tinha aquele encanto de "coisa proibída", era antes o mais vulgar, a regra. Talvez me tenha valido já este espírito embirrante de não querer fazer o mesmo que as maiorias. Uma espécie de gajo cagão, vá.

Do Pigalle partíamos em bando para a estação, enchendo as gaiolas dos comboios, espaços onde os picas preferiam não entrar - putos estúpidos, de napa preta, pulseiras e braçadeiras de cavilhas, longos cabelos alguns e muito haxixe - em direção ao apeadeiro do Rego e à nossa outra casa: o Rock Rendez Vous. 

É muito provável que tenhamos sido nós a perder a nossa sala, pelo que sofria a vizinhança nos dias das sessões Metal Army e afins. Íamos ao Rock para afirmar uma cultura, para confrontar e chocar nas ruas, para partilhar em irmandade dentro das nossas paredes. Reparem, Portugal em meados dos 80's: tínhamos um sítio que organizava festas onde íamos para ouvir música a que não tínhamos acesso e, em encanto, ver vídeo-clipes e filmes de concertos!

Daqui nasceria a ideia do Metal Lusitano, uma série de concertos com as grandes bandas da época - Tarântula, STS, Satan's Saints, Procyon, Black Cross e outros - que daria origem ao primeiro álbum do Metal Tuga, um duplo ao vivo, resultado das referidas atuações. 

Perdi os Satan Saint's, o Samuel que me desculpe, mas estive em todos os outros, arranjando 300 escudos à semana, poupando na comida no bar e na cerveja no Pigalle, para celebrar ao sábado à tarde. Sim, era à tarde. O disco nunca foi editado.

... 

Toda a experiência dessa época não pode ser resumida aqui. Há um livro à espera de ser escrito sobre o que foi viver aqueles tempos e tenho consciência que muitas das referências deste texto não farão sentido para quem não esteve lá ou para quem não viveu naqueles locais. Mas esse não era o propósito, a ideia era apenas explicar que, ao contrário do que é habitual na nossa frágil lusitanidade, a música da minha vida tem raiz nacional. É claro que a as primeiras músicas que ouvi eram Maiden e Scorpions, a minha banda favorita - até porque alinhava com a rebeldia da persona - eram os Motörhead, mas a vivência eram os STS no Rock, os V12 e os Ibéria no Ferroviário do Barreiro, o Festival no Central Park da Amadora. E era feliz.

Estes passeios pela Memory  Lane deixam-me sempre - quem não? - nostálgico qb. 

Lembro-vos a todos, irmãos. Lembro-me do gajo meio anão e coxo, mais velho do que nós, que respeitávamos e admirávamos sem reservas, pelo que sabia da música, das bandas, pelo gozo que nos dava falar com ele e também porque nos pintava os olhos à Alice Cooper ou o rosto como o King Diamond. E depois íamos para o meio de centenas de pessoas e suávamos; e apanhávamos os transportes públicos para casa no inicio da noite; e aquela merda esborratava toda e escorria e a mãe quase lhe dava uma apoplexia quando me abria a porta. E um estalo, isso também dava.

Eu joguei à bola com o Samuel e cresci nas mesmas ruas que o Fernando Ribeiro. Eu cresci no metal e na Brandoa, como a maior banda de todos os tempos da música portuguesa: os Moonspell. 

Deal with it! \m/

...

Quem tiver interesse em saber - ou reviver - mais sobre estes épicos dias, não pode deixar de visitar o blogue Portugal 80s Metal e o canal Youtube MetalPortuguêsTV.


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