O local do advento |
O jornal “O Jogo” revelou, em primeira mão, os detalhes da palestra do nosso míster, no intervalo da partida em Moreira de Cónegos. Nessa altura, o resultado cifrava-se num frustrante zerazero e era necessário mudar o estado das coisas. Como é que o balneário fica fora da zona interdita a um treinador castigado, é um pormenor que agora não interessa nada, pelo que foquemos na praticamente divina intervenção do líder que resultou na nossa vitória.
Provavelmente por pudor ou por impedimento derivado do Código Deontológico a que estão obrigados os seus redatores, o jornal em questão informou apenas acerca de uma pequena parte do sucedido. A Tasca fornece assim, e em verdadeiro exclusivo, o relato de todos os acontecimentos, para deleite da sua vasta audiência, composta por vocês os quatro. Enjoy.
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O silêncio é entrecortado apenas pelo som do gorgolejo da água nas gargantas sedentas. Sim, um tipo pode não jogar nadinha, não quer dizer que não desidrate. O aviso fora dado logo após o apito: o mister vai ao balneário! Ninguém se atreveu sequer a descalçar, quanto mais a tomar um duchinho rápido, mudar de camisola ou meter a tocar a Perra. Mas o homem entrou calmo, passeou o olhar pelas cabeças baixas, olhou em volta como quem procura e, num ápice, alguém lhe empurrou uma geleira e ele tomou assento. Falou:
- Tu, o grandalhão que não sabe saltar, vais fazer que jogas mais 10 minutinhos, para enganar os lorpas. Martins, aquece que vais entrar. Entretanto, e mais importante, vamos lá à mudança estratégica e à definição dos momentos que nos levarão à vitória. – As cabeças levantaram-se, salvo seja, e todos os olhos se fixaram no profeta. – Então, entra o Martins para o lugar daquele amigo que estava apto, mas era para os paralímpicos, e passamos ao nosso querido sistema de 442 x 424 / 3124 + YZK x Bola Parada, estamos entendidos? – Todos se apressaram a acenar que sim. – Muito bem! – Concluiu.
Levantou-se, tirou uma água da geleira e voltou a ocupar o seu lugar. Continuou:
- Vamoláver, se isto lá prós 10 minutos estiver na mesma, deixamos os gajos marcarem, tiramos o matulão e metemos um gajo que faça ideia do que é uma bola. Nem precisa de jogar mais de um quarto de hora, caramba. – A sala encheu-se de murmúrios, de espantos, mas nunca de contestação. – É isso mesmo. Arranja-se um golito estúpido para eles começarem a defender ainda mais e a gente partir imparáveis para uma vitória épica, mais uma remontada que nasce aqui, no balneário, à conta do gajo do costume. – Palmas. Inicialmente tímidas, depois mais convictas, a terminarem em ovação, com alguns de pé. O líder faz-lhes sinal que se acalmem, que se sentem, há mais. – Para isto resultar, é preciso que estejam muito atentos. Ora bem, o Eutávio… - Interrompem-no:
- É Eustáquio, míster.
- Quem? Epá, fica Estevão. O Estevão… - Outra interrupção:
- É Stephen, mister, desculpe. – Já muito corado.
- Isso é em estrangeiro, em português é Estevão e o estrangeiro fica à porta do Olival. Aqui somos todos um, todos iguais, imortais e tal, por isso, és Estevão! – Irrompe de novo a sala em aplausos e vivas e gritos de guerra. Alguém começa a assobiar o Amor Eterno. Ele grita:
- Caluda, foda-se! E tu, oh índio, põe-te na alheta que ninguém te vai comprar cds. Continuando, o Estevão vai recuar para a posição do pinheiro, mas, ao mesmo tempo, vai adiantar-se uns 15 metros. Tás com o braço no ar, Estevão. Diz lá. – Um tanto impaciente.
- Oh mister, se eles estão lá todos atrás, se eu me adianto 15 metros vou estar praí dentro da área ou assim. Para além de que não estou a ver como é que recuo, adiantando-me.
- Por isso é que eu é que sou o mister, percebes Estevão? O que é mais importante é que sejas incisivo, tájaver? Ali pá, tau – faz um golpe de karaté na palma da mão – incisivo, muitíssimo incisivo, muito forte naquilo que é ser incisivo.
- Mas isso é o quê, mister? Devo dar pau? Correr mais? É fazer o quê?
- Oh Deus me valha, que tristeza. – Vira-se para o staff – Alguém aqui sabe canadiano? Precisamos de um interprete para este gajo. Não apanha uma, foda-se. Incisaive, aincisive, como é que queres que te explique melhor? Há aí alguém de O Jogo?
- Ah, sim, já percebi! – Bate as palmas. – Incisivo, sim, estou a ver, perfeitamente claro, pois é evidente, desculpe mister, está esclarecido. Muito bem, brilhante.
- Ora até que enfim. Mas isso não chega. Como vamos tirar o aleijadinho, vai para lá o Pepe. – Surpresa geral. Alguém diz, a medo, “o Pepe está na bancada”. Baixinho, um aventura-se:
- É Pêpê, professô.
- Outro que não fala português – exaspera-se – Bem, não interessa, és tu mesmo. E o que tu vais fazer é jogar a lateral direito. Mas vais surpreender toda a gente porque vais fazer cenas que só um lateral direito faria. Exceto defender bem, a ver se eles marcam, ok?
- Qué djizê qui preciso djivi sempri pra dentro não? Pro meio da confusão e posso até - benze-se e beija a tatuagem do santo padroeiro dos laterais direitos da seleção do Brasil - i na linha e cruzá? – O rosto iluminado de alegria e esperança.
- Pá, por mim tá tudo, desde que não te esqueças de meter uma bola a ressaltar num defesa, de maneira a que chegue ali ao moço do Uber para ele marcar, ok?
- Eu vou marcá, professô? – Incrédulo.
- Pois claro que vais, se te estou a dizer. E ali o lampião vai fazer uma assistência que até ficas parvo das vistas. Tá tudo controlado, amigo. Aliás, até marcares, podes tirar o cavalinho da chuva que não sais.
- Mais…mais…tô pegando no duro lá no Ubé ais… - Um gesto de mão do comandante cala-o:
- Já disse! Depois de marcares, podes ir à tua vida. Vá, agora vou andando, antes que vocês comecem aí aos berros e a bater no peito e o cuaralho que já não tenho pachorra para essas merdas. Andor lá pra dentro dar a volta a isto.
- Mas está zerazero, Sérgio.
- Ainda, Vitor, ainda… - E deixa um rasto de luz enquanto se encaminha para o camarote que lhe esteve destinado.
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Agora vão dizer que eu inventei isto
tudo, mas eu e o O Jogo sabemos bem que foi exatamente assim que se passou.