quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A Mesa do Canto: Hora do conto (com Lápis Azul e Branco)


A verdade, verdadinha, é que a Tasca cumpre uma importante função social: Tomar conta de maduros. E de menos maduros. E do catraio de uma moça de olhos claros, de vez em quando.

É a modos que um "Bichos Carpinteiros", onde as senhoras deixam os seus mais que tudo; os seus maijómenos importantes; os antejaqui que em casa a moer-me a paciência; e um ou outro nemmaceguinha te queria. E lá vão, lampeiras, à sua vida, às suas compras, afazeres, Bertos ou meros esparrejamentos em sofás, deixando os programas vespertinos de televisão - onde andam as baleias nestes tempos de reality shows e apresentadoras romancistas? - drenarem-lhes os poucos miolos que lhes sobram. De aturarem os que eu gosto de aturar. Em sendo pago, pois claro.

Portanto, era mais que tempo de adequar a oferta e criar um espaço lúdico-pedagógico: A hora do conto. Como o cómodo é escasso e as moscas abundam, arruma-se tudo à volta da Mesa do Canto e entrega-se a cabeceira a um pedagogo. Dos lúdicos.

Que o rapazote tenha arranjado um fato de Lápis, qual personagem de uma Rua Sésamo da vida, já é bónus do artista convidado. Advém-lhe do brio profissional e não acresce ao cachet. E o que a malta gosta de bonecada.

Ele pigarreia para aclarar a voz. Os velhos imitam-no, por vício de pigarrear. Os restantes inclinam-se para a frente nas cadeiras, com as mãos entrelaçadas entre as pernas abertas. O puto abanca-se no chão, com as pernas à chinês. Eu decreto:

- Silêncio, vai começar.

...

Astérix e a Romanização

Esta estória não se passa no tempo de Astérix, Obélix e Ideiafix. Esta estória passa-se muitas, muitas gerações depois. 


Naquele tempo (perdão, Senhor), este trio de heróis liderava as aventuras da tribo de irredutíveis gauleses que se recusava terminantemente a vergar perante o invasor romano, fazendo da manutenção das suas tradições e costumes de gauleses um ponto de honra. 

No tempo desta história, a aldeia gaulesa já mal se conseguia reconhecer. Já não havia heróis, para começar. Ou se calhar havia, mas noutras paragens. E, mais importante, os ideais da famosa tribo ficaram soterrados sob as areias do tempo. 

Não sei quantos chefes já lideraram a aldeia desde Abraracourcix, mas foram seguramente alguns. A irredutibilidade esbateu-se, as luzes brilhantes do império romano tornaram-se progressivamente irresistíveis e os chefes, um após o outro, foram estendendo a passadeira vermelha ao invasor. Houve até um que deixou o seu cargo na aldeia para ir fazer política para Roma. E os que não chegaram tão longe, foram abrindo os portões da aldeia. 

O peixe de Ordemalfabétix, por mais robusto que fosse para zaragatas, foi preterido pela oferta trazida por grandes mercadores de outros ponto do Império, sacrificando o sabor do "mar de Lutécia" pela poupança de sestércios. O mesmo em relação ao negócio de armas de Éautomatix, cujo neto se viu forçado a fechar, abandonando também ele a aldeia à procura de uma vida melhor para si e para a sua família. Tal como Assurancetourix, o bardo, que foi forçado a juntar-se a uma trupe de saltimbancos e até Panoramix, trocado pelo engodo do sistema de saúde público romano. Sobrou apenas o artesanato de menires em miniatura para turistas. Grande parte das crianças da aldeia vai estudar para Roma, onde acaba por se fixar pela maior facilidade em exercer o seu ofício.

O chefe de agora aparenta querer retomar onde Abraracourcix parou, mas a inércia dos seus conterrâneos e os tentáculos do Império não lhe vislumbram uma tarefa fácil. Logo veremos se mais cedo ou mais tarde não seguirá também inebriado pelo odor do poder.

Infelizmente, o problema não é exclusivo da famosa aldeia. É transversal a todos os territórios ocupados pela macrocefalia da capital. A romanização é uma triste realidade e por vezes parece ser um processo imparável. Os políticos de Roma montaram um sistema, aperfeiçoado ao longo dos tempos, que concentra na capital os recursos de todas as províncias, essencialmente para benefício próprio. 

Este sistema faz engordar Roma, ao mesmo tempo que esvazia o restante do Império, reduzindo-o a mera paisagem. Isto, inevitavelmente, provocou um movimento migratório de todas as periferias para o centro romano, que se estende já por várias gerações, ao ponto de actualmente grande parte dos habitantes da capital não serem romanos. Há um melting pot de gente de muitas tribos e aldeias dos quatro cantos do Império que, perante o irresistível desejo de se integrarem na sociedade romana, se transformam em romanos da noite para o dia, renegando as suas origens.

Durante muitos anos, foi através do desporto que a aldeia conseguiu manter a sua identidade, quando os demais sectores da sua sociedade já se haviam rendido aos impostos pela capital do Império. Não o desporto favorito de Obélix, o espancamento de romanos, mas o "foutbôle", o jogo mais apreciado por todo o Império. 

Como não poderia deixar de ser, para os romanos este era um jogo de XI contra XI, mas no final tinham que ganhar sempre eles. E assim foi durante décadas, até que um jovem e destemido chefe da equipa gaulesa desafiou e derrotou o poderio romano. 

Esse domínio de décadas da principal equipa romana, a única que tinha permissão para ganhar e para contratar os grandes jogadores de todo o Império, e portanto, a única que poderia brilhar quando defrontava equipas de outras civilizações e impérios, gerou em todas as províncias romanas uma enorme onde de apoio, alargando a sua base de apoio a todo o território - incluindo na "nossa" aldeia gaulesa. Esse apoio transmitiu-se de pais para filhos, de geração para geração, subsistindo ainda hoje como a maior base de apoio de todo o desporto interno.

Qualquer político romano que se (des)preze, jamais poderia desperdiçar esta muleta e deixar de cavalgar esta onda fácil. Jamais alguém em Roma se atreveria a desaproveitar qualquer oportunidade de se associar a uma vitória das equipas romanas, por mais insignificante que fosse. Folclore gratuito para todos, sempre que possível, granjeando simpatias e evitando que se olhe para outras coisas entretanto.

Voltando à aldeia gaulesa e ao bravo chefe da equipa da aldeia, foi no seu consulado que os papéis se inverteram, inaugurando um inédito período de glória ímpar em todo o Império, mobilizando atrás de si todos os verdadeiros gauleses, da sua aldeia e de muitas outras espalhadas por toda a Gália. A história de sucesso foi tal que por todo o Império, e até em Roma, se conquistaram muitos novos apoiantes. 

No entanto, nem todos na aldeia ficaram agradados com o estrondoso sucesso do (agora já não) jovem chefe e do seu clube. Alguns foram sodomizados pela tal onda romana ou simplesmente herdaram a sodomia. E aos seus olhos de lacaios, nada como enfrentar os seus "irmãos" gauleses para agradar os mestres romanos e, quem sabe, arrecadar alguma migalha vinda da capital.

Hoje, o chefe já não é jovem nem destemido. E na aldeia já não há quem faça frente à sufocante romanização. Não há? Há pois! Milhares de gauleses estão dispostos a defender a sua aldeia perante todo e qualquer invasor. Só falta quem os volte a mobilizar em torno de uma bandeira que os una.

Qualquer semelhança com outra qualquer realidade é puramente intencional.

Lápis Azul e Branco,

Este senhor opta por escrever na ortografia antiga. Bota de elástico.
...

Quando pedi ao Lápis que ocupasse a Mesa do Canto, para explicar porque é que os de lá de baixo parecem condescender mais com as suas paixões fintabolisticas - muitas vezes deixando-me na dúvida sobre quem é, de facto, bairrista - previ uma crónica de opinião. Direta, ao bom estilo Lapisiano. Já se sabe que não fez nada do que eu lhe disse!

Em vez disso, Sua Senhoria mandou o seu labrego entregar-me o ópus acima. Que tem tudo, mais a extraordinária qualidade de nos deixar a pensar. Para além do cuidado na metáfora. Tasca style, arrisco do alto da minha proverbial modéstia.

Por isso, obrigado três vezes, pá. Uma delas pela inveja. Porque raio não havia de ser eu a escrever todos os bons posts? Não percebo...

...

Soundtrack to kindergarten: Cry for Pompeii

14 comentários:

  1. Muito bom Lápis.
    "E aos seus olhos de lacaios, nada como enfrentar os seus "irmãos" gauleses para agradar os mestres romanos e, quem sabe, arrecadar alguma migalha vinda da capital."

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    1. E acabará por arrecadar. O lacaio. Mais tarde ou mais cedo...

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  2. Sem dúvida "Alguns foram sodomizados pela tal onda romana"

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  3. Não há? Há pois! Milhares de gauleses estão dispostos a defender a sua aldeia perante todo e qualquer invasor. Só falta quem os volte a mobilizar em torno de uma bandeira que os una.

    A Bandeira temos!!!
    Os Milhares de adeptos tambem!!!!

    E é ppr isso que esses romanos fdp têm tanto medo de nos... que tal como a fenox nos vamos erguer das "cinzas" e desta forma dizimar essa capital do imperio falido...

    Ja esteve mais longe... 😉

    Parabens aos 2...

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    1. Obrigado Xebeu. Em nome do mal educado do Azul e Branco também. Isto a criadagem, pfff, já se sabe...

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    2. Eu também agradeço. E reconheço que em vez de "bandeira" deveria ter escrito "porta-estandarte". Mas não me soava bem :-)

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  4. Grande Lápis...
    Eu cá teria "metaforado" o Romeu e Julieta, visto que o nosso presidente é para o que está neste momento... mas de qualquer modo tinhamos que desconfiar do gajo que fizesse de Frei Lourenço! Vieiras há muitos e RGS's nem se fala! E depois as Julietas são mais que os campeonatos ganhos pelo Sporting desde que o Romeu, quer dizer Pinto da Costa está ao comando da nossa aldeia!

    P.S. A chamada do Ordemalfabétix, vulgo João Pinto, é para repor a tradição na aldeia?

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    1. A tradição não sei, mas lá que as zaragatas terão mais piada, disso não haja dúvida.

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    2. Despachar os contrapesos e chamar o Nº 2, faz dele um Capuleto ou Montecchio, Felisberto?

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    3. O JP nunca saiu do clube, falta saber se agora vai mesmo poder "dar uso" à sua experiência ou se vai apenas decorar o balneário. Tenho-o como um homem bom mas acima de tudo grato ao presidente, pelo que não sei qual das duas se vai sobrepor à outra.

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    4. Eu creio bem que a chamada do nosso nº 2 faz dele um... Shakespeare!
      Eu pelo menos como um dos milhares de adeptos e sob a bandeira, ainda confio no nosso velho Abraracourcix (ou Matasétix, conforme as traduções)... mas isso sou eu.

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    5. Muito mais que Shakespeare, é um Valter Hugo Pai :))

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  5. Senhor Tasqueiro, não tem por que agradecer, o cheiro a petiscos e aquele tinto especial já pagaram a conta. O prazer foi meu.

    Abraço

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