sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Das cinzas, fogo?

Há um ser que me habita. É um louco, creio. Digo-o porque o sinto a esbarrar contra as paredes, de cabeça, amiúde. Em dias certos fá-lo com violência. E sangra, de dentes e punhos cerrados, e pula tão alto que esmaga o topo do crânio no teto de betão. No concreto, para ser totalmente verdadeiro.

Acaba-se exausto na poça do seu próprio sangue, sem remédio, confinado ao espaço reduzido que lhe sou. Sossega então, umas vezes como um menino angelical adormecido; outras num estranho estado catatónico, do qual não se espera remissão. Se voltar, será sedento e esfomeado, de braços tão abertos que o Mundo todo é apenas um abraço.

Durante muito tempo invejei-o. Soltei-o em centenas de folhas ingénuas, quase sempre virgens incautas, embevecidas por aquele fulgor selvagem, desconhecedoras da doçura que só os anos conferem, intrinsecamente ignorantes do verdadeiro talento. A força do treino, a minha vergonha alheia e os olhos sempre muito abertos, talvez o tenham melhorado em alguma parte de alguma arte. Se tanto.

Depois, fiz dele um protótipo. O arquétipo apenas, o que não precisa de se cumprir, mas orienta o caminho. Dei-lhe voz em longos monólogos, por vezes em frente a outros, sem que me interessasse particularmente pelo que pensavam. Ou sequer se ouviam. E divertia-me e sonhava e vivia - oh sim, Vivia! - nas delícias das cornucópias de palavras e de gestos desmedidos. De uma Paixão que eram muitas, que eram todas e nenhuma em particular. Cada guinada de dor ou de felicidade, uma mera acha para essa fogueira imensa que deveria iluminar o Universo. Para ele, esteve sempre demasiado escuro.

Um dia acordei a detestá-lo, porque a Vida me reclamava a tranquilidade que ele diligentemente me roubava. À minha espécie de cansaço, respondia com mais uma viagem, uma nova montanha ou uma descida alucinante a toda a brida. Se tentasse fugir em sentido contrário, ele detinha-se. Pois que o seu objetivo era que não me deixasse estar parado, apena. Mesmo quando lhe explicava que era tempo de ver a paisagem, de apreciar a obra, de beber a palavra plantada. Fecunda. A tudo me respondia da mesma forma: Está sentido, está morto, está feito.

Aprendi a tê-lo por uma trela. Mas só com muita ajuda, à força de muita força de braços vários, me foi permitido não andar a correr atrás dele. Como um animal, libertei-o com frequência em espaços abertos. De mão na mão de quem, por determinação e - talvez, só talvez - algum Amor, vinha brincar connosco nos momentos de soltura, passou a ser possível desfrutá-lo.

Rebelou-se sempre. Porque escolher os momentos para Ser é negar a essência de quem É. Permitir-lhe a Vida em pedaços, como a Felicidade, é decretar-lhe a Morte em todas as horas fora desses torrões de tempo marcado.

Até uma noite em que nos postamos de frente, de novo avaliando a dimensão da destruição em redor e em nós, e ele não encolheu os ombros às minhas lágrimas. Pois era eu, e comigo ele, que se perdia. Por fim. 

Então resignou-se a sobreviver faminto da reciprocidade. Um fogo eterno que se alimenta do fogo que lhe devolverem. Atiçando-o. Fazendo-se cinza enquanto o tédio enche de penumbra o cubículo da nossa existência.

Hoje disse-lhe: Não espero que me morras, pois serei eu o cadáver desse fenecimento. E é cedo e chove. Sobretudo, não é agosto, aquele agosto em que nos consumiremos gloriosos, na expetativa da contabilidade dos prantos e das vestes que se rasgarão por nós. Por ti e por mim. Ainda que me doas nos teus acessos de loucura, estou em Paz contigo. Como com poucas coisas na Vida.

Acho que sorriu. Lgeiramente. Não disse nada. Eu sim: Tenho saudades tuas, muitas vezes. E, hoje, sei que preciso que te acordem para te ver. Também sei que há tantas coisas importantes para tanta gente fazer, que só por uma incrível coincidência a mão necessária te tocaria. Mas sabe que me conforta que estejas aí, a espaços mais espaçados a bater com a cabeça nas paredes. Inconformado deste abandono. Porque para todo o nosso sempre, tu és eu.

Ele apagou a luz e deixou-se escorregar para o chão frio. Doíam-lhe as costas.

5 comentários:

  1. Eis a diferença de sortes.
    O teu ser ainda existe. O meu há muito que me abandonou. Tirou-me a rebeldia, a resistência, a coragem. Agora habita em mim a resignação, o conformismo, a submissão. Quando se foi embora foi o primeiro dia do resto da minha vida!
    E curiosamente não apagou a luz quando se foi embora. Foi num dia soalheiro! Para nunca mais dar noticias...

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    1. Custa-me a crer. A chama de um Dragão não se apaga. Pode é arder baixinho...

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  2. «... a psique é uma totalidade superior à consciência, é a mãe e presuposição da consciência...»
    - CGJ

    abraço

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