quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015
Medo do escuro ou as palavras desconhecidas.
Ficamo-nos pelas luzes de emergência, todas apontadas à saída, embora saibamos que nos deixaremos estar por aqui até a garrafa acabar. Partilhamos uma tristeza qualquer, por nós e, ainda mais, pelo que estão tristes outros de quem fomos aprendendo a gostar. É um bocado estranho como a tristeza tende a nivelar os escalões da amizade.
Abano a cabeça, enxotando a silvesca mania de desatar a filosofar baratinho nos momentos mais inadequados. Empurro outro shot de vodka pela goela, ele esboça um meio sorriso e, assustadoramente, quebra o nosso silêncio crepuscular:
- Uma das memórias que guardo da minha infância, daquelas recorrentes, é as falhas de abastecimento elétrico. Eram comuns. A luz falhava uma, duas, três vezes e depois...puf!...apagava-se mesmo. Os pais apressavam-se para a gaveta das velas e para o quadro incrustado na parede do corredor. Eu corria para a varanda da sala.
Hoje sei que era estúpido, mas na altura não tinha alternativa, era um impulso irresistível de correr para a varanda. Depois dos ameaços, o meu coração estava aos pulos. Quer dizer, eu sabia que ia acontecer, que era inevitável, mesmo que já me tivessem contado de ocasiões em que só ameaçava e depois, por qualquer milagre, não se apagava. Ainda assim, em todas as falhas momentâneas, ficava agarrado à esperança de que era desta que a luz se aguentava, mesmo que estivesse cada vez mais ténue. E mesmo depois de ficar tudo escuro, essa esperança empurrava-me para a rua.
- Porque estava mais claro lá fora, se calhar.
- Estaria, se fosse dia de Lua. Mas nem era por isso. Era a esperança de encontrar uma luz acesa. Um sinal qualquer, no meio da cidade negra, que me alimentasse aquela crença. Já não a de não falhar a luz, que já se fora, mas agora uma outra que a substituía: a de que o corte fosse de curta duração e tudo voltasse ao que era rapidamente. Como se fosse possível, Silva. Como se entretanto não tivesse já ficado escuro, como se a luz que voltasse pudesse ser a mesma que se apagara. No fundo, corria para a varanda à procura apenas da negação do facto, nada mais. Até a minha mãe aparecer e me puxar para dentro, de volta à casa que agora tremeluzia com a claridade fosca das velas.
E ali ficava, colado à janela, à espera que toda aquela escuridão principiasse a acender-se. Mergulhado no meu silêncio. No pior dos silêncios, que é o de não ter nada que valha a pena dizer.
Apertei-lhe o ombro, menos para confortá-lo e mais para que me devolvesse o conforto. Partilhamos esta garrafa e este aperto e não temos mais nada para dizer hoje.
- Não inventaram as palavras que possam impedir o escuro...
- Ou nós os dois não as sabemos, meu querido tasqueiro.
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