quarta-feira, 27 de maio de 2015

A ronda das mesas e o pano voador



- Copo de três e sande de torresmos. Era tinto, não era?

- Sim, tinto, claro.

- Que ar abatido homem. Deixe lá isso, para o ano há mais. - Não evito um sorrisinho parvo, como tantos que tenho recebido nos últimos tempos.

- Não seja cruel, Silva. Sei lá se temos outra hipótese desta. E você parece todo contente. Tem alguma coisa contra o presunto?

- Contra o presunto, nada. Aliás, se for à terrinha, traga um. Prometo que o preparo de dez maneiras diferentes, entre ovos, ervilhas e um bacalhau de truz, de modos que até a tristeza lhe passa. Mas sim, confesso que não fiquei nada chateado.

- Não percebo, prefere ter de ir à Madeira mais uma vez? Era bem feito que perdesse!

- No momento em que o seu treinador disse que o Chaves era o 5LB da Segunda Liga, passei a torcer pelos outros todos. Madeirenses incluídos!

- Oh... - E avia o tinto de um golo só, em vez dos três. Hat-trick portanto.

- Mas olhe que pensando bem, o homem tinha razão. São mesmo o 5LB wannabe. Pumbas, arrasados aos 90 + 2! - Embrulha outro sorriso parvo!

- Foi aos 90 + 3. Traga-me outro, seu anti-transmontano primário.

- 90 + 2, 90 + 3, Kelvin, Ivanovic, Tondela, é tudo derrotas do 5LB.


...

- Abatanado, ovos com cogumelos e malagueta, sumo de laranja e panquecas. Estamos com fome, coisinha linda.

- Deixe-se de lérias, seu maroto. Já sabe que daqui não leva nada. - Distende os lábios berrantemente vermelhos, vincando as rugas das bochechas. - Estou a aproveitar, já não sei quanto tempo mais vou poder pagar o seu pequeno almoço especial. Acha mesmo que ainda podem cortar-me a pensão? Esse Coelho e mais o amigo dele, o indiano da Câmara, ou lá o que seja, são uns grandes malvados. Se o meu rico marido fosse vivo havia de lhes dizer das boas...

- Não sei, minha querida. É ano de eleições, vai ver que não cortam nada tão cedo. Se calhar nem precisam de cortar depois, não pense nisso. - Minto-lhe piedosamente.

- Deus o oiça.- Benze-se e beija o dedo.

- Mas olhe, se cortarem, ofereço-lhe o pequeno almoço especial da casa uma vez por semana. Resolvido?

- Combinado! Eu pago-lhe com umas coisinhas que fui sabendo por aí, acerca de um passarinho novo que ronda a casa da sua amiguinha dos olhos claros. - Pisca-me o olho e eu sossego.

...

- Quer que ponha a sua bica em cima de um dos molhos de papel? Ou deixo no chão? E a meia torrada? Enfio-lha pelas goelas abaixo ou vai arranjar um espacinho na mesa?

- Irra, que você é chato! - Amarrota umas quantas folhas e abre uma nesga de superfície de madeira sob a resma de papel. - Bote aí, pronto!

- E então, avanços?

- Começa a fazer sentido, Silva. Acho que isto é um continuum e não peças soltas. Preciso de algum tempo mais.

- Tempo não lhe falta, avôzinho. A menos que bata a bota no entretanto, claro. - Dou-lhe uma palmada nas costas.

- Não tenho planos para morrer, meu caro. Mas nunca se sabe se não somos apenas habitantes de um grão de pó no casaco de um ser desmesuradamente maior que nós. E às vezes, sacode-se o pó da roupa...

- Isso é que é colocar as coisas em perspetiva hein? So much for the meaning of life.

- Oh, deixai-vos estar preocupados com as vossas coisas transcendentalmente importantes. Como a cor das pessoas, a sua inclinação sexual ou quem devem tramar a seguir no emprego. No fim do dia, pode ser que vos nasçam filhos. Aí começarão a perceber um bocadinho da verdade.

- Você é um lírico. E vou mas é tratar de vida, que isso dos filhos irrita-me. Parece que nascem já aflitos para se porem a mexer...

...

Grita o transmontano, lá do fundo:

- Oh Silva, parece que o seu clube contratou outro Espanhol!

- Ai sim, quem é? - Berro-lhe de volta.

- Acho que é o Kinder. Diz que vai ser uma bela surpresa e já jogou no Real.

- Quais Kinder pa! Chama-se Bueno, sua besta.

- Kinder Bueno, Mars, Pintarolas, é tudo chocolate. - Desata a rir enquanto bate com a mão no joelho.

Voa o pano húmido de limpar as mesas...

9 comentários:

  1. Excelente. Mas num se diz bica.

    Diz-se cimbalino, carago.

    E nós vamos ver quem é o Kinder não tarda nada.

    Abraço Azul e Branco,

    Jorge Vassalo | Porto Universal

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    1. :) Eu sabia que não passaria. Qualquer dia publico um Glossário da Tasca. O critério, no entanto, é simples: chamo as coisas pelos nomes que aprendi que tinham nas Tascas da vida. E um café começou por ser um café ou...uma bica. Por isso fica. Ah pois, eu passei muito tempo no degredo antes de chegar a casa ;)
      Força Kinder! Por acaso, tenho fé neste moço. But then again...tenho sempre...
      Abraço.

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  2. @ Silva

    anda lá... eu ajudo-te a fazer o fecho da Tasca... ficas tu com o pano voador e eu com a esfregona dançante.

    será "sweeping clean", tal e qual aquela cena cena do "Bruce Todo-poderoso". "sweeping clean": «it's good. it's goood!»

    abr@ço desportivo
    Miguel | Tomo III

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    1. :) deixa só avisar que chego mais tarde. O barril de cerveja é novo a estrear... :) Thanks.
      Abraço.

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    2. @ Silva

      a cena a que me refiro é esta aqui, que começa aos 1:33:40.
      (gosto bastante deste filme, o qual possui uma mensagem de vida "interessante". e não estou a ser irónico)

      abr@ço
      Miguel | Tomo III

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  3. Amigo Silva

    Ainda não me considero cliente da tasca, mas já vou percebendo a dinâmica da coisa.
    Há clientes que são do coração, como se fossem família, que na verdade até já são.
    Há clientes amigos, que dizem ámen a tudo, mas que na verdade não acrescentam quase nada (sim, quase nada, porque eu acredito que toda a gente acrescenta alguma coisa).
    Há os infiltrados de amigos, que na verdade não passam de coscuvilheiros, sempre à espera de um deslize, de uma palavra mal dada para com o amor da nossa vida (céu azul com nuvens brancas), para nos dizerem sarcasticamente, “eu já sabia, era aquilo que eu imaginava, só não via quem não queria”, mas que por muito que joguem aqui na tasca, e experimentam vários jogos, sueca, bisca, bisca lambida, sobe e desce, copas, e até fazem uma incursão no poker, dada a sua capacidade de leitura corporal, devem ter aprendido com algum mestre da táctica da antecipação de jogadas, ao estilo, eu sem ovos faço omeletes, mas se me tiram a minha almofadinha financeira, tchau que eu vou emigrar, que o nosso país não está para velhos…iletrados.
    Por fim há os clientes, que não sendo habituais, são leais, não aparecem muitas vezes, mas quando aparecem, são bem recebidos, como os outros, os que fazem parte da família, (quero pensar que estou nesta categoria), e por isso hoje, vou deixar à sua discrição o que vou tomar aqui na tasca..

    P.S. Antecipadamente, vou deixar aqui 20€, para estoirar ali naquela jukebox, que é uma das melhores que tenho visto nos últimos tempos (honra e mérito seja dado aos frequentadores que fazem o seu abastecimento).

    <a href="http: //www.youtube.com/watch?v=3RjBlBr5MB0

    O tema tem que ver com o sentimento de posse que todos nós temos, quando gostamos verdadeiramente de uma coisa, e ficamos frustrados quando ela se torna “popular”.

    Era tão bom o sentimento de “eu, as nuvens brancas, o céu azul e o infinito, só para mim)” <a href="http: //www.youtube.com/watch?v=ziJT2YRF5NI...foi o que senti!!!

    P.S.2 Se os links não funcionarem, pago a próxima rodada.

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    1. Caro Mr,
      Por partes: obrigado pela visita e já não digo nada sobre a prosa. Ia tornar-me repetitivo e isso dá-me cabo do encanto :) De resto, a Tasca é uma porta aberta. Love all, serve all. Pronto, quase all... Acho que não passa é assim tanta gente por cá. Fico feliz por você ser um dos que passam.
      Depois, está coberto de razão. Sem que perceba porquê, parece que aqui se juntam pessoas com um belo ouvido. Claro que as guitarras a sério ficam por conta da casa. Pfff meninos \m/
      A seguir, porra, aí está a razão para só ter lido um Tolkien :) Mas no fim do dia, a posse não passa. Há sempre aquele pedacinho de desse céu azul e branco que é exclusivo, que é só de cada um. Como não ter vergonha de descer a rua em lágrimas aos 16 anos :)
      Por fim, está a dever uma rodada. E esta malta não perdoa :)

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    2. PS. Ou muito me engano, ou o iletrado vai continuar a aparecer por aí com frequência. O burmelho fica-lhe tão bem...
      Abc.

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