quinta-feira, 14 de abril de 2016

As escolhas esclarecidas



Ele fala-me no seu tom pausado, escolhendo as palavras, adequando-as à penumbra da Tasca, nesta nossa hora de últimos a sair. Escuto-o debruçado nos nossos copos de vinho tinto, como se fosse uma homilia. 

...

Deu dois passos lentos no corredor. Reparou na terra das plantas humedecida no ponto perfeito e, instantaneamente, o cérebro fê-lo ouvi-la a cantarolar-lhes, a falar-lhes como se fossem pequenas fadas ou queridos animais de estimação. Deslizou a palma da mão por uma grande folha de uma Planta de Borracha, suspirou baixinho. Depois encheu o peito de ar e entrou na sala, contornando o amontado de malas e mochilas no hall de entrada.

Reparou que estava ainda descalço quando sentiu a maciez do tapete felpudo nas plantas dos pés. Quis manter o ar enfurecido, ou magoado, ou lá o que fosse a cara que era suposto ter naquela situação. Mas honestamente não saberia dizer, depois dos pés naquele chão tão familiar, que raio se leria no seu rosto. Tristeza, isso era certo.

Ela estava sentada na beira do sofá grande. As mãos entre os joelhos, os olhos entre a parede em frente e a grande janela rasgada à direita. Cheirava bem. Ela, a sala, o corredor, a casa toda, a vida toda. Um cheiro que não notava todos os dias, mas que agora o abraçava e lhe fazia lembrar as camisolas grossas de lã do Inverno, acabadas de lavar. E corridas descalços pelo enorme corredor, com saltos perigosos para aquele mesmo sofá. Num tempo em que não haviam malas empilhadas à porta. A água brotou dos olhos, uma onda em direção ao odor perfeito daquela vida. Acabada.

Passou por ela num passo rápido e endurecido pela fúria que queria ter. Planou perante as prateleiras dos livros. Devia tirá-los todos, metê-los em sacos, levá-los dali. Aos livros e às suas capas cobertas da camada exata de pó que as protege mas não lhes rouba o cheiro a papel. A que se acumula por um numero certíssimo de dias, nem mais um. Todos, não deixar nenhum. Como se os livros pudessem contar a história, encerrar a dor, testemunhar a culpa. A que ele não podia ter. 

Sempre corajosa, ela dobrou as pernas debaixo do rabo - ele percebeu apenas pelo som - e afastou os cabelos para os ombros. Aprestava-se a quebrar o silêncio. Ele pensou em gritar-lhe que se calasse, mas ela ainda não tinha dito nada. Pensou em começar a atirar livros pela janela, para que ninguém falasse. Mas conseguia ver os pequenos pés perfeitos, as plantas a serem assento dos glúteos, sem nunca olhar para ela. E por qualquer motivo, isso impedia-o de se mexer. Ouviu:

- Se em alguma outra altura quiseres... - Hesitou, como quem sabe que nestes momentos só existem palavras erradas, mas não tivesse remédio senão dizer algumas. - Se quiseres, podemos conversar. Ou não. Já não posso pedir mais desculpas.

- Não tens que pedir mais. Aliás, até te agradeço que não voltes... - Hesitou, como quem sabe que o tom da próxima palavra denunciará a imensa mentira que esconde. Ia dizer "a falar comigo", mas só se lembrava de "a fazer isto". Como se fosse possível ainda abrir a porta que os deixasse escapulir. Encontrar uma dimensão onde nada tivesse acontecido. Ou acontecendo, ninguém soubesse e eles não se importassem.

- Sim, sim, já sei, agradeces que não fale contigo. - Pousou os olhos no tapete persa em volta da mesa de café.

- Raios te partam. Como pudeste? - Murmurou de olhar fixo nas lombadas. - Não quero acreditar que me fizeste isto.

- Não me faças explicar do principio. - Suplicou-lhe. - Não é como se não me envergonhasse. E depois, que diferença faz repetir a mesma história infinitamente? Voltas atrás?

- Eu? - Gritou-lhe. - Eu volto atrás? - Mais alto.

- Sai. Não vale a pena continuarmos a gritar.

- Sabes o que és, sabes?

- Sim, sei. Sou puta!

- E dizes isso assim? - Incrédulo ou desesperado, não se consegue definir. - Mas és mesmo. É isso mesmo: puta! - E deixou de ser importante que escondesse as lágrimas. Chora agora como o menino perdido que sempre foi. De medo, de raiva e da imensa dor da humilhação.

Ela levantou-se, em três passos ficou atrás dele. Abraçou-o assim e ele não teve força para a repelir. Ela disse-lhe baixinho:

- As putas também amam. E eu amo-te. A ti e à nossa vida. Como não sei se alguma vez te poderei voltar a dizer isto, digo-te agora: Queiras ou não, és o homem da minha vida. Mesmo que isso não te sirva para nada.

- Não serve. Como pode? Como é que podes dizer que me amas? Fodes com quem te paga e amas-me a mim?

- Amo. E só fodo com quem paga muito e não me enoja demais. - Ele sentiu as costas da camisa a encharcarem-se das lágrimas dela.

- É isso amar-me?

- A ti? Sim. Não gosto nada é dos nossos ordenados.

Então souberam que as malas nunca passariam da porta e que os livros permaneceriam quedos nas suas prateleiras.

...

Eliminou minuciosamente os vestígios das lágrimas, menos os olhos inchados. Ensaiou até um sorriso, mas pareceu-lhe demasiado falso para poder dar ares de confiante. Bateu a porta do quarto e caminhou apressada pelo corredor, ao som dos saltos de madeira no soalho de cerâmica. Evitou com alguma graciosidade os cacos de vidro e as molduras ainda espalhados pelo chão. Encaixou com um movimento simples o necessaire na asa da mala grande, encostada à porta da rua. Da cozinha sobrevinha um cheiro a café velho e a torradas queimadas.

Entrou na sala para ir buscar o casaco negro e lembrou-se dos livros. Pegou num saco grande de plástico, esquecido no meio dos pedaços do espelho partido em cima do tapete de pelo alto. Passou por ele, sentado no maple das leituras, como se fosse uma rajada de vento e procedeu a esvaziar as prateleiras. Completamente. Tossindo no meio de uma nuvem de pó. Podia senti-lo enquanto se levantava. Adivinhou que vinham palavras e antecipou-se:

- Nem vale a pena abrires a boca. Deixa-me despachar isto, que já aqui estou há mais tempo do que queria. - Disse-lhe, de frente para ele, com o olhar duro que lhe saía com tanta facilidade.

- Isto não devia ser assim - Balbuciou.

- Ai não? Então devia ser como? Diz lá, anda, estou a achar imensa graça.

- Tu sabes que és a mulher da minha vida. Não há nada que tenha mudado isso.

- Olha que interessante. - Sorriu irónica. - Eu sou a mulher da tua vida, muito bem. É pena é não ser o homem, não é? - Estalou os dedos furiosos. - Epá, pois é, isso é que é mesmo uma grande pena.

- Já te expliquei isso. - Derrotado. - Não precisas ironizar, nem fazer piadas com a situação... - Ela interrompeu-o, aos berros:

- Piadas? Mas tu pensas que eu acho piada a isto? Para além de tudo, és completamente estúpido? - Sentiu que a seguir ia voar um livro, desejou que lhe acertasse em cheio na cabeça. Mas ele apanhou-o no ar.

- Pára com isso. Escuta-me, pode ser?

- Não, não pode ser. Era a minha cama, era o meu amigo. - O indicador a bater-lhe no peito - Consegues perceber isso? Não, não consegues. Vai-te foder, grande filho da puta.

- Não te amo menos por isso. - Ela deu uma gargalhada já muito próxima de lunática. - Ouve, é mesmo isso. Aliás, sabes que és a única mulher que eu amo. Serás sempre. - Os olhos marejaram-se-lhe, inapelavelmente. - Não quero partilhar a minha vida com mais ninguém, só contigo. Nunca te faltei, nunca te falhei, não concebo que possamos deixar cair o nosso Mundo. 

- Ai não? Mas era tãããããooo fácil. Bastava que não andasses enrolado com ele. Diz lá, quantos eles é que foram? É que eu vi, não é como se pudesses inventar uma história qualquer, pois não?

- Mesmo assim, nunca foi uma ela. Só tu. Mas... - Coça a cabeça. - É verdade que há coisas que não me podes dar. E de que eu preciso. Não é como se eu escolhesse, entendes? - De mãos abertas, em perfeito desespero.

Ela deixou cair o saco dos livros. Precipitou-se para a entrada, passou por ele como a mesma rajada de vento e saiu da sala. Voltou atrás, de cabeça baixa, quase calma. Disse-lhe da porta:

- Olha, meu querido, vai levar no cu, sim?

Então ele soube que iria.

...

- Pois, estranhas histórias, Senhor Monteiro da Silva, mas é mais ou menos isso...

- Pois é, Silva. Sejam quais forem, são sempre melhores as escolhas esclarecidas. Até as que se fariam de qualquer maneira, por mera fé...

9 comentários:

  1. Caraças... um Hemingway português e portista ainda por cima!!!!
    Força na caneta (ou no teclado) amigo Silva!

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    1. Xinapá, que exagero. Deixe-me limpar a baba que já acabo de responder... :)
      É que nem consigo escrever palavrões com décimo da classe do Ernesto. Mas se houvesse outro, era Portista de certeza. Houve só um...
      Obrigado Felisberto.

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  2. @ Silva

    sabes que no meu 11 ano tive uma professora de Filosofia que vivenciou, na primeira pessoa, uma experiência em tudo idêntica à segunda situação? a única diferença é que não encarou a cena tão bem quanto a personagem que tu criaste, e nunca mais foi a mesma...

    abr@ço forte
    Miguel | Tomo III

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    1. De facto, a vida imita tão bem a fantasia. Dass!
      Abraço

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  3. Obrigado.

    (Acresce que na primeira estória ela teve de optar: ou era isso ou ir vender redpasses à porta do Colombo)

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    1. Lol. É a vocação da moça era distribuir programas no dolcevita ;)

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  4. No decorrer da história, é inevitável não ir fazendo um sem fim de associações envolvendo entre outros, um Grande Presidente numa situação complicada, quem apesar de o amar queira pelas costas, um "bom rapaz" a contribuir... é o inverno da vida...

    Muito bem Silva, como nos habituaste!

    Abraço

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    1. Grazie :)
      É preciso é saber ao que se vai. Sabendo, todas as escolhas são válidas. E respeitáveis.
      Abraço.

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  5. Finalmente, uma grande entrevista do nosso Presidente!
    A confiança assim tem mais por onde crescer!

    Abraço

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