segunda-feira, 29 de maio de 2017

Tripas e dobradinha



Somos um País pequenino. Em muitos aspetos, é verdade, mas era mesmo do tamanho que falava. Apesar disso, somos diversos, multiculturais, de traços fisionómicos diferenciados e alimentamos umas quantas rivalidades regionais. Como é apanágio dos vizinhos. E das famílias.

Acreditem que para quem vive em Lisboa, é mais ou menos por aqui que se traça o limite. Isso do centralismo, do Império falido, do favorecimento e do desequilíbrio, não chega à vida das pessoas comuns. Isto é, soa tudo a um bairrismo um tanto datado, normalmente associado ao futebol.

Duas coisas que me parecem importantes reter. A primeira, é que não é efetivamente por soberba ou estupidez que o habitante médio da Capital - os Lisboetas já são uma minoria destes - se está bem a lixar para o choradinho do centralismo. Não é missão dele preocupar-se muito com isso, de facto. E que os líderes, anos após anos, sejam escolhidos de entre...gente da terra, não é culpa sua. O segundo facto relevante, é o futebol. Não é por sermos umas bestas atrasadas, a acordarem de 50 anos de ignorância, que isto sucede. Quer dizer, é! Mas não pelas pessoas, senão pela ordem que permanece inalterada e convenientemente inalterável.

Isto é, se é um facto que futebol é Futebol, um dos efes, não é menos certo que as poucas vezes que o poder centralista e centralizador é colocado verdadeiramente em causa, ao Futebol se deve. Clube do Porto.

Apesar disso, tudo isto são circunstâncias e contextos, mais do que cultura. Em termos culturais, mantendo a diversidade já assinalada, constituímos um todo bastante sólido. Motivo pelo qual somos independentes, contra as odds. Na minha opinião, isso não significa que os indivíduos sejam muito semelhantes. O quadro de valores e de hábitos será, mas os contextos e as circunstâncias moldaram, ao longo da História - que não tem 50 ou 100 anos de centralismo, tem 762 - diferenças importantes nos modos de ser dos habitantes das diversas regiões. Nem melhores, nem piores, meramente diferentes.

Raros são os meus ancestrais nascidos em Portugal Metrópole - Portugueses eram tanto como os outros; vivi a ainda maior parte da minha existência Lusa em Lisboa - sendo Portista; e, por coração, acabei a Norte há já uns belos anos. Estou na posição perfeita para conseguir ilustrar o que digo com um exemplo prático.

E o que digo? Que dobrada e tripas parecem a mesma coisa, mas que se servem de maneira diferente e, sobretudo, se comem de forma diversa.

...

A primeira vez que me disseram:

- Oh docinho, chega-me aí uma cruzeta. Depressa, que tenho que ir pôr o testo na sertã, a ver se salteio as vagens. Anda lá homem, dá corda às sapatilhas.

Eu pensei, pumbas, já está, enganaste-te na localização e vieste hospedar-te por engano em casa de uma família Mirandesa. 

Agora já somos todos híbridos. Se já falo a mesma língua, com mais sotaque algumas vezes, também ninguém cá em casa tem dúvidas sobre o que é um cabide, uma tampa, uma frigideira ou um par de ténis. Já sobre o feijão-verde, a discussão não está encerrada. Acho que lhes soa bastante estúpido, mas relevam.

Já se vê que também chamei dobrada ás tripas. Ficou toda a gente a olhar para mim como se fosse atrasado mental. E tudo o que me vinha à cabeça era: Páááááá, só porque não tem cenouras? Lá me explicaram, bastante pacientemente, que não eram a mesma víscera e blablabla e que, espanto!, até é costume levarem cenouras. Abanei muito a cabeça e fiz muito ar de ignorante, perante a complacência de uns e o divertimento de outros, e continuei a pensar: Páááááá, ponham-lhe umas cenouras...

Hoje, pensaria: Pááááá, botem-lhe umas cenouras. Parecendo que não, é uma coisa totalmente outra. Porque hoje, sei que a grande diferença entre dobrada e tripas, diga a senhora minha sogra o que quiser, é a mesma que vai entre pôr e botar. 

A primeira, serve-se em pratinhos, com o molho mais liquido e muitas cenouras. A gente gosta é do feijão, não estávamos à espera de encontrar propriamente dobrada. Deixa-me cá tirar este pedaço de chóriço para o meu lado, discretamente. Como a gamar o enchido? Tásparvo ókê? Se calhar não tô a pagar como tu, késvêr?! Estes lagartos, dass. Vamos lá é aviar isto com uma carcaça e duas imperiais. Podes ir já tirando a minha bica, oh tasqueiro, que tenho que ir à minha vida. 

A segunda, em travessas generosas, com as carnes a fazerem-nos ir à pesca dos feijões no molho, mais espesso. Passem o arroz ao Preto Mouro, que ele é muito arrozeiro. E a sêmea, que o pobre homem não tem pão. Olhe aqui a saladinha, se lhe apetece. Antes de rebentar, deixa-me anotar as horas do meu óbito por motivos de ser um alarve. Xinapá, quase cinco da tarde, credo. Pois claro que se abre maijuma.

Ao mesmo tempo que gosto cada vez mais de caracóis e de caracoletas, apesar do nojo com que a família me vê a despachar os bichos à tonelada; enquanto a cidade, Lisboa, me vai parecendo cada vez mais bonita; à medida que vou sentido até uma espécie de prazer e orgulho em ir mostrando a Capital, os sítios a que os turistas ainda não chegam com frequência ou aqueles sempre cheios de gente e sempre tão agradáveis; vão-me sabendo mais diferentes dobrada e tripas. Como se sentisse uma raiz a agarrar-se à terra. 

...

A propósito de dobradinha, parece que ontem serviram uma dose no Estádio de Oeiras que, estando na zona da Grande Lisboa, é, naturalmente, Nacional. Lá estavam na bancada o nosso Presidente, adepto do Braga, criado na Capital; o nosso Primeiro, adepto do 5LB, antigo Presidente da Câmara de Lisboa; e muitas outras distintas figuras do Estado e do Desporto, noventa e alguns por cento das quais partilham aquele traço comum: Lisboa. A maior parte deles, eleitos pelo Povo. Não me estou portanto a queixar, apenas a constatar.

Podiam ser tripas à moda do Porto? Não, não podiam. Primeiro, convencionou-se chamar dobradinha à coisa; depois, mesmo que nos danássemos para a convenção, tinha demasiada cenoura. Um gostinho diferente, percebem?

Vejamos, os da Capital chegaram àquele jogo decisivo graças a este golo. Relativamente cedo, tiveram que substituir o seu médio-defensivo que se magoou. Entrou este moço.

Poderia ter entrado outro, caso o rapaz dos socos não estivesse disponível, certo? Pois claro que sim, certo. Mas não seria bem a mesma coisa. Como dobradinha e tripas a sério.

...

Soundtrack to tripas: Binhu!


26 comentários:

  1. E não te esqueças do moço emprestado pelos outros moços que entrou para o lugar do Hurtado...

    Pois..

    Abraçom

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    1. Será que o Miguel Silva vai jogar no Vitória por empréstimo? ;)

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  2. Só para dizer que "cabide" e "cruzeta" são coisas diferentes... excepto em Lisboa.

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  3. pf ver https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-diferenca-entre-cabide-e-cruzeta/22097

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    1. Antes de mais, bem-vindo Franco. V.Exa era o central que nos fazia falta.
      Depois, obrigado pela fonte. Eu provinha precisamente de Lisboa, pelo que estaria explicada a minha confusão.
      No entanto, se reparar na explicação do link, é perfeitamente aceitável a utilização dos termos. E sim, quando me pediam uma cruzeta, era um cabide que queriam :)
      Volte sempre.

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  4. Muita atenção ao arroz. Não sei se é consensual, mas nem me passa pela cabeça comer tripas sem arroz branco. Muito arroz branco, para absorver aquele molho maravilhoso e depois ir à boca junto com o feijão e a tripa, para deleite do palato. Pronto, já fiquei a salivar. Parece que já não como tripas desde ontem.

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    1. Lá está, quando o assunto não é bola, és top :) Concordo a 300%, ai de quem me servir tripas em arroz branco! Por acaso, no Dia do Clube o almoço foi tripas. Não estavam nada más, não senhor.
      Já quanto à bola, não vês boi, já se sabe.

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  5. As tripas convém que sejam á moda do Porto, carago, senão num prestam ó marmanjola!
    E depois aqui deita-se abaixo uma litrada de maduro branco, pois cerveja com tripas até dá volta á tripa só de pensar nisso! Para os mais delicados pode vir um verde de Barcelos, porque o tal da Lixa é mais pró frutado que pró verde.
    E a broa? Nunca broa d'Avintes! É um pecado mortal! Broa de milho, de preferência do cantinho pr'apanhar uma bela codea tostada.
    Após o arroto final, que venha sem demoras o café (curiosamente o cimbalino caiu em desgraça aqui no nosso Porto!!!) acompanhado majestosamente por um calice de vinho do Porto Toni (os ingleses dizem Tawni, mas que percebem eles de vinho de Porto!?). Prós mais gulosos ainda há quem afinfe um queijo com marmelada!
    Depois deste repasto dos deuses, toca a bater uma sorna, com ouras ou sem ouras, porque o lanche é já a seguir. E nada como umas punhetas de bacalhau...

    Agora diz-me lá se em Lisboa se morfa assim?
    Caracóis? Quais caracóis! Umas moelas, um bucho cozido, ou até mesmo só para espevitar o apetite, umas bifanas...
    E depois marcha uma francesinha bem tripeira. E aí sim cai bem no papo um príncipe bem geladinho de preferência Super Bock ou aquela cerveja estrangeira... Ai Neca! Também gosto.
    Se alguém precisar de um roteiro gastronómico, aqui o Feliz indica com todo o gosto os tascos onde se come bem. Claro que que aqui na Tasca também se chafurda à lagardére, ora essa!

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    1. E para além disso tudo, ainda temos caracóis! :)) São as vantagens do multiculturalismo.
      Ah, e prefiro tinto coas tripas, sorry.
      Obrigado pela prosa. Já sentíamos a falta desse gostinho tripeiro!

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  6. Tripas boas são as requentadas... Ficam mais apuradas! Este tipo de conversas não se faz com os emigrantes... Snif... Snif.
    Adilia

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    1. Mesmo! Mas vá, uma bela feijoada à Brasileira não é de se deitar fora. Mesmo um picadinho à Mineira, um vatapá... Bem sei que lhes falta aquele sabor a casa, mas temos que fazer limonada com os limões que a vida nos dá. Parece sempre que temos que cumprir o fairplay financeiro da uefa...
      Um abraço transatlântico.

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    2. Ora aí está uma verdade universal: as melhores tripas são sempre as do dia seguinte.

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    3. É cumós carapaus de escabeche. Demasiado mouro? :)

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    4. Chicharro, homem! Chicharro!
      Carapau é aquilo pequenino que se come logo duma vez!
      Já o chicharro é bem maior e bem melhor!
      É o atum dos tesos!

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    5. Chicharro?? Chicharro de escabeche? Comem cada coisa, credo! Ainda se fossem umas enguias.

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    6. Esta malaicada num bate bem da bola. :)
      Num é carapau, é jaquinzinhos carai***

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    7. Xiii, isso é pedofilia piscícola! :)

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    8. Besse logo que nunca foste á Badalhoca...

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    9. Néria. Petiscada dessa era na Rosete e no 656.:))

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  7. Visito a TASCA DO SILVA já há muito tempo e neste estado de coisas em que o nosso Clube se encontra, não há melhor panaceia como visitar este blog, por isso disse VIVA A TASCA DO SILVA

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    1. E é muito bem-vindo, Aires. Barafuste sempre que lhe apetecer. Quando as coisas nos correrem mesmo, mesmo, mesmo bem - em breve, portanto - vai ser ainda melhor passar por cá ;)
      Abraço

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  8. Tomo a liberdade de fazer minhas quase todas as palavras do Aires. Visito a TASCA DO SILVA há muito pouco tempo e neste estado de coisas em que o nosso FCPorto se encontra, visitar este blog traz-me a alegria que me vai faltando. Reforço VIVA A TASCA DO SILVA.
    Entrei pela 1ª vez. Portista de Santa Maria de Belém, Lisboa (em jeito de lamúria, a gente aqui por baixo tem sofrido um bocadinho nestes ultimos treta anos).
    Um abraço e continuação de belíssima prosa.

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    1. Muito bem-vindo, duplamente por estar na Moirama, LAFOI.
      Muito obrigado pela preferência, acredite que eu me divirto muito mais que vocês :) Seja como for, cheira-me que você anda a afogar a mágoa em pastelinhos de Belém. Chama-lhe parvo.
      Majolhe, a malta sofre na Capital desde sempre. E até aposto que agora há mais de nós do que há uns...trinta anos. Não que eu saiba, que há 30 anos ainda nem era nascido ;) (era,era...)
      Um abraço e cá o esperamos para duas de treta.

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