sexta-feira, 16 de novembro de 2018

La Grande Maladie: De homens e insetos

Eventualmente serão fundamentais para a sobrevivência de várias espécies de pássaros, cujos ovos e carne servem, por sua vez, para garantir que prosperam uma série de mamíferos e ovíparos e outras bichezas e depois vem o homo estupidus e come tudo e caga tudo e queima tudo e assim por diante.

Apesar disso, e talvez por nunca ter desenvolvido convenientemente a tendência ecologista - esqueço-me basto de separar os resíduos e adoro posta mirandesa, quase em sangue - não consigo levar-me a detestar menos a trampa das melgas e dos mosquitos. Está claro que eles me retribuem a preferência, tratando de me sugar o sangue amiúde, sem contemplações. Mesmo que possam escolher entre toda a população chinesa, será seguramente a mim que vão picar, os acabados filhos da puta. E filhas. E eu nem sequer sou chinês!

Em resultado deste conflito de espécies - sugado e sugadores - nutro um carinho muito especial por outros animais. Não que tenha em tempo algum achado boa ideia munir-me de um machado, tatuar um facho no peito, e criar um movimento de caráter militarista. Digamos que procuro antes ter atitudes simpáticas e fofinhas para com animais que, comprovadamente, fazem a vida negra aos chupadores de sangue. Que tradicionalmente sejam espécies pouco queridas, como aracnídeos e batráquios diversos, pouco me importa.

E deixemos, por agora ao menos, de lado o significado de estar a pessoa a demorar-se alguns minutos mais no banho - a água desperdiçada a acelerar o fim do Mundo, a energia desnecessariamente gasta a espezinhar Continentes - à conta destas derivações da mente. Um tolinho todo nu, diríamos.

...

É aceitável que seja a intuição de uma certa segurança que leva a aranha a atravessar impávida o teto da casa de banho. Patas negras a contrastar na alvura do teto falso, em movimentos determinados e rápidos, ainda que não em linha reta. Seja como for, mais curva, menos curva, já desde lá do outro lado da assoalhada que era claro que viria nesta direção.

Acontece que pode ser uma viúva negra, ou lá como se chama, daqueles aranhiços de partes incertas do globo, que parecem inofensivos e depois nos matam em menos de um fósforo. Aranha assassina do género Aracnofobia é que não é, uma vez que não guincha. Mas lá que pode aproveitar a calada da noite para me entrar por um ouvido e plantar milhares - ou milhões! - de ovos que me detonarão o cérebro que me resta, lá isso pode.

O facto de se dirigir tão resolutamente a este lado é, ao mesmo tempo, fofinho e um tanto assustador. Caramba, afinal há aqui movimento e vapor e coisas, o que deveria - sei lá, digo eu - fazer com que um animal desta dimensão, francamente mais pequeno do que a besta que coze debaixo do chuveiro, sentisse disparar os sensores de perigo. Tão mal contada que está, essa história do Homem Aranha.

Enfim, impõem-se decisões.  É provável que o mais seguro seja espetar-lhe com uma esguichada de água assim que esteja ao alcance. Cairá na base do chuveiro e bastará empurrá-la para o ralo. Adeusinho ovos comedores de miolos e picadas assassinas.

Por outro lado, um só mosquito que caísse na sua teia e passasse a almoço, representaria uma vitória retumbante da clemência, da tolerância, quiçá a alvorada de um modo de vida outro, simbiótico, de harmonia entre Homem e Aranha. Que grandes feitos daqui adviriam, caro Stan?

...

O inseto parece hesitar, precisamente sobre a cabeça pelada do humano. Depois prossegue resoluto, em direção ao canto do teto. Aninha-se, encolhe-se, predispõe-se a esperar que todo o movimento cesse. Então, será uma bela altura para começar a fiar uma teia, construir um lar, caçar o almoço.

Perfeitamente sossegada no vértice, é apenas um ponto escuro, invisível. Ele sai do banho, seca-se, é possível que se vista e vá tratar da sua vida.

...

- Vem cá, pá, depressa. Não podes perder isto. - Impaciente, ansioso, excitado, um catraio prestes a explodir uma bombinha de carnaval.

- O quê, Senhor? Que se passa?

- Ah, perdi a paciência, por fim! É tudo demasiado estupido, vou exterminá-los de vez. Não foi uma decisão fácil, que a Divindade se afeiçoa aos bichos e depois custa um pedaço, mas é pelo melhor. Puf - faz “puf” com as mãos - bye bye parvalhões dos polegares oponíveis.

- Eish, vai explodi-los, Senhor? Afogá-los? Não, isso não, que aparece sempre um Noé da vida que estraga tudo. Já sei! - bate as palmas - Matam-se os primogénitos todos, até que não restem senão primogénitos, que serão, consequentemente, mortos eles também. Que bela batota, Senhor!

- La Grande Maladie! - Anuncia.

- Hã?

- É francês, oh pescador. És mesmo rústico.

- Porquê francês, Senhor? - Perplexo.

- Sei lá, apeteceu-me. Soa sofisticado e, ao mesmo tempo, tem aquele tom creepy. Não achas? Oh escuta lá: La Grande Maladie! - Com voz grave e dramática, abrindo os braços.

- Pois, talvez... E é o quê, isso? 

- Anda cá. - Passa-lhe um braço pelos ombros e aproxima-o da Grande Janela. - Tájavêr ali o debilóide a tomar banho? Agora repara no teto. Aquela pequena aranha vai pôr-se mesmo a jeito e o anormalóide vai mandar-lhe uma chuveirada que a fode.

- Senhor! - Chocado.

- Oh, tu percebeste! Ora, quando o bicharoco cair na banheira, vai desprender-se dele um vírus fatal que, por sua vez, vai meter-se no estupido... - Interrompido.

- Meter-se? Como assim meter-se?

- Olha, pelo cu acima! Se é para me vingar destes milénios de disparate, ao menos gozo o prato todo. Mas isso agora é de somenos, o que importa é que é este vírus que vai espalhar-se e exterminar a espécie. Xaram! - Abre os braços.

- Bem, está um bocadinho visto isso, não?

- Pois claro que está, Pedro. É essa a ironia. Ainda por cima a começar com o parvo. É Divina!

- Errrr, Senhor... - Chama-Lhe a atenção. - Parece que a besta está a ir-se embora. Já estará infetado? Eish, e vai nu, ca noijo...

- Hã?

...




7 comentários:

  1. Uauu!!! Sim senhor !! Pontuação máxima(20 valores,são suficientes?)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O máximo está muito bem, obrigado :)
      Agora a sério...obrigado de novo.
      Silva, a comentar como Anónimo pq o dispositivo está de mau humor 🤷‍♂️

      Eliminar
  2. LOLOLOLOL... aprende é a tomar banho de truces, pelo sim pelo não!

    ResponderEliminar
  3. Oh, o Senhor, em querendo, não há truce que nos valha :)
    PS. Aranha no banheiro ;)

    ResponderEliminar
  4. Apesar do bicho ter oito olhos (tem, não tem? ou é grande peta?), é de ficar desorientado! Quer dizer vai a aranhita pelo tecto fora, um dos olhos, ou vários, olha e vê um outro tecto resplandecente em baixo... é lógico que o animal pára para pensar. Contudo basta um leve movimento do tecto de baixo para que o octonãoseiquê perceba que afinal é um tecto falso! Não de pladur, sferovic ou qualquer coisa da construção civil, mas sim de falta de vegetação capilar! Daí a seguir o seu caminho até ao cantinho que escolheu para viver.
    Ficará pacientemente, achinesadamente á espera que passe uma qualquer mosca viva para fazer parte de la grande bouffe.

    Digam lá se os animais não são inteligentes?

    https://youtu.be/_op_ew4oHqs

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ai não que não são. E protegem muito bem os seus múltiplos olhos :))
      E agora que te rendeste a Kiske e Hansen, Lisboa, 6 de dezembro! Tocam juntos e com mais umas abóboras amigas ;)

      Eliminar
    2. Sim, Continuo a responder como “Anónimo” pq ainda não resolvi o problema do dispositivo

      Eliminar