Saiu de casa e a primeira coisa que lhe veio à cabeça foi que
os condutores iam andar todos como baratas tontas, a asneirar a torto e a
direito e a bulir-lhe com os nervos.
É sempre assim quando chove, mesmo que sejam só meia dúzia
de pingos. Até nesta Vila pequenina - às vezes (tantas!) espectral - classificada
de Cidade, na qual os atrasos matinais se resumem a uma dezena de viaturas
encalacradas no acesso à Rotunda das Pedras
(…)
(assim designada carinhosamente pela população, por força
das cinco… coisas ao alto… com que orgulhosamente presenteia os seus visitantes. Calhau
de considerável envergadura sobre calhau de considerável envergadura, resultando em conjuntos escultórios representativos de oito freguesias - como é que isso dá cinco conjuntos de esculturas, nunca percebeu. Mas a Matemática também nunca foi o seu forte. Agora que se fala nisso e pensando melhor, isto foi muitos
anos antes da Reforma Administrativa do Território ter reduzido oito a cinco Freguesias… querem ver que afinal eram todos grandes visionários?! Vem-lhe
à cabeça a mais nova, assim pequenina, no assento de trás do carro, a dizer que
as pedras estavam sujas e que a mãe tinha de as lavar. Esse era o tempo em que
o pai era o Master of the Light, responsável por ligar e desligar todas as luzes do
Mundo. Já foi tão pequenina, a mais nova.)
(…)
O outro motivo que pode gerar atrasos inconvenientes, é o
semáforo do centro calhar estar vermelho. Feitas as contas, num dia mau, pode
atrasar-se 5 minutos todos inteiros numa manhã. Incómodos de se viver nesta Vila
disfarçada de Cidade, pois então.
**********
Este tom azul do céu sempre foi assim? Não o reconhece.
Se lhe retirar as nuvens, as de algodão e as que prenunciam
tempestades, ele está ali, num azul completamente novo. Nem mais bonito, nem
mais feio. Diferente. E é nesse instante que se apercebe que todas as cores do
Mundo apresentam também tons que não lhes conheceu antes.
Raisparta, Oftalmologista
outra vez? Shit!
Afinal não são 10 carros encalacrados na Rotunda. São 8. Dá-lhe
algum tempo para absorver e dissecar toda esta nova paleta. Coisa de gaja -
dizem! As mulheres não veem somente as cores primárias e as compostas, na sua
simplicidade; veem o seu leque infinito de tons. E dão-lhes nomes. Tornam-nos
concretos!
O céu tem um inédito tom de azul, sólido, sem qualquer transparência.
O verde das árvores é áspero, arranha os olhos e deixa um gosto estranho na
boca. Pela estrada demoram os restos das folhas que o temporal roubou aos
pinhais, num ocre cortante. O piso cinzento brilha, ofuscando o tracejado
branco esbatido das marcas rodoviárias. Os carros passam. Todos iguais nas suas
cores, indiferentes aos nomes e às diferenças convencionadas.
Sente o sangue a correr nas veias. Não o vê, mas sabe que o
seu vermelho é mais intenso. Chegou aqui fruto de tantas experiências, tantos
sentimentos e emoções, tantas gargalhadas e tantas lágrimas. O suor parece mais
frio, mais espesso, demora nos poros. As lágrimas têm um gosto diferente de
sal, como se o tempo se tivesse encarregado de o ir refinando. A pele está mais
densa e as marcas que a vida lhe imprimiu são um mapa que apetece percorrer. Um
daqueles mapas dos Parques de Atrações: “Esta mete-me medo. Aquela parece
divertida e a que se lhe segue é bonita. A esta vim ao engano e não regresso.
Aqui poderia permanecer… ”
Vem-lhe à cabeça que, à saída de casa, talvez tenha entrado
numa outra dimensão. Uma Twillight Zone contemporânea, a fugir para Black
Mirror, a que não reconhece assim tanto mérito. Aqui tudo é igual à Vida, mas
de uma forma diferente. Concreta também, confusa pela novidade. Requer
habituação.
Será que é ela? Foram as cores que mudaram ou a sua
íris que as capta de outra forma? Ou o cérebro que as processa de forma
distinta?
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Ocorre-lhe: e se isto é um sonho? Se não acordei ainda?
Talvez ainda esteja perdida no calor dos lençóis e no
conforto da pele familiar e desejada que repousa encostada a si e que busca
constantemente. Com a mão. Com o pé, se não a sente, se não sabe se já dali
saiu a horas a que ninguém merece sair.
Hoje os sonos são diferentes. Quentes. Difíceis. Curtos.
Entrecortados. Muitas das vezes superficiais. E por isso os sonhos são mais
palpáveis, mais vívidos.
Pode ser isso, deve estar a dormir. Quando acordar as cores voltaram aos seus tons familiares. Aqueles que partiram estarão ainda entre nós e as saudades não terão mais sentido. Passarão as mãos pelo seu cabelo, sentirá na pele o calor dos seus hálitos quentes nos beijos trocados. Ouvirá as suas gargalhadas interrompidas pela tosse dos vícios. Haverão saudades, mas matam-se à distância de uma qualquer tecnologia imediata. «Dallas» all ove again! e ri-se das referências que a atraiçoam quando quer acreditar que os anos não foram estes todos.
Será ainda o tempo dos poemas. Tantos. Guiões para a sua Vida.
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Ou será o Afterlife? A Fénix renascida. O recomeço
depois do fim. A última chance, depois de todas se terem esgotado. A
resiliência do ser. A dimensão dos sentimentos. A etapa que antecede o vazio, o
vácuo, o nada.
Afterlife. A palavra ecoa na sua cabeça, porque alguém lha
sussurrou ao ouvido, recentemente. Tem a certeza. Afterlife.
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Fugiu ao semáforo do centro (espertinha, cheia de truques!).
Olha para o relógio do carro no momento em que desliga a ignição: 1 minuto de
atraso em relação ao que tinha definido. Está satisfeita, mas ainda assim
preferia que fosse 1 minuto antes do deadline. Sai do carro, estacionado o mais perto que consegue do
emprego. Mesmo ao lado, hoje. Outro motivo de satisfação.
Pega na mala e em 2 sacos. Não chove. «Porque raio ando
sempre cheia de sacos? Porque raio carrego e acumulo tralha que provavelmente
nunca mais me servirá para nada? Porque é que tenho tanta dificuldade em me
libertar? Em pôr fora, em deixar para trás?»
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Não repara, mas as cores já voltaram todas aos seus tons
habituais.
Percorre os poucos metros até à entrada do edifício. Já com
a mente em tudo o que há para fazer, sem se aperceber, compartimenta os
medos, a esperança, os sentimentos, as saudades e tudo o resto que lhe faz
valer a Vida.
Tirando meia dúzia de felizardos á face da Terra, todos nós quando saímos de casa entramos na twilight zone. Eu pelo menos entro. E entro tão á vontade como se entrasse de novo em casa!
ResponderEliminarE vou sonhando como será a minha vida num qualquer despretensioso mas bem ambicioso afterlife que sei que jamais acontecerá.
Os semáforos que me condicionam a vida, os carros que me ultrapassam os sonhos, e os policias que me coimam as minhas esperanças, esses são bem reais. São bem palpáveis e constantes. Em qualquer esquina lá estão eles. The real life! E o milhão que semana após semana não me sai!
https://www.youtube.com/watch?v=sZfZ8uWaOFI
Tão na mouche essa malha, Felisberto! De resto... i believe!
EliminarUma vénia à banda sonora do Shôr Feliberto!
EliminarSilva... I too believe <3
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