sexta-feira, 1 de maio de 2020

CLSVO II.1

Repara, tu não tens que saber quem era. Também não tens que ser esclarecido acerca dos motivos que me levaram a fazê-lo, ignorando-te. Não tenho como saber, mas se estás a pensar se podes ser tão insignificante que nem tenha percebido estas implicações, deixa-me informar-te, sem qualquer orgulho, que há uma bela probabilidade de estares completamente certo. Meu telefone, minha vida, meu problema, andor. Ou então passa-se tudo na minha cabeça e tu estás completamente a marimbar-te. Como eu.

De qualquer maneira, terei que me levantar, tentar descobrir onde é a casa de banho, onde estão as minhas roupas, a carteira e os sapatos. Ficam sempre juntos, a carteira e os sapatos. É estranho porque nem sequer penso nisso. Acontece e pronto, é tudo. Só preciso de encontrar um sapato e já sei que a carteira está ao lado. E sim, devia ter desconfiado que o chão estaria frio e que não faço puto de ideia onde possam estar as minhas meias.

Devemos ser honestas e enfrentar os factos, a culpa acabará por ser sempre relativa e vamos lidar com ela com a mesma tranquilidade das outras vezes. Uns dias mais aguda, outros menos, mas será só mais uma a encontrar o seu canto escuro e a anichar-se, tornando-se parte do cenário, até que alguém - na maior parte das vezes alguma coisa - a venha espicaçar e ela acorde meio estremunhada, à procura da puta da casa de banho.

Ninguém diria que era um apartamento tão grande. Ainda me deparo com alguma mãe velhota numa cama de grades, à espera que lhe mudem as fraldas, credo. Seria uma surpresa, já que, se bem me lembro, não era só medianamente giro e cumpria os mínimos do sentido de humor, também parecia bastante resolvido. Enfim, pouco importa, até porque cá está ela. Vamos só respirar fundo antes de abrir a porta, uma rápida prece ao Senhor do Asseio, ao Santinho do Detergente com Lixívia, e depois tentar não gemer alto quando começar a Festa da Descompressão na bexiga.

Tudo isto é bastante menos estranho numa casa conhecida. Mesmo que seja pequena e mais ou menos velha, como a daquele que agora não nos dá jeito nenhum estar a lembrar. A pessoa habitua-se e de tanto lá estar é como se fosse nossa, não é? Por outro lado, assim tem um lado sórdido que havemos de confessar que é muito excitante. Não é esse excitante, parva. É o outro, o mais excitante que esse. Embora não tenha sido tão mau como supúnhamos. Muito ajeitadinho até. E tem elixir! Aí está uma coisa que qualquer gajo que tenha uma centelha de esperança de levar uma moça de bem para casa devia sempre ter. Ou então escovas de dentes descartáveis. Gostamos do nosso gado prevenido e limpinho, hein? Que parvoíce, não devíamos rir disto. Ah, caga, temos demasiado tempo para esmiuçar todos os pontos podres e mal cheirosos da situação. Por agora, mantém-te leve, rapariga.

Já jantaste! Sim, já jantaste! O que tinha para me dizer era: já jantaste? Tcharam! A estas horas da noite, sem saber onde possas estar, ou com quem, ou a fazer o quê, o que quero mesmo, mas mesmo, mesmo saber, é se já comeste. Mas sou alguma mula que passa os dias a enfardar? Está certo que podia muito bem não lhe ter ligado, mas o hábito é fodido. Isso e não saber das meias. Gosto tanto delas.

Olha meu lindo, foi muito engraçada a tarde e a noite e tal, mas não é como se tivesse sido um sonho e agora o que me apetece é ir para minha casa, tomar um banho muito longo, lavar-me dos copos e dos cigarros e de ti. Lamento desiludir-te quanto a essa expetativa de agora estar pelo beicinho e não te largar a braguilha. Mesmo que estejas a torcer-te todo para que não transpareça, acredita que eu sei. Não, não foste o melhor que já tive, nem lá perto, e não, também não és assim muito abonado. Não leves a mal a sinceridade, a minha intenção não é achincalhar-te, mas essa pose de garanhão sentado no sofá, em tronco nu, o semi-sorriso simpático, o desconforto empático - estás a fingir, cabrão? - como explicar? Irrita-me, é isso.

Porque eu saio e os milénios de educação genética vão deturpar o que aqui se passou. E vais achar, talvez até comentar com um amigo, que tiveste uma sorte do caraças e engataste uma gaja bem gira - a modéstia é para os medíocres, querido - e a trouxeste para casa. Pois ficas informado que o teu T2 - muito jeitoso, por sinal - serviu de pensão rasca e a puta eras tu. Ainda por cima, pagaste.

Portanto, o que é que estás a dizer? Ai foda-se, é que está mesmo a falar! Podia tanto ter-se deixado ficar caladinho, eu ia à minha vida e todos felizes. Espera lá, deixa prestar atenção, não me distraias agora. E não largues a porta, deixa os dedinhos firmes na maçaneta que é como se já estivéssemos no elevador, miúda.

- Desculpa?
- És casada, não és? Eu ouvi o telefonema, como deves calcular...
- ...
- Não é comigo, tens razão. Volto a ver-te?
- Claro que não. Ah, um dia destes aparecem por aí uma meias. É para estares avisado.

...

Honestamente, esta relação sem sal convém-me, do ponto de vista da liberdade: horários desencontrados, interesse diminuto, culpa minguada. Não tenho outro remédio, senão aceitar este instinto, este gosto pela adrenalina da caçada, rodear a presa, senti-la ceder ao mesmo tempo que pensa, pobre diabo, que o dia é dela. Podíamos agora teorizar à volta do custo da mentira - que minto, não vou mentir - mas será que vale a pena? É como perder tempo a analisar o mecanismo de distensão de um saco de plástico. Distende, pronto, vamos fazer o quê? 

Por outro lado, não me parece que ele se preocupe demasiado. Se me ponho a pensar nisso, quando é que houve qualquer coisa semelhante a paixão? Como chegaremos a brasas confortáveis se nunca se acendeu a fogueira? Ah, dane-se, saltemos assim de fogo fátuo em relâmpago repentino, para depois voltar apaziguada ao velho assador de sempre. Apagado. E pronto, está tratada esta culpa menor, refastelada no seu T2. Mesmo a tempo do metro quase vazio, como sabemos que acabaremos enquanto envelhecemos. 

Serenamente cinzento, o nevoeiro descerá sobre o mundo, como poeira a semicerrar-nos os olhos. Descerá, enquanto se escorre o Sábado.

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