segunda-feira, 13 de abril de 2020

CLSVO II

Se fosse um jogo de adivinhar, tiraria, ao menos, algum proveito em diversão. É muito divertido jogar, mesmo quando se joga sozinho. Não é assunto para agora, mas é inegável que ainda que jogue em circuito fechado este jogo de um, tomo partido e escolho um lado. E no fim ganho Eu contra Mim. Ou perco, depende do estado de espírito.

Adiante, não é consciente, acho eu, esta coisa de saber o propósito, a intenção, o que se esconde por detrás do que dizem e até do que não dizem. E é absolutamente frustrante tentar explicar-lhes que percebo porque ficam furiosos, como miúdos apanhados na sua mentira, na incongruência do seu argumento adolescente ou na armadilha da falsa piedade, da bondade a metro, do desapego material de barriga cheia ou do conhecimento profundo que sai como verniz, basta esgravatar um pedacinho.

As coisas vão de mal a pior porque não coloco sequer a possibilidade de estar redondamente enganado. Imaginemos por um minuto - vá, hipótese académica, cala-te, deixa acabar o raciocínio - que falho completamente. Não sabes o que está a pessoa a pensar sob aquilo que expressa, muito menos como se sente em relação a ti ou aos outros. Façamos de conta que as fraquezas expostas não buscam apenas colo, que existem e que há quem não se dê ao trabalho de as esconder e busque honestamente alivio nessa partilha. É claro que não estamos no território da intimidade muito intima, dos amantes, dos irmãos, dos filhos, dos amigos muito próximos
                                                                                                        (cinco, numa vida toda? admitimos o número para a nossa tese? ou deixamos passar como irrelevante, por conveniência do momento e porque, se foda, é a minha voz a conversar comigo e diz o que bem me apetecer?)
                                                                                                                                   é mais no âmbito do jantar com gente que mal se conhece, da rede social, das plataformas quotidianas, o elevador que seja, em que buscam reconhecimento, ainda que por um estropio da Alma, do conhecimento ou do corpo.

Empatiza, anda lá, deixa-te de ser cagão, junta-te. Buscamos, pronto, buscamos, satisfeito? Não me lixes, não é como se escondesse que me agrada, pois não? Mas desta maneira? Em bastando juntarem o molho instantâneo do momento e assim é o seu gosto ? Argh, tu por favor avisa-me se me apanhares nisso. De resto, nenhum receio em reconhecer perante ti, mim, que é bom que me apapariquem. Aliás, porque raio estaria a perder o meu tempo com aquilo do suposto romance se não fosse por esse motivo? Ah a urgência da criatividade, o apelo da veia do escritor. Deixa-me rir, essa história não é tua. Mas qual apelo, amigo? Esforço, muito esforço para vencer a preguiça. Tanta coisa que me apetecia mais - e, por inerência, te apetecia mais também - do que horas à volta de um provável chorrilho de disparates que nem sabemos lá muito bem para onde se dirige.

Oh, está bem, deixa lá, não era este o tema. Se te faz feliz que confesse, que me confesse, também não é por aí que nos zangamos. Dá gozo. É como um 2 Cavalos, demora um bom bocado a arrancar, mas quando entra naquela velocidade de cruzeiro a vapor, desliza suavemente. Para além de que ajuda a ocupar os dias. Pronto, serve para ocupar o tempo que não é de noite e se trabalha, se é que podemos chamar trabalho aquilo.

De todo o modo, o que dizia é que não se trata de um jogo de adivinhar. Espera, tenho que atender. Temos. Sim, mesmo com pouca vontade. E podes tirar esse sorriso parvo, uma vez que nem cara tens. De plástico somos todos. Se queres brincar de novo à honestidade brutal, vamos a isso. Avançamos mais uma vez, correu tão bem de todas as outras, não foi? Não, não, agora fazemos isto como deve de ser e não me voltas a chamar cínico. A nós.

Olá, desculpa mas agora não me apetece falar contigo. Até porque me parece evidente que me ligas a esta hora por mero hábito. Que temos para dizer que seja diferente de ontem? Não te incomodes a responder, eu sei que nada. E de momento não me consigo obrigar a esta conversa de circunstância, ainda para mais a ter que fingir ser doce, por inerência da relação que nos atribuímos. O que eu mais queria era que tu simplesmente reconhecesses este facto, sem tretas, e não levasses a mal. Manda-me um sms a dizer que queres foder e a combinar horas. Sabes o meu horário, olá se sabes, não pode ser tão complicado assim programares o teu dia neste sentido. O meu está definido e haverá sempre esse tempo para nos enfiarmos na cama. Depois podemos ficar em silêncio até eu ter que sair para o trabalho. Porque raio havemos de nos exigir embrulhos para isto? Que necessidade de acrescentar coisas, momentos, ligações, correntes, para lhe darmos uma forma com menos arestas? Isto é algum ovo de Páscoa? Gostamos de nos meter nas cuecas um do outro, talvez porque não tenhamos paciência para procurar diferente. Pode ser só assim?

Vês? É a culpa que desce, esticando os seus longos e escanzelados braços, como uma sombra na parede, e nos envolve a todo Eu. Raios me partam se sei se é pelos outros ou por nós. Se bem te lembras, nunca descartámos completamente a possibilidade de ser somente a nossa incapacidade de lidar com o facto de não nos terem na melhor conta possível. É mesmo muito provável que nos limitemos a não querer sequer pensar. Fica assim: é para não magoar alguém que nos deixamos embrenhar em tantos faz de conta, até tudo ser apenas uma consequência e já não ser preciso preocupares-te. Ah a minha bela vida, à qual te condeno porque és Eu.

Vem, deixa que nos abrace, que nos afague o alto da cabeça, apertando-nos com força o peito, de medo e de raiva. Sentes como é familiar esta culpa que nos explicaram com tanto detalhe que já não a distinguimos de nós? De Mim. O telefone.

- Olá, amor. Não, não, quando atendi já tinhas desligado. Estava a acabar de fazer a barba. Sim, são quase horas de sair. E tu, já jantaste?

...

Honestamente, esta vida de turnos convém-me, do ponto de vista da ambição: um ordenado pequeno, um apartamento a condizer, um carro muito velho, um ou dois amigos muito longe, a família dentro do telefone, mesmo os mortos, uma namorada estranhamente bonita e os horários desencontrados das pessoas. Até gostamos de pessoas, sobretudo lá nas suas lufa-lufas. Por outro lado, é muito inconveniente quanto às desculpas: tenho tempo para o livro, não há vizinhos barulhentos, nem dramas de faca e alguidar com mulher e filhos e o Diabo a quatro.

Em resumo, deveria ser não só mais feliz, como também mais bem sucedido. Está claro que estamos aqui a adotar os critérios de avaliação mais populares. Digamos que estugar agora o passo,  compensando os 2 minutos que não deveríamos ter perdido a fumar um cigarro à porta do café, para conseguir apanhar o comboio, não é o mesmo que inspirar fundo antes de entrar numa reunião muito importante. Mas caramba, aposto que consigo apanhar o suburbano e não tenho a certeza se o senhor doutor não acaba no olho da rua. Corra-lhe mal a apresentação e quero-me rir. Upa, mesmo a tempo, já pode sair da linha quatro. Incha.

Calmamente, o mundo regressará ao seu tom cinza. Que é como quem diz pó. Regressará, mal se escorra o Sábado.
             


2 comentários:

  1. C ovid
    L iberta
    S ilva
    V árias
    O brigações
    Obrigado bicho cheio de espinhos por trazeres de volta estes devaneios balsâmicos.
    Abraço, amigo Silva

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Este só termina lá para 2376 :) E aposto que vamos ser campeões nesse ano! Bem hajas por continuares desse lado.

      Eliminar