sexta-feira, 1 de agosto de 2014
Praia do Torel, ou as prisões do coração
- Leste isto Silva? Inauguraram hoje a Praia do Torel. É estranho inaugurarem uma praia, não é? Para mais no Torel! Agora já se vai preso de toalha e chinela brasileira. - Risinho de escárnio, por entre os dentes amarelecidos da nicotina. - Cresci a achar que ir ao Torel era péssimo pa. Era igual a problemas com a Policia de Investigação Criminal e quejandos. Mesmo depois de 74, não me entrava na cabeça a ideia de ir para o Torel passear no jardim. E olha que é uma das mais fantásticas vistas sobre Lisboa. É sim senhor, Silva. Uma praia, vejam bem... - Deteve-se um momento, pensativo. Prosseguiu:
- Bom dia para abrirem uma praia, não achas? - Retórica apenas, sem nenhuma necessidade de resposta. - 1 de agosto. Tudo a banhos, tudo pró Torel! É o mês dos emigrantes também.
Sabes, quando era puto, costumava pôr-me a pensar nestes tipos. Os emigrantes. Moram em cidades como Paris e Londres e Berlim. E vêm de férias para Cuba, mas no Alentejo, ou para a Brandoa e assim. Não entendia aquilo! Eu aflito para me pirar para um bidonville qualquer e eles a trocarem os Champs Elysées pela Praça do Pelourinho de Avanca. Um gajo quando é puto é burro. Nunca teve saudades a sério, nem sabe o que é não pertencer. Que é isso de voltar para as pessoas? Não era de lugares que se tratava?
E depois, ainda percebi mais. Entendi que voltam para matar as suas saudades e também, ou sobretudo, para se refastelarem nas saudades dos outros. Nas que sentiram deles. - Pigarreou, à espera de um sinal de compreensão. Acenei, sim percebo. - Afinal, é para as pessoas que acabamos sempre por voltar, nunca para os lugares. Ou então vamos a fugir. Ou não estamos a voltar, só a ir. E mais, regressamos ás pessoas na expetativa de lhes sentirmos a alegria do nosso regresso.
Olha, o amor, ai ai, o teu bendito amor caro tasqueiro, é igual! Amamos as pessoas e amamos o amor que nos tiverem. Um alimenta-se do outro, senão desnutre-se. - Devo ter feito algum tipo de gesto que indiciou que ia falar, porque me cortou célere o piu, cerceando a palavra que eu não tinha para dizer. Com a mão direita levantada:
- Não me venhas com histórias Silva. A vida não é um romance do Camilo. Matamos saudades de quem nos sente falta e amamos quem cremos que nos ama, ponto.
- Estão bons os seus filhos? - Tive plena consciência do meu sorriso irónico.
- Jogo baixo, Silva? Sabes bem de que saudades e de que amor se trata. E mesmo nesse caso. Gosto mais da minha do que do meu. A ti posso confessar, que és tasqueiro e o teu código deontológico vale-me mais que o dos advogados. Ladrões esses. E sabes porquê? Se quiser ser completamente honesto, porque sente mais a minha falta ela do que ele. É por isso meu caro.
- Entendo...
- Mas desconfias, já sei. De resto, não tenho nenhuma dúvida, o sentimento que acreditamos que nos têm é sempre uma parte importante do que sentimos pelos outros. O nosso acelerador ou o nosso travão. Eu sou velhote e não vou arranjar uma namorada - o olhar desviou-se-lhe por instinto para a mesa dos putos, para cabelos ruivos escorridos, exuberantes na sua cor de fogo - por isso, posso dizer estas coisas sem medo nenhum.
- Sabe que houveram rosas... - Escapou-me.
- Hã?!
- Nada velhote, estava a pensar alto. Um dia destes vamos à praia, que me diz?
- Desde que não seja no Torel e que tu pagues as viagens... - Encolheu os ombros, como se preferisse tomar um pastis numa esplanada de Saint Germain. Comigo?
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