segunda-feira, 16 de março de 2015

Lucy in the Sky with Diamonds



Não a vejo no plano, mas tenho a certeza que é a voz da Catarina Furtado:

- A concorrente número dezanove, num vestido de Ana Salazar e sapatos Miguel Vieira, que lhe elevam o metro e sessenta e cinco, António Costa. - Palmas na audiência. - António promete erradicar a pobreza, eliminar o desemprego e anseia pela paz no Mundo e o fim da fome das criancinhas. Se for eleita Miss Portugal, pugnará pelo perdão das taxas municipais e pela prescrição das contribuições autárquicas em atraso.- Palmas na audiência.

O plano percorre os vips. Fila E, lugar 14. Sim, sou eu! Impecável em black suit, mas com o avental da Tasca. Levanto-me de braço no ar. O Jorge Gabriel, sentado ao lado do Jesus com a sua eterna pastilha imaginária, aponta para mim com nítido enfado:

- Sim Silva, diz lá.

- Obrigado. Oh mister, porque é que agora fala sempre na segunda pessoa do singular? Se tu não ganhas, pois perdes; jogas por dentro que é para não jogares por fora; e assim por diante. É estranho, é gramaticalmente errado e francamente irritante. Porque recarga de água substitui todos os pronomes pessoais, mormente o eu e o nós, por tu? Repare, se a sua mãezinha lhe pergunta "Jorge, como é que quebraste o vaso chinês?"; que sentido faz responder-lhe "oh mãe, se jogas FM e ganhas a Champions, tens que saltar e festejar, não te ralas com os vasos"? - Ele atira a melena de cor indefinida para trás. Quando me responde, já é a Edite Estrela:

- Meu amigo, as especificidades linguísticas serão sempre secundárias em relação ao ego dos falantes. No caso em apreço, o raciocínio é que os melhores, os mediáticos, falam assim, portanto os cabotinos seguem o exemplo, bom ou mau. Que importa que a origem esteja nos nossos vizinhos castelhanos, que falam mesmo assim? Ou mais remotamente nos nossos aliados da Velha Albion, para quem a forma está, na verdade, correta? 

- E o vaso? - Estava curioso com aquilo do vaso. Fico descansado ao notar que já é o JJ que me responde:

- Se tu partes o vaso, tu ficas sem sobremesa. Tens que arranjar soluções, colas o vaso, compras um novo na loja do senhor Ibrahim, dizes que não foste tu, qualquer coisa... Onde estava o vaso há cinco anos? Quanto vale o vaso hoje? Foste tu que descobriste o vaso e o ensinaste, a sobremesa tem que ser tua!

- Eu?! Mas eu nem tenho um vaso.

- Não! Tu que é Eu. Ou Nós. Quer que chame o Mourinho para traduzir? Ou o Freitas Lobo... - Diz a Edite de dentro do Jorge.

- Não Edite, deixa lá isso. Tenho que ir apanhar o metro.- E vou já em passo apressado na direção da estação. Só que a estação está fechada, por motivos de greve. 

A Ana Avoila está acorrentada à grade. Jornalistas empunham microfones e gravadores fustigados por perdigotos de milhares de entrevistados. Ana grita no seu tom profundamente irritante:

- ...Por isso fica desde já assente que os Sindicatos não voltarão a convocar greves à sexta e à segunda-feira. Isto desde que este governo fascista, imperialista, colonialista, decrete o fim de semana de três dias. - No meio da turba uma voz destaca-se:

- Apoiada! Apoiada! E a criação imediata da carreira de sindicalista. É preciso pôr fim a esta vergonha!

- Sim, isso também. Bem visto Arménio!

A mulher ao meu lado está colada a mim, nua. Ninguém parece estranhar, nem eu. Faz-me festas no pouco cabelo e diz-me baixinho:

- Qual vaso, homem? Está tudo bem, shhh...

Acordo para o meu mar de lenços ranhosos. É quase de dia, é já segunda-feira e há greve do metro. Escondo-me no abraço, fungo mais duas vezes e faço uma nota mental: não voltar a tomar Zyrtec antes de dormir!

3 comentários:

  1. LOLOL! Muito bom!
    Silva, o seu inconsciente é o guião de um filme do Lynch. ;)

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    1. Ou então os filmes do Lynch são um guião para o meu inconsciente, ainda estou para saber... Dane-se, continua a meter aquela atriz bem boa... ;)

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  2. @ Silva

    forte"like!" :)
    (como no 'faceboKas')

    abr@ço
    Miguel|Tomo III

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