Apanho-a sentada no seu banco alto. Seu é já uma força de expressão, quase. Já não vem para aqui balançar os pés e rodar até entontecer. Quer dizer, vem. Mas cada vez menos. Tão menos que me permito pensar que é já não. De todo.
Só quando a apanho assim, por acaso, sem ela notar, é que lhe sinto verdadeiramente a falta. Na verdade, o ditador sou eu. O colonialista imperialista. Em momentos irracionais, de coração apenas, detesto vê-la a escorregar tão irrevogavelmente para a independência. Só que hoje, logo hoje de todos os dias, estás aí, pequena guerrilheira. E eu cerco-te:
- Lembras-te da nossa conversa, neste mesmo lugar do balcão, há um ano? - Enquanto ela desvia a cabeça da minha festa e depois a bochecha da minha barba.
- Não. - Sem sequer pensar.
- Claro que não! - Suspiro. - Queres uma pista?
- Era sobre o quê? - A tentar perceber se vale o esforço. E a fazer rodar o banco.
- Ora, deixa lá ver... Digamos que era sobre nós e a data e assim.
- Ah, sim, sim. Já me lembro. - Mente sem parar de rodar. Seguro-a pelos ombros, fazendo com que o Universo deixe de girar.
Ela sorri e, não mais que de repente, volta a caber-me entre a mão e metade do braço. Sei que vai chorar e que, de alguma maneira, eu devia ser capaz de evitar a dor que a aflige. Também já sei que vai chorar e, quase desesperado, me vou sorrir da minha vontade de a atirar pela janela. Ela permanece frágil, mas refilona, com a cabeça na minha mão e os seus pezinhos de Nenuco a meio do meu braço. Como será que faz rodar o banco, tão pequenina?
Não mais que de repente, põe-me no meu lugar, devolve-me os meus anos e reclama a totalidade dos seus e mais alguns que apenas julga que tem. Com as mãos nos meus ombros:
- Eu lembro-me, não te preocupes: Bates-me na mesma. Agora tenho que ir.
- Logo há jantar de família!
- A que horas?
- Sei lá. E que importa isso?
- Quero ver o ghsfgrethst!
- O quem?
- Não interessa. Aquilo dos Vampiros e dos Lobisomens... - Esclarece com ar de préstóricopá!
- Ah, não me parece, minha menina. E a avó, a madrinha, os tios, os primos... - Ela para, já no chão, a meio do segundo passo da sua saída airosa. Pensa pela eternidade de uns dois segundos. Faz a sua cara espertalhona 32, de olhos meio fechados e semi-sorriso trocista por baixo do buço:
- Não, não me parece que eles gostem de Vampiros e Lobisomens. - Abana os dedos da mão direita na minha direção. - Vejo sozinha, obrigada.
...
Rebelo-me contra as minhas fraldas e contra esta cadeira de rodas e esta botija de oxigénio. Tenho pena pela enfermeira, que é bem boa, e pelo peito de peru com puré de batata das quintas-feiras, que é bem bom. Mas não pode ser mais. Recuso-me a ter estes anos todos que me entregas quando desatas a crescer a essa velocidade.
Sei o número do quarto da minha miúda. Sei que a levam a passear a seguir ao pequeno almoço. Vai só uma auxiliar com ela. Pudera, anda fresca e gaiteira a velha! Posso bem com uma auxiliar. Deixo-a amarrada ao raisparta do pinheiro do jardim, pego na miúda e vamos pintar a manta por esse Mundo fora.
Não, a mim ninguém envelhece a este ritmo. Por isso, fica sabendo que me caberás sempre entre a mão e metade do braço. E acharei sempre que te devo aliviar a dor. Seja como for, seja qual for. Incha!
Bittersweet babygirl! <3
ResponderEliminarfuck me, que se a minha pirralha me apanha tão velho tão cedo, ainda me dá mais lágrimas que um golo do André. pais de filhas. bah. nós sabemos o que dói.
ResponderEliminarOh yeah, it hurts...so good. :)
EliminarAndo a considerar propor ao Miguel Araújo reescrever a letra para "As Filhas dos Outros". Toda a gente sabe que os homens são feios... so help us god.
Eliminarhttps://www.youtube.com/watch?v=D-q3jaELQeo
ResponderEliminar@ Silva e Gabriela
"muitos parabéns!", papás babados :D
beijinhos e abr@ços
Miguel | Tomo III
Obrigado(s) meu amigo...babado. :)
EliminarAbraço.
Irra que nos envelhecem depressa... e quando aparecer "o tal", o grandessíssimo fdp disfarçado de príncipe (e os outros ainda maiores antes dele), é que vai ser... :-)
ResponderEliminarSempre depois dos 65! Dela! :)
EliminarRetratos. Slides. Memórias.
ResponderEliminarTu não escreves, homem. Tu pintas.
Que leitura.
Grato, Drax. Isso é simpatia tua, mas fico todo babado :)
EliminarNão é, Silva.
EliminarÉ puro gosto em ler-te. Verses ou não o futebol. A ti, ao Miguel, aos Jorges, ao Velho, ao Augusto, a tantos outros.
A Bluegosfera é um caderno de bons momentos.
Eles não param...
ResponderEliminarTanta baba de qualidade Silva, e a baba com que ela deve ficar ao ler isto!!
abraço
Pois não pá! Parecem o André André :) Ainda agora estavam a levar um amarelo e a seguir estão a fazer explodir de alegria o dragão. :)
EliminarE não, ela não lê. Só se aparecer no snapcoiso ou no instacena ou assim... ;)
Abraço.
É verdade... elas não andam, correm no seu crescimento. E, de repente, são adolescentes, fecham-se no quarto e só muito esporadicamente procuram o abraço e o beijinho que está sempre lá, pronto para elas...
ResponderEliminarAbraço Azul e Branco,
Jorge Vassalo | Porto Universal
Arco-íris, arco-íris, unicórnio, :p
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