Queres saber os meus pensamentos. Queres que te apresente formalmente aos medos. Imaginas nobres sentimentos e gestos de altruísmo, atos de despojo e proteção - se ainda me tens nessa conta. É provável que esteja cá tudo isso. Mas se converso só comigo, não é o que me vem primeiro - ou sobretudo. É um egoísmo sem vergonha. Eu conto-te:
Tu dormes, eu espero. Avisam-me que não vale a pena ficar para ali, a pelar as barbas, rente às paredes. Posso ir dormir para outro lugar. Estas são as horas que as eternas crianças não enchem. As nossas escadas não emitem sons de patas, a nossa cama não gela nos espaços que não ocupamos. Tu dormes e o meu sono fugiu.
Já do lado de fora, inspiro o frio que se pôs. Procuro um veículo indiferente, que seja parecido com o que nos costuma conduzir. Tento medir o tempo no último bafo do meu cigarro: São tantas horas e tais minutos, num Mundo sem ti.
Deixo escorrer a madrugada numa velocidade demasiado lenta, por asfaltos subitamente estrangeiros. Espantam-se os olhos em edifícios desconhecidos, erigidos nos exatos locais de outros que nos foram comuns. Perco-me pelas estradas de sempre, estranhamente renovadas nos seus sentidos e destinos. Sem esperança de me reencontrar enquanto durar determinado sono induzido, vou por ruas estreitas e amplas avenidas, ocasionais alamedas e até, consequência de repentinas curvas suaves, distraídas veredas, improvavelmente iluminadas no meio da escuridão.
Numa berma, - ou seriam segundos de um portão a mover-se - pauso para confirmar que o planeta gira e coisas lhe acontecem. À volta, pode ser uma multidão atarefada ou carros esporádicos a cruzarem espaços vazios. Busco a exaustão que me acelere o relógio. Ou uma agitação qualquer que me tire do torpor de não saber o que fazer. Como se alguém, por desenfado, tivesse cortado esta dimensão ao meio. Pela metade.
Penso se, muitos anos depois deste, haverá um velho amarelo de nicotina, rodeado de petizes sem a dentição completa, rindo misterioso e pigarreando, sussurrando à sua atenta audiência: Oh sim, quando era um catraio como vocês, os velhos falavam do dia em que foi visto. É certo que por essa era passou por estas partes metade de Fulano. Por estes ermos, onde antes nunca tinha estado inteiro.
É confuso saber onde se está e não reconhecer o local. Sentir que os objetos nos falam numa língua a um tempo familiar e ininteligível. Como se não pudessem completar as palavras do susto da saudade maior: A de si próprio.
Finco os dedos das mãos nas pernas, logo acima dos joelhos. Vejo para lá das veias salientes o sangue numa lufa-lufa de empregado de mesa. Reconheço-me em alguns glóbulos brancos, armados até aos dentes. No conforto de olhos de Leão que se fecham nos meus, piscam de novo, e no toque felino do dorso que se deixa cair contra as minhas costas. Um degrau acima do meu. São escadas. De uma casa posta, por artes mágicas de Medusas e Minotauros, na terna elevação onde uma vez morámos. Agora sei.
Por fim, há uma clepsidra que determina a vitória do meu cansaço. Vago nas suas reminiscências: Ensanguentados caminhantes, medievais criaturas aladas, cuspindo fogo sob as suas cabeleiras brancas. Caindo em espiral pelo vórtice do nosso abraço. Há quanto tempo?
És tu que me anuncias o régio despertar. Casual. Surpreende-me não ter sido um gesto compassivo, de protocolar profissionalismo, de uma voz indistinta. Instantâneo, o meu cérebro dispara ordens das tarefas que afinal conheço de cor, processadas em divisões que são forradas com a minha pele. Sei todos os caminhos, sem erros, automáticos. Não preciso sequer de pensar, porque todo este Mundo sou eu. E tu. Os meus pulmões funcionam no compasso da tua respiração, como tu pestanejas no ritmo dos meus olhos. Gastos. Estranho estar sentado nas nossas escadas, com uma garra do gato cravada nas costas.
Tu acordas, eu corro. Porque as minhas pernas voltaram para casa. Ou os braços. A parte que calcorreou um Mundo sem ti. Metade.
Finco os dedos das mãos nas pernas, logo acima dos joelhos. Vejo para lá das veias salientes o sangue numa lufa-lufa de empregado de mesa. Reconheço-me em alguns glóbulos brancos, armados até aos dentes. No conforto de olhos de Leão que se fecham nos meus, piscam de novo, e no toque felino do dorso que se deixa cair contra as minhas costas. Um degrau acima do meu. São escadas. De uma casa posta, por artes mágicas de Medusas e Minotauros, na terna elevação onde uma vez morámos. Agora sei.
Por fim, há uma clepsidra que determina a vitória do meu cansaço. Vago nas suas reminiscências: Ensanguentados caminhantes, medievais criaturas aladas, cuspindo fogo sob as suas cabeleiras brancas. Caindo em espiral pelo vórtice do nosso abraço. Há quanto tempo?
És tu que me anuncias o régio despertar. Casual. Surpreende-me não ter sido um gesto compassivo, de protocolar profissionalismo, de uma voz indistinta. Instantâneo, o meu cérebro dispara ordens das tarefas que afinal conheço de cor, processadas em divisões que são forradas com a minha pele. Sei todos os caminhos, sem erros, automáticos. Não preciso sequer de pensar, porque todo este Mundo sou eu. E tu. Os meus pulmões funcionam no compasso da tua respiração, como tu pestanejas no ritmo dos meus olhos. Gastos. Estranho estar sentado nas nossas escadas, com uma garra do gato cravada nas costas.
Tu acordas, eu corro. Porque as minhas pernas voltaram para casa. Ou os braços. A parte que calcorreou um Mundo sem ti. Metade.
Peso do passado em forma de saudade ou receio do inevitável futuro?
ResponderEliminarAbraço
Só uma soneca mais prolongada ;)
EliminarAbraço.
E bem regada, espero :)
EliminarLá isso... :)
EliminarBravo. Sublime.
ResponderEliminarAbraço
Obrigado meu amigo. Até sábado :)
EliminarAbração.
ResponderEliminar@ Silva
tanta prosa para dizeres que tens saudades do FC Porto e de ir ao Dragão :)
ps:
fantabulasticamente brilhante, como sempre!
pps:
#cincazeroSilva
abr@ço forte
Miguel | Tomo III
Desta vez não falha: cincazero mesmo. Para matar saudades. :)
EliminarAbraço.
Também conheço um senhor de idade que muito nos deu e que agora está inquisitóriamente a ser queimado numa bluegosfera na qual não me reconheço.
ResponderEliminarAs memórias das gentes não são curtas. São esporádicas!
Pum!
Eliminar@Felisberto Costa
EliminarÉ um ponto de vista.
Outro, onde me incluo e estou convencido que a grande maioria também, é ter memória de elefante e uma gratidão/estima imensa por quem fez o inigualável!
E não suporta assistir à sua queda!
Ele não merece!
Mas só ele pode evitar!
O nosso Porto está doente... cheio de parasitas!
Abraço
É um ponto de vista também...
EliminarE eu a pensar que eram saudades da sua cara-metade. E um livro, é para quando? Eu compro.
ResponderEliminarAh, alguém que lê as tags, por fim :)
EliminarE obrigado pelo elogio implícito, fico muito contente. Mas os livros são para os escritores. E para os leitores. Sou dos segundos.
Abraço.
PS. Mas pode mandar a guita na mesma! :)