quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

A Mesa do Canto: Um Mundo de Trampa (com Jorge Vassalo)



Toda a gente sabe quando ele chega. Nem que seja pela gargalhada ao longe. É, quase sempre, o dono da bola. É assim que o vêem os velhos, que lhe procuram a opinião, para a compararem com as suas próprias, na ânsia de se confirmarem das suas certezas. E também os putos, que lhe invejam a paixão e o conhecimento, em sucessivos abanares de cabeça concordantes. É apenas normal ouvirmos por entre as mesas coisas como "Até o xôr Jorge concordou comigo, venjagora tu desdizer. Tá bem, tá...". Ou alguns "Olha, como disse o Jorge...".

Eu sou o ranhoso, já se sabe. Dou-lhe água pela barba e abuso, quantas vezes, da sua Santa paciência. Oh sim, andamos à bulha à volta das nossas opiniões divergentes. Depois abraçamo-nos e despedimo-nos até breve. Sempre até breve. 

Passa pelo balcão, no percurso usual, para um "cheguei!" no aperto das nossas mãos. Hoje tarda-se um bocado a olhar-me.

- Tájolhar pradonde, pá? Sou bonito, pois sou? Agradecido. - Enquanto passo por água os copos da ginjinha.

- Ui, és lindo. Olha lá, oh murcom, andas com um ar macambúzio, estás com prisão de ventre ou assim? - Interrompe a risada à sua própria piada, para cumprimentar mais uns quantos que se aproximam. Eu berro-lhes:

- Cuidado pessoal, diz que o gajo está aflito dos gases! Até a guedelha se lhe amarela. Parece o palhaço do Trump. - Os copos todos alinhados, a escorrer, prontos para as próximas rodadas. Com ou sem elas. Para mim, sempre com! No meio da roda que se formou, ele atira-me:

- Já estou a ver onde te dói. Depois passa ali... - E vai tomar assento na Mesa do Canto.

...

Sento-me à sua frente, a garrafa de ginja e dois copos o meu dote. 

- Então Vassalo, Vassalinho, que tal?

- Oh meu, já percebi que andas às voltas com isto do Trump. Andas, não andas, diz lá que não. 

- Pois claro que sim, não sou nenhum estúpido alienado!

- Ya. Alienado não és, não senhor. - Rimos. 

Bebemos uma ginja. Ele faz cara feia, eu faço aaaahhhh. Sei que está só a fazer o favor, que é uma coisa de amigos, de me acompanhar. Menos um copo que bebo, porra! Diz-me:

- Olha lá, pá, não sejas maricas... - E eu ajeito-me na cadeira, porque sei que a aula vai começar.

...

- Sabes, Silva, nesta Mesa do Canto confesso-te um segredo: ninguém diria, pela forma obstinada com que vejo a bola, mas sou uma espécie de Silva da vida no geral.

Explico-me. Fiquei tão assustado como qualquer outro quando vi que aquele símio tinha ganho as eleições. Não posso dizer que tenha ficado surpreendido. Afinal, a via de entrada da Trampa tinha sido a soberba Democrata – e em grande número, republicana também. Afinal, Donald Trump - ou Donnie Jingles, como Penn Jillette, no seu fantástico podcast, o apelida – era o comic relief. Era só o cromo que dizia aqueles zingers incómodos que pouca gente na política teria coragem suicidária para dizer. Só que, como em tudo na vida, de repente ganhou proporção e tornou-se imparável, porque foi subestimado.

Do outro lado, a apparatchick senhora Clinton, cujo sonho molhado sempre tinha sido a Oval, e tinha feito TUDO para lá chegar, apresentava-se como a candidata natural dos Democratas que, subestimando Jingles, achavam que bastava dizer apenas “eu tenho um pipi” e “eu não sou Donald Trump” para ganhar eleições. Subestimado estava Jingles, como também subestimado estava o efeito de aversão que representava ao povo simples, humilde e esforçado, ter um membro do establishment do poder político instituído como alternativa a um populista. 

Ainda se acordou, mas já era tarde. Nem a promessa de ver as estupendas mamas da Katy Perry, nem de ter um felácio da própria Madonna - … - mudou o que quer que fosse. Estranhamente, as pessoas queriam política, mesmo. Era falsa, mas a propaganda passou.

Só que, lá está, sou um optimista. Em primeiro lugar, sei que não bastam as ordens executivas que, sua excelência o senhor Hair Of Piss, assina, para se tornar lei. É preciso que sejam legais e que passem o crivo democrático do senado, do congresso, dos tribunais federais. Que chatice, pá! Mas esses são os instrumentos de contrapeso democrático que asseguram que a verdadeira democracia funciona. Não é uma oligarquia, é uma presidência.

Em segundo lugar, não temo vilões. Aprecio, aliás, corporizações de erros. Eis, aqui, o resultado de toda a estupidez massificada que o pôs neste desiderato. O verdadeiro Mal mora no cinzentismo, na indiferença, na complacência amorfa de quem tem o seu como adquirido e que deixa para os outros aquilo que não lhe afecta directamente. Só que afecta. Quando se tenta bloquear direitos, liberdades e garantias que todos temos como certas, aí o tecido abana. 

Tem sido fascinante de ver as marchas pelos direitos das mulheres, a defesa pró-bono por parte de advogados dos cidadãos americanos impedidos de voltar ao seu País, em suma, aquilo que sei há muitos anos: basta que algo suficientemente mau surja, para que haja o seu anticorpo em grau igual ou superior a funcionar.

E acho, evidentemente, todas as comparações Trampa-Hitler manifestamente exageradas. Um é pateta, egocêntrico, tão fechado sobre si mesmo que pensa MESMO que basta assinar uma “executive order” para que tal se faça, como por magia. Naturalmente, todas estão a ser revertidas, anuladas, devolvidas com um “lamentamos, mas não pode ser exactamente assim”. 

Hitler era um estratega brilhante, ele próprio com muitos traumas e fobias, que arrastou uma nação inteira apelando a um Nacionalismo ferido das perdas de uma guerra que os havia pulverizado, propaganda estrategicamente colocada e brilhantemente articulada para passar a adulterada ideia Nietzcheziana do Super-Homem como verdade, possível e alemão.

Sempre gostei muito da piada de, creio, George Carlin, que dizia que, se tivesse uma máquina do tempo, não mataria Hitler. Comprava-lhe todos os quadros. As esculturas. Faria dele um artista famoso. Foi o alimento do medo, o sentimento de inferioridade que a maioria da Alemanha sentia nessa altura, que permitiu que Hitler justificasse a barbárie sobre vários povos. Foi a anuência de um povo inteiro, e dos que lhe seguiram, que fez dele quem ele foi.

Poucos americanos se sentem inferiorizados em relação ao resto do mundo envolvente. Tudo aquilo que passou da mensagem da Trampa, foi apenas o apontar de dedo, dizer que a culpa era do estrangeiro. Do poder político mancomunado com a alta finança. Dos terroristas. Só que, na verdade, em apenas duas semanas, Donald Trump já destruiu dois terços do seu capital político. 

Nomeou Wall Street em peso para o governo, agitou o suficiente as consciências adormecidas daqueles que julgavam que tudo estava garantido, para se perceber que é preciso um pouco mais para se solidificar o progresso efectivo e desmentiu, e continuará a desmentir, a sua capacidade real de mudar o que quer que seja, efectivamente.


Para cada acção, há sua reacção correspondente. Donnie Jingles já conseguiu acabar com muita da apatia, da indiferença e do cinzentismo. Sou agora alguém mais optimista para com o futuro do que há uns anos atrás. Um povo mobilizado é necessário para o progresso de um mundo que se quer com valores vincados. Sim, porque esta estupidez fez também com que o resto do mundo dissesse “aqui não, meu amigo!” E isso só me pode deixar… optimista. À lá Silva!

Jorge Vassalo | Porto Universal

Este senhor também opta por escrever na ortografia antiga. Ultrapassado!

...

Cincazero!

10 comentários:

  1. Primeiros: OBRIGADO Jorge!
    Depoises: Espero que o teu otimismo se revele acertado. Ainda estou muito abananado com o que se vai vendo e tenho dificuldade em gritar alto o meu cincazero. Exceto pela qualidade da tua reflexão, mas esse já ficou no texto.
    E aindas: Tenho muitas dúvidas que Hitler fosse um estratega, let alone brilhante. Mas isso são contas de outro rosário.
    Finalmentes: Sim, pode ser uma oportunidade para o resto do Mundo, nomeadamente a Europa. Mas queremos mesmo construir um Mundo, e portanto uma Europa, diferente? Sei lá, pá!
    Abração.

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    1. ObrigadoS pelo convite, amigalhaço!

      Sim, Hitler era um brilhante estratega. Obviamente, nos antípodas de cada fibra do meu Ser, da minha Moral ou conduta, mas não é por desprezar a sua bestialidade que vou negar-lhe as qualidades que fizeram dele o que foi. Subestimar os erros da Hitória é uma coisa muito perigosa, pá! Não quero que tenda a repetir-se!

      Não é "o resto do Mundo". É uma oportunidade para a America, de rever todo o ser pior ao espelho e decidir ir por outro lado. A mudança efectiva é aquela que perdura no Tempo, e não me parece que 4 (ou 3, ou 2, ou 1...) ano(s) de Trampa façam assim tanta diferença... excepto como contra-exemplo!

      Abraçom

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    2. Jorge (se me permite tratá-lo assim) por amor da santa vosselência não siga a moda de designar o país EUA por américa. É q'esta é muito grande e tem p'raí mais de 20 países... ou coisa parecida!

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  2. Uma bela crónica do Jorge. Claro que não mete espanhóis, senão aí estavamos em profundo desacordo :))

    Hitler era estadista. Cruel, sanguinário tal como Estaline. Mas tinha a noção de Estado, o aproximar do povo ás suas ideias.
    Trump não passa de um narcisista inseguro, petulante e passageiro. É um fait-divers que o tempo se encarregará de mostrar que nem todos os ignorantes são burros, mas todos os burros são ignorantes. E a América (então a rural, branca, sectária e protestante!) apesar de toda a sua força e potência, é burra que se farta!

    E a mesa do canto cada vez mais com clientes selectos, de opiniões claras e concisas.
    Ainda vou ver a Tasca no guia Michelin...

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    1. Se a Tasca ainda não está no guia do tal Michelin, é pq o gajo é lampião!
      E não sei, tenho sempre receio de burros cheios de poder. Às tantas parecem estadistas e estrategas e assim... ;)

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    2. Obrigado Felisberto. Eu não os distingo pela nacionalidade...

      E sim, os burros podem parecer doutas personalidades com a dose de medo apropriada....

      Abraçoms!

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  3. olha o Vassalo a dissertar sobre loiros platinados. se ainda fosse sobre loiras com un gran par de platinados y olé, ainda vá. agora sobre a trampa do Donald...

    ps:
    num registo mais sério e corroborando o comentário do Felisberto, parabéns a "ambos os dois" pelo momento de distracção do quotidiano da bola. valeu bem a pena a leitura.

    abr@ço forte a "ambos os três" 😎
    Miguel Lima | Tomo III

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    1. Vassalo a Nuno Rogeiro, já! É como vos digo, análise política em condições, é na Tasca...
      Abraço.

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    2. Nuno quê? Dafuq!!!!???? You take that back, sir!!!! Ainda por cima é vermelho!!!

      (o meu tio Abílio uma vez deu-lhe um coça debatente que ele até ficou paneleiro dos olhos!)

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    3. There, there, era só uma expressão. Majokay, i take it back. De facto o Rogeiro é mal escolhido. AGora, de que olhos é o moço paneleiro, nem quero saber :)

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