sexta-feira, 10 de março de 2017

Anacrónico

In blancke, DeviantArt




Olá, sou eu. Como estamos hoje, meu Amor?

Já cheira a Primavera, o que significa que é bom que tenha poupado bastante durante o Inverno, para a renda de lenços de papel e Atarax. Para ser honesto, já desde fevereiro que me comicha o nariz - abençoada flexibilidade - à conta das mimosas. Está claro que vale bem os espirros, de feio que seria o Mundo sem essa praga amarela, incontrolável, omnipresente na beira de todos os caminhos.

Voltei por estes dias à Fundação. Estás certa, se pensas que passei por nós nos átrios imaculados, nos espaços arejados, nas vidraças rasgadas para o jardim interior, nos sorrisos de todas as receções. Lá estávamos, uma vez a tomar café e a falar de um tempo que podia ser sem Ti; outra a fumar contigo na curva da entrada; outra a fazer planos para roubar o telefone aos senhores. E só com muito esforço me lembrei do consultório e da ciência.

O Tempo é uma questão muito dúbia quando És o assunto. O sítio está na mesma, o que não será de estranhar. Mas no primeiro passo lá dentro, os meus olhos procuraram referências. Como um velho habitante de Vilarinho, a mirar as ruínas afundadas na albufeira. Não passaram esses dias todos, segundo me explico no instante seguinte.

Tu sabes que vou de espírito mais leve, confiança elevada, um sorriso mais franco e ideias muito claras. Mas de armadura, em todo o caso. Conhecemos o Medo, eu e Tu. Agora não me tolhe, mas mantenho-lhe o respeito. 

Sei que está lá, espreitando pelas minhas manhãs escuras a comer quilómetros por instinto, a mente a perder-se pela letra de uma canção; sinto-o a tapar-me a boca e o nariz - que mão enorme tem o Medo - só para me mostrar o que seria viver sem respirar; e passeia sempre connosco nestes lugares, acomodado nas suas diferentes intensidades: Hoje de raspão, como ontem a rasgar a carne em facadas certeiras.

Reconheci os sinais: A cadeira de rodas da falta de força, os gorros da quimio, as bochechas da cortisona, as mãos nos olhos, do cansaço extremo da sobrevida. Tudo temperado com o ar confiante e a expressão de carinho alegre do pessoal residente. Circulante.

Mas o estalo não foi, nunca seria, rever-Te. A surpresa - sei lá eu porquê, perguntas cada coisa! - foi reconhecer-nos. Detetar os nossos sinais, perceber que, muito provavelmente, nós - os que te empurraram por corredores - sorriamos aquele sorriso tão triste; passávamos a mão na tua cara como cegos a decorá-la; dizíamos-te que sim a nada, enquanto procurávamos uma gargalhada parva. A diferença é que a encontrámos sempre. Porque nos ajudavas. Quase sempre.

A minha dor maior é o Medo. É por isso que sei que Amo quando a primeira opção é evitar que tenham Medo. Este de maiúscula, o que se tem do Nada desconhecido, da completa Solidão sem prazo. Não pelo Um, mas pela ausência do Outro, pela falta de notícia, por não saber se alguma coisa o amedronta tanto que sinta Medo.

Tu morreste-nos. Eu sei que isso significa que não tens mais Medo. E venho dar-te notícias da nossa Vida, para que saibas que cá estamos, enfrentando com risos parvos os nossos monstros. Para que possas ir descansando, sem tirares os olhos de nós e dos sítios por onde vamos.

Saí pela porta de sempre, não há outra. Repeti a sensação de que lhes é mais importante o procedimento do que o resultado - como eu a queixar-me de que o FCP jogou mal, depois de ter ganho - mas tranquilo em mãos dadas. A minha Eternidade, por escolha, nos dedos entrelaçados. 

Num dos passos a caminho do Mundo das pessoas comuns, fora da Fundação, em direção aos magníficos planos do resto daquele dia - curiosamente, tão parecidos com outros de um dia seguinte - deixei de saber se passou muito tempo e já lá vai o Inverno; ou se foi mesmo agora e ainda nem é Primavera. A primeira.

Acontece-me sempre isto nos Teus lugares. Tenho dificuldades de perceção temporal, sinto-me assim, estranho. Anacrónico. Não sei porquê. Mas hey, nós vamos falando. Até já.

14 comentários:

  1. Meu Caro Silva,

    Anacrónico tem sido o desempenho do FC Porto em relação aos costumes instituídos, contra o pensamento de um País cada vez mais centralista, mas em contrapartida ao gosto de seres pensantes e que fazem bom uso do córtex, como nós Portistas.

    Ontem, mais uma vitória categórica do FC Porto. Ao contrário da Leonor da "cantiga" de Camões, segue formoso e seguro o nosso FC Porto.

    Grande abraço e...

    FC PORTO SEMPRE

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    1. Está o meu amigo coberto de razão, como é hábito.
      Um abraço

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  2. Bonita e corajosa a forma como vives a situação.

    Abraço

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    1. Acho que discordo, mas também não tenho a certeza...
      Por outro lado, viver é sempre um ato de coragem. E é sempre bonito. Pelo que...
      Abraço

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  3. Os dias arrastam-se... combate-se a moinha... avança-se...recua-se e...
    Continuamos a tentar posicionar-nos neste tabuleiro como reis confiantes com o nosso cavalo a galope pela vida fora, quando uma jogada inesperada nos faz 'check this, please' e quais peões no jogo das probabilidades, ficamos impotentes e só nos resta seguir, porque há mais caminho para fazer e desafios com novos a ultrapassar, sabendo sempre que o que está para trás ainda não acabou...
    eu acredito que não...
    e é tão reconfortante!
    Abraço.

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    1. Acaba quando deixamos que acabe. Só.
      Ah, bem catita a gorja. Obrigado.

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  4. ah...
    https://www.youtube.com/watch?v=TJlRK-f9nVs

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  5. (emojis de família. Amor. Saudade.)

    <3

    Raka

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    1. Seguimos fortes 💪 Que é como quem diz, juntos. Sempre!
      Bem-vinda, least favourite :) volta sempre, meu amor.

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