sexta-feira, 3 de abril de 2020

A Mesa do Canto: O som do silêncio (notas do correspondente em Madrid)





Nota-se logo que estamos à beira da Páscoa. Um tipo não pode abrir o postigo para aviar umas bifanas em take-away que aparece logo um espanhol. Chiça, oh homem, fale de longe que vocês se perdigotam bastante, coño. Olhe, ainda melhor, pegue lá esta resma de papel e escreva aí o que quer que eu depois recolho. Grandes saludos e tudo e tudo.

E ele escreveu.

...

Conseguem ouvir? É o silêncio, o bendito silêncio.

De todos os dramas e tragédias sai sempre algo positivo. silver lining, dizem lá para terras americanas. Nestas últimas semanas, para os que gostam da bola quase tanto como gostam de liberdade, o triunfo tem sido o silêncio. Já não se ouvem aqueles intermináveis zumbidos catatónicos de painelistas e opinion makers, em horas e horas de tertúlias e shows televisivos dedicados ao futebol. As contas dedicadas a espalhar ódios, mentiras e polémicas, a soldo dos clubes ou de interesses turvos, estão caladas. Os ultras, dedicados a perseguir os companheiros de clube que não pensam como eles são agora tumbas. E diz que o Manafá está a ver vídeos do Beckham para melhorar os centros. Pelo menos a bola já não anda a partir as janelas dos vizinhos. 

Na cultura de mediocridade criou-se a sensação que esta gentinha sem escrúpulos, que funciona como sangue-sugas, é parte do jogo, parte fundamental. Eles gostam de acreditar nisso e a muitos têm deveras enganado. Mas os que temos saudades de ver a bola rolar, os que andam a ver jogos antigos, a jogar jogos virtuais e a sonhar com tocar ou ver mexer o esférico, finalmente perceberam que esse esterco não tem lugar no futebol. Que sem eles tudo é mais saudável. Porque tudo isto tem mostrado que nós, os adeptos, os que não lucramos nada com isto do jogo e que até perdemos dinheiro, paciência, anos de vida ou cabelo à custa do stress que ganhamos quando a bola chega aos pés daquele lateral que não sabe centrar, temos descoberto neste vazio que somos quase todos iguais e que é muito mais aquilo que nos une, como adeptos, do que aquilo que nos separa. Ao invés do que uma cultura de ódio sempre quis fazer crer.

Ao contrário do dono desta tasca, sábio a gerir o seu tempo livre, eu perdi muito do meu a ver jogos. O FC Porto é o meu clube desde que tenho memória e, só ao vivo, devo ter visto mais de duzentos jogos, para não falar nos televisionados mas, realmente, essa percentagem é pequena se comparar com os milhares de jogos que vi desde tempos imemoriais até há três semanas atrás. E sabem o que me chama sempre a atenção? Que somos todos iguais. Somos, os adeptos. Ouvimos no estádio cânticos que a claque copia de italianos dos anos 90 (vejam um Fiorentina vs Lazio de 98 e vão entender), todos achamos que nós somos o clube da mística, da raça, de fazer as coisas bem, todos nos sentimos especiais ao abraçar um emblema, umas cores. Todos repetimos o mesmo discurso, porque todos estamos apaixonados e a minha mulher é a mais bonita do mundo e de certeza que é mais do que a tua (que não deixa de ter umas boas coxas, atenção) e fazemos isso desde a crença, desde a positividade. Encontramos, ou encontraram por nós, slogans em que acreditamos a pés juntos, mas repetimos todos o mesmo padrão de comportamentos dentro e fora do estádio. 

Os roubos são sempre CONTRA nós, os árbitros são sempre comprados pelos OUTROS, os meus jogadores são os melhores e quando são maus são os piores. Como assim o teu lateral direito é pior do que o meu? Todos tivemos ídolos que foram os maiores, decepções que foram as piores, transferências recordes porque nós é que valemos ou negócios que falharam, porque nós é que sabemos negociar. A frase é sempre a mesma, muda a cor e nada mais. 

Sentem-se a ver tranquilamente um jogo ao lado de alguém de um clube rival e vejam como são vocês, a cruzar o espelho como a catraia. Não há rivalidade sem futebol e futebol sem rivalidade. É saudável e alimenta a alma. mas vejam The English Game e entendam que até no início havia rivalidade. Mas também união. Há países onde isso se perdeu, outros onde nem tanto, mas essa é a realidade e para interesses próprios foi substituída pela cultura do ódio. 

Há uma diferença. Eu posso sentir rivalidade com um clube, querer que perca para que o meu ganhe (ou para que perca, simplesmente) mas isso não significa que os odeie ou que sofra se cumprirem os seus sonhos. Há que amar e empatizar com o próximo (namasté). Mas esse ruído sujo e lamacento que agora, curiosamente, não se ouve, tem-vos dito que aquele presidente é um malandro, que aquele treinador é uma besta, que aqueles adeptos são TODOS – sejam 5 ou 5 milhoes – uns animais e que tens de carregar no botão do ódio e ir vomitar para as redes ou para as bancadas esse peso. E não tem que ser assim. Estas semanas demonstram-no bem. Tenho visto, admirado e invejado, no bom sentido, como existe em outros clubes que não o meu uma bonita cultura de clube, gente com projetos bem estruturados, independentes, dos adeptos, que estão a matar este imenso tempo livre com amor ao clube. Não a vomitar ódio ou dissidência, mas a criar comunidade, seja entre os seus, seja entre os que gostam de bola. E é bonito, seja qual for o clube de cada um. 

Mas depois faço introspeção e olho para casa. E vejo quase só silêncio. O mesmo silêncio do início, desse esterco ambulante que contaminou o ambiente durante anos e que não existe se não há ódio, confrontação e luta. E penso nas contas de redes sociais caladinhas e quase todas são da minha cor. E vejo que noutros clubes há muita gente que polemiza que agora se está a dedicar a falar do jogo, da comunidade e olho para o mundo azul e branco e vejo pouco e ouço pouco. Não há praticamente projetos que façam clube, comunidade entre os meus. Não há quem recupere a história para que ninguém esqueça que sempre fomos um clube maravilhoso, mesmo antes de 1978. Não vejo canais de YouTube ativos, raramente há podcasts que debatam o clube e a quantidade de contas tão ativas a denunciar polvos e padres e dramas, andam caladas quando podiam estar a falar do Hernâni, do Bibota ou do Alenitchev. E chego à conclusão de que se calhar há clubes que nunca perderam a noção de quem eram e outros que abraçaram tanto a cultura do ódio, do confronto e da luta que em tempos de paz não sabem atuar. 

Foi-lhes dito que só se olha para o presente e para a frente e muitos idolos saíram sem o seu merecido aplauso. Apagou-se uma enorme parte da historia do clube porque não encaixava na narrativa da neolíngua e agora as pessoas esqueceram. A mordaça que rodeia grande parte do clube atontou os adeptos que são incapazes de se organizar e mexer, sem que tenham de passar pelo filtro de nós contra todos. É comê-los, carago! E tudo isso importado de outros lados porque aqui ninguém inventou nada. 

Numa época em que todos estamos a perceber que valemos uma merda, que a nossa vida e a dos nossos pode voar sem se dar por isso, é ainda mais doloroso lembrar que quando se marca um golo no Dragão ainda há quem se lembre primeiro de um rival e depois de si próprio. Se esta crise humana brutal nos está a ensinar algo, é a colocar tudo no seu devido sitio e o ódio e a falta de empatia e amor deviam ficar definitivamente à porta, sobretudo de um estádio de futebol. Mas, se calhar, é por estar rodeado de pessoas a morrer e não a tomar um café na marginal de Gaia que me dá para pensar nestas coisas. Se calhar. Bota lá mais uma que nesta tasca até o silêncio é diferente.



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1 comentário:

  1. Muita razao neste comentario, mas atencao que a culpa nao é so da mao que da a palha ao burro. É tb do burro, na minha opiniao. Bastará que tenhamos uma sucessao para que as coisas possam melhorar.

    AM

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