sábado, 4 de abril de 2020

CLSVO - I .1


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Se fossemos mais do que meros observadores passivos, imaginemos antropólogos ou outro qualquer logista, teríamos tido a sorte de apanhar o CLSVO no seu melhor dia. Sabemos que sétimo é o filho clarividente, a onda final, sete os escorpiões de Isis, as plêiades - bem boas, por sinal - sétimo o dia em que Ulisses deu com Calypso e em que o Senhor descansou.

Pelo contrário, perante os nossos impotentes olhos a vida borbulha. Tomemos a vista de um hóspede num apartamento mais elevado do hotel em frente. A varanda acima do muro do CLSVO, o cigarro a queimar lentamente enquanto o café arrefece. Ah os dias de chinelo de dedo, um calção qualquer e cotão no umbigo. Mais cedo do que o resto dos comparsas deste veraneio, aproveitando dois ou três momentos de si próprio, sem ter que gargalhar ou emendar ou instruir ou puta que pariu mais os papéis que lhe estão atribuídos, por Graça de um Deus. Nesta solidão, pode sentir sem culpa que lhe comicham os tomates, soltos na cueca de rede embutida nos calções. Pode coçá-los, essa é que é essa, sem se preocupar com mais nada senão o alivio. Deixar o pensamento assim, boçal, vazio, bestial, e os olhos, elétricos, a varrerem o território. A mente canta-lhe: up here in space, i'm looking down on you. My lasers trace everything you do.

Entra-se por uma passagem estreita, espremida entre a parede do Restaurante e um muro sem serventia. À esquerda, a Ilha dos Gelados, com o seu metro quadrado de relva amarela, onde se apinham os velhos de lenço na cabeça e banquinhos articulados de assentos às riscas, à sombra de uma palmeira antiga. Por detrás dela, a loja ínfima das guloseimas e pedaços de gelo com muito corante. A Meca dos bandos de pardais, quais putos à solta. Ou talvez seja ao contrário, por vezes falha-me o Ary.

Para a direita o País das Escadas, mesmo em frente às grandes portas de caixilharia de alumínio da sala de refeições, eternamente vazia. As escadas, seis degraus corridos em três metros de comprido, são a terra dos escorraçados. Das famílias que vieram atrasadas ao chamamento da espreguiçadeira, dos banhistas arreliados com os seus descendentes, dos descendentes fugidos dos seus arreliados progenitores, dos bandidos que entraram sem cartão, aproveitando um momento de distração dos zelosos funcionários, e dos nómadas. Aqueles que vêm logo antes de almoço, com sacos de plástico cheios de pão e geleiras com bolas de queijo e cervejas mini. E comem às escondidas, benzendo-se em pecado, cabeça ao alto em busca das forças militares da Esplanada, e a Alma, perdida para sempre, a repetir-lhes em letra de forma: "Não é permitido o consumo de bebidas ou comidas ou outros quaisquer mantimentos do corpo, senão os adquiridos no nosso Templo, ámen". Dos que trazem sandes de chouriço para os petizes e lhas dão dissimuladas entre um mergulho e uma chapada e os mandam ir comer para longe. O País das Escadas é um campo de refugiados abastados, uma Alcatraz de prisioneiros pouco perigosos, paredes meias com a Esplanada, Zona 1.

É logo outra vida, outro planeta. O colorido amarelo dos chapéus de Sol chá gelado, a contrastar com o vermelho desbotado das mesas e cadeiras de cevada e lúpulo. Ali postadas em pleno cimento, vanguarda das suas irmãs finas, em tábua de madeira, que se abrigam no alpendre elevado do Restaurante. Se nas primeiras é o bulício dos salpicos, a revoada de toalhas molhadas, as banhas a cobrirem as cuecas dos biquínis nas posições sentadas, o tilintar das garrafas de cerveja; mais acima é o reino do páreo, do chinelo de piscina com pêlo farfalhudo, dos óculos no topo da cabeça, cabelo amarrado em rabo de cavalo e o som suave do gelo a rodar nos copos de gin. Só as banhas permanecem, mais discretas, sob o olhar invejoso dos escadistas que se atrevem a deambular pelo CLSVO.

A fronteira é delimitada por mais caixilharia de alumínio e vidro simples, atrás do qual se ofusca o self-service dos gringos com pensão completa e as mesas interiores para hambúrgueres, cachorros e pregos em prato, bitoques se vos for mais conveniente que estejamos a Sul. Da entrada até este exato local, o Restaurante está nas costas de toda a Vida. Escondido pelos seus vidros, mas omnipresente no quotidiano de todos.

Digamos que vimos subindo em intensidade e poderíamos culminar aqui, em Bar. Os gritos e a azáfama de um bazar, sobre o fundo quaternário - tlim, zuishh, troc, zuishh - da registadora. Na sua simplicidade maquinal, é o Santo deste Altar. Ali, de frente para todos, ainda que seja as costas que lhe vejam, Senhora de todo o espaço, Dona de toda a atenção, Meca, Belém e Lumbini, ponto de confluência ecuménica de todos os homens. Como este que pinga sobre o balcão das imperiais, sejam finos se esta geografia for Norte, sem ponta de dinheiro que se veja, mas sorriso rasgado e cumprimento cúmplice ao pessoal encarregado, pois claro que passa cá a pagar ao final do dia, nem se fala mais nisso. E sai em passo semi-dançante, ginga tropicália, pelo meio das espreguiçadeiras, em gincana, copo de vidro - hã? como assim, de vidro? o plástico quando nasce não é para todos? - elevado, evitando os guarda-sóis baixados pela hora do dia. Um velho da Ilha dos Gelados foi capaz de jurar, a meio de uma partida, que já o tinha visto numa varanda do hotel e no balcão da cerveja, ao mesmo tempo, ubíquo. Nunca alguém se tinha lembrado de uma peta tão boa para desviar a atenção de tamanha derrota no belga, ainda que o velho, ele mesmo, nunca a tenha admitido. À patranha.

Com a vossa licença,

                                  (na maior honestidade, trata-se de uma figura de estilo. podeis bem não estar dispostos a conceder-me licença alguma que não fará diferença. no entanto, e talvez para tranquilidade do espírito apenas, sinto-me compelido a dizer-vos que seria mesmo justo que esperasse pelo vosso consentimento. assim em jeito de retribuição pelo tempo que dispensais a este meu relato. ou dinheiro. ainda melhor.)
         
                                               passaremos sobre a zona do DJ, três paredes de adobe mais caiadas do que o resto do lugar e um telhado de palha, e da sua aparelhagem infernal. Ou divina. Dependeu sempre do estado de Alma do rebanho. Avançamos direitinhos para a Esplanada, Zona 2.

Três mesas apenas, miraculosamente ocupadas em permanência pelos mesmos humanos. Todos os dias. Ao Domingo também. Sem nenhum resguardo do Sol, que não seja o protetor que abundantemente lambuza a careca de um; o chapéu de palha com fita amarela Licor Beirão, afundado até às orelhas do senhor Monteiro da Silva; o escaldão primeiro grau da família de bifes que anexou duas espreguiçadeiras à sua mesa e três cadeiras; e os óculos de Sol, para ninguém ver se ela chorar, da paquidérmica Dama das Tatuagens. Os seus rebentos palmilham todo o Clube sem trela. O que não admira, pois que ao primeiro Cábron!, berrado no intervalo entre um e outro telefonema, não só acorrem ambos os petizes, mas muitos incautos transeuntes de ocasião. Todos despachados com um sonoro Que pedo te pasó, güey? 

Hoje em dia é muito vulgar que se romantizem acontecimentos. Partindo de factos factuais, lá escrevem historietas a seu propósito, dos factos, acrescentando pontos e alterando percursos, dando brilho a momentos profundamente aborrecidos, só para que fiquem bem na fotografia as suas personagens, baseadas em indivíduos que, tendo existido, podiam muito bem ter tido uma vidinha corriqueira, não fosse terem dado de caras com a queda de uma maçã ou coisa que o valha. Afastamo-nos desde já, e ainda nem ao adro chegamos, dessa corrente novelista fácil. Também nós gostaríamos de ir vendo e andando ao sabor da imaginação, tapando os buracos que nos aparecerem com pedaços de reboco inventados.

Nós não! Atemo-nos ao mero relato de como as coisas estão. Como se passaram e se passarão. Ainda que não seja bem certo o pretérito, ou o indicativo, que estamos a testemunhar. Que é condicional e imperativo, isso está claro.

Isto esclarecido, é sobeja a prova documental a propósito do sucesso de haver uma relação de direta proporcionalidade entre determinado toque do telefone da mãe baleia e a taxa de mortalidade na freguesia de Cacia, concelho e distrito de Aveiro, a Veneza portuguesa. Tirando que não cheira assim tão mal e não há noticia de que os ovos moles em Itália sejam grande espingarda. Já em Aveiro, é de a gente lamber as beiças. Os ovos moles e outras iguarias, mas agora não estamos a traçar um roteiro gastronómico, o que é pena. Menos para as enguias, já se vê.

Não que alguma vez tenha havido, ou venha a haver, alminha que se dispusesse a gastar um coche do seu pouco tempo sobre esta Terra do Senhor, qualquer que Ele seja, a estudar a fundo este acontecimento. Digamos que nem Cacia, que é, à sua maneira, também ela Veneza, desperta assim tanto interesse enquanto objeto de estudo, nem o número de mortes por lá foi, é ou será, assim queiram os Senhores, suficientemente estapafúrdio para que chame a atenção. Agora que de cada vez que o telefone da Dama se punha teténéunéunéu friday night and i need a fight, alguém quinava, disso não resta qualquer dúvida.

Se tivéssemos a sorte de estar a inventar tudo isto, agora mesmo viria o DJ à sua aparelhagem e por toda a piscina do Clube Leve Sopro de Vento do Mar estremeceriam os esqueletos, ao som de arranque de uma motorizada de alta cilindrada, ao mesmo tempo que as moças se humedeceriam por baixo, os moços esverdeariam de inveja, enquanto colocavam apressadamente perucas loiras de cabelo ripado e vestiam Speedos que os esterilizariam para sempre. Parecendo que não, ter os tomates apertados nunca fez bem a ninguém. Note-se com curiosidade que aparenta termos completado um circulo, de tomates a tomates, o que será talvez indício de que devemos deixar por ora este esquisito desacontecimento. Mais tarde poderá alguém chamar-lhe coincidência, o que estará errado, já sabemos.

Contemplemos antes a entrada majestosa da Dama, um mastodonte resoluto, percorrendo os seus passos lentos, o chão estremecendo, a cadeira vazia, aguardando por entre a falta de espaço que se vive em todo o CLSVO, menos ali, na clareira com cheiro a burrito e sabor a tacos. Atrás, o alvoroço das crianças, arrastando os seus unicórnio e golfinho de borracha flutuante. E de guarda-costas estamos conversados.

Nas costas da Esplanada, Zona 2, o muro branco que oculta o território não cartografado da Terra Reservado a Pessoal Autorizado. Que não somos, por muito transtorno que vos possa causar.

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