domingo, 6 de novembro de 2016

A verdadeira história da Morte de Figueiredo


Para um propósito meramente informativo, "Morreu Figueiredo" seria suficiente. Encerrava-se o assunto em meras duas palavras, um verbo afeta o substantivo, dá-se duas sacudidelas de mãos e está feito. Não é como se houvesse muito mais para informar, acerca da morte de Figueiredo ou de outra qualquer de qualquer outro apelido. Morreu, já está.


Muito ao jeito daquele senhor, supremo somítico, que, posto perante o pagamento mínimo de cinco palavras para um anuncio na secção de necrologia, optou por "Morreu Maria. Vendo Opel Corsa". Fechada uma vida, é enorme a quantidade de coisas que passam a ser inúteis. A começar por um Opel Corsa a mais.



Acontece que, não por escolha, vim a ter acesso a dados relevantes quanto ao acaso em apreço. São detalhes de uma ordem de estranheza tal, fenómenos tão improváveis, que não me resta outra alternativa que não contar. Partilhar um laivo de loucura, poderá ser?


...


A Morte tinha claro que estava atrasada. Sabia também que os atrasos fazem parte da sua rotina, ninguém lhos aponta, ninguém lhos cobra. Compensa-os com uns quantos adiantamentos. Mas agora, via-se perante o esgotar de toda a tolerância. Era mais que tempo, Figueiredo devia morrer.


Foi por isso que, mal pôs os olhos no relógio, junto à máquina de café, alertada pelo primeiro e único "sabes, P.inho, a mana não dura muito mais" - nas raras lágrimas que não soube evitar em público - saiu disparada através das paredes, em vez de tomar, como era seu hábito, os passos tranquilos do corredor. 


Gostava de percorrer devagar aquele corredor, espreitando distraída para dentro das salas, imaginando as auxiliares a vestirem as suas batas, ouvindo o tom da tosse dos pacientes internados, sentido-lhes o pulso a enfraquecer, anotando, de vez em quando, números de cama. 

Uma enfermeira atrasada - como a Morte de Figueiredo - sentiu um estranho arrepio na nuca ao deixar cair a bata sobre os seios nus; uma senhora acamada jurou ouvir a sua falecida mãe chamá-la para comer a sopa; instrumentos de medição avariaram inexplicavelmente; duas janelas bateram e a porta de emergência, ao fundo do corredor, abriu-se de par em par. Parecia que andava o Diabo à solta.


A Morte cruzou tão rapidamente a sala sete que nem o senhor da cama 25 morreu. Oh, paciência, há tempo para ele. Quando atravessou essa última parede, já afagando o alivio da missão quase cumprida, deu, uma vez mais, de caras com uma roda de gente. E as suas gargalhadas. As suas piadas negras e parvas. O cuidado com que alguém remexia a pasta que era suposto ser refeição. Enfim, a forma como, em torno de um leito de Morte, os discípulos bebiam ainda a água do Senhor. Da Senhora.


Já outras vezes a Morte se deixara atrasar por estas coisas. Mais fascinada que condoída. Hoje, teria que ser diferente, estilhaçados os prazos, pulverizadas todas as médias de sobrevida. Ah não, hoje fecharia o seu coração negro e seguiria em frente. Com as mãos a taparem os ouvidos, se fosse preciso. Só que se esqueceu dos olhos. 


Foi assim, determinada mas impreparada, que a Morte deu de olhar no olhar de Figueiredo. E especou. Ali ficou, meio gelada, meio paralisada. Presa de movimentos, pronto. 


A Morte passou a viver na parede da sala de Figueiredo. Quase paralela ao relógio branco, à esquerda do campo de visão de quem moresse na cama 28.

Quando todos saíam, as duas conversavam. Negociavam timmings, mediam cansaços, trocavam receitas, contavam coscuvilhices do pessoal. Espantosamente, a Morte aprendeu a rir e a gargalhar. E jurava que nem em dias de Vida se tinha sentido tão bem. Até que uma dor as vinha lembrar, retirá-las do seu descansado desfiar de minutos. E de memórias.


Todos os dias Figueiredo se entregava um pouco mais à sua Morte. Todos os dias lhe pedia mais outro, apenas. A Morte, lá do seu lugar na parede, nunca lhe disse que não. Até que voltou a doer muito. Demais. E Figueiredo estava demasiado cansada para imaginar, sequer, que lhe pudesse voltar a doer assim.


Enfermeiros puseram gente na rua, auxiliares trocaram-lhe a bata ensopada em suor e dor. Encontraram, sabe-se lá como - ou porquê - um intervalo de calma naquela guinada atroz. Deixaram Figueiredo para dormir. Ela olhou para a parede à procura de conforto e companhia. Disse para a Morte:


- Achas que eles entendem? Achas que eles já entenderam? Se me deixar descansar - tão exausta que estou - eles vão perceber, em tempo, que cada um é um pedaço de mim? Que juntos me revivem e, cada um por si, serão o pedaço de mim que me deixaram entregar-lhes? Poderei acreditar que se gostam para lá do Amor que me têm? Queria ter feito mais, sempre.


A Morte abriu o esgar que lhe faz as vezes de sorriso. Deu um passo em frente, por fim, e estendeu-lhe a mão. Disse:


- Não vai doer mais.


Não doeu.



...  


Figueiredo e a Morte balançavam os pés descalços, do topo do Penedo do Guincho, enquanto a matilha se despedia da sua Alfa. São vãs as despedidas de quem nunca parte. A Morte levou Figueiredo, mas nenhum destes, na areia, se convenceu a deixá-la morrer.

No pequeno rochedo, rodeado já de água, sobra um dos cinco. Olha para a praia da mesma perspetiva exata de Figueiredo. Entre aqueles, em roda, com as suas fraquezas e defeitos, cheios de um Amor que parece sem destinatário, mas perto, a distâncias que nunca foram tão curtas, está quem a Morte levou. 


Ele esfrega primeiro os olhos, certo de que as noites por dormir e a força para não chorar o fazem ver coisas. Depois procura a onda que o deixará sair da pequena rocha. Olha de novo. Sim, de todos eles, da sua soma, emerge de novo Figueiredo. 


Upa, ai está ela, a aberta seca para regressar à praia. Ele pensa:

- És mesmo parva, tinha que ser eu, pois era?


- Era um abraço, estúpido. - Responde-lhe no seu tom eternamente doce.



...


A Morte e Figueiredo balançam os pés descalços do topo do Penedo do Guincho, enquanto pescadores estranham as cinco rosas brancas plantadas na areia. 


Voltarão, juntas ou à vez, a este lugar, sempre que lhes der na gana. E haverá flores na areia.



...


A Morte viveu nos corredores do Hospital Pulido Valente, em Lisboa, por mais de um ano. Passeou ao nosso lado e tomou café na nossa mesa. A Morte não é rancorosa, nem vingativa, mas é velha e sabe coisas. 


A Morte cheira a cancro e uma pessoa habitua-se. Aprendeu a gostar de sambas simples e alegres do Martinho da Vila e a despejar demasiados pacotes de açucar nos abatanados. A Morte gosta de sopa de peixe e de caril de camarão.

A Morte assistiu às consultas enfadadas e à resignação do Dr. Direndra. Aquele que era o General designado do nosso exército, estava derrotado à partida. Tão farto de ter que fazer de conta que...nunca fez.


A Morte sorriu com a bem-disposta esperança do Dr. Pedro Barradas e o seu bigode farfalhudo. Anotou no seu caderninho o carinho do seu tom e a sua capacidade para...fazer de conta. Com convicção.

Da mesma forma que recorda as explicações simples e cheias de luz - e os e-mails terroristas - do Dr. Nuno Gil, na Fundação Champalimaud, em Lisboa. Até à ausência de resposta, por extravio ou por a pergunta já não valer o esforço de responder.

A Morte conhece de cor os números de segurança social dos elementos de determinada equipa multidisciplinar, que permitiu que uma paciente vivesse um mês com um braço partido, sem nunca ter procurado a origem a da dor. De igual modo, regozijou-se com todos eles pelos resultados do primeiro ataque, frontal e decidido. Ainda o General era outro.

A Morte ficou tão chocada perante a frieza da Dra. Vanda, que não a matou. Nunca antes tinha visto alguém capaz de olhar um filho nos olhos e dizer-lhe:

- Mas oiça, ninguém vai salvar a vida à sua mãe, pois não? Vai dai, desinfete lá do caminho que eu tenho mais o que fazer. - Se não foram estas as palavras, foi isto que os nossos corações ouviram. O da Morte também.

A Morte deu um chuto na Dra. Ana Sofia, quando esta teve o desplante de dizer, em passo de corrida, a um irmão:

- Só estou aqui para urgências. Não me vai dizer que a sua irmã é uma urgência, pois não? O Dr. Pedro não tem falado convosco? Sabe em que estado está, não sabe? Agora desinfete lá do caminho que eu tenho mais o que fazer. - Quem não sabia do estado era a própria Ana Sofia, do fundo dos seus óculos fora de moda.

Mas também registou a sua humildade ao desculpar-se, perante uma sala de gente capaz de a fazer em picadinho.

A Morte orgulhou-se da competência e disponibilidade do Enfermeiro Ricardo. E de um outro, alto e magrinho, cujo nome lhe escapou. Assim como não esquecerá a arrogância de outro ainda, cuja identidade sexual é, no mínimo, dúbia.

A Morte enterneceu-se nos olhos doces e bonitos da Enfermeira Ana, quando dizia a uma roda de gente desfeita:

- Fiz o que gostaria que fizessem por mim. - É tudo o que vos pedimos, caros senhores.

A Morte não discute a competência, nem as condições de trabalho. A Morte compreende tudo e não esquece nada.

A Morte é Arya Stark. E todos nós somos a sua lista.


...


Morreu Figueiredo. We've all been victims of a crime.


...

Com uma vénia a Vinicius de Moraes - outro imortal - e à Última viagem de Jayme Ovalle.

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