terça-feira, 7 de outubro de 2014

O verdadeiro Mourinho e as mangas



Deixou cair a mochila no chão e trepou para o seu lugar cativo ao balcão.

- Então rapaz, foram boas as aulas?

- Sim. Tive teste de História. Não gosto lá muito de História. É coisas velhas... - Ia desatar a explicar o imenso disparate daquela afirmação, mas não me deixou. - Silva, viste? Empurraram o Mourinho! Deu na televisão, grande empurrão!

Por um momento, ponderei se aquela familiaridade do tu em vez do Sô não seria falta de respeito. Decidi que não, que era apenas pertença. És dos meus e trato-te como tal, como o avô ou a mãe, salvas as devidas distâncias. Nesse caso, parecia bem partilhar um segredo.

- Sabes puto, esse não é mesmo o Mourinho.

- Hã?!

- Eu conheci o verdadeiro Mourinho. - Pousei os cotovelos no balcão e ficámos assim, cara a cara, como quem conspira. 

- A sério? Conheces o Mourinho? Não pode ser! - Mas já era tarde para cepticismos. A fagulha da curiosidade já tinha acendido a fogueira do "mesmo que seja mentira deve ser super giro".

- Mas é que é mesmo. Não esse que anda por aí, impostor, mas o verdadeiro, o Mourinho a sério. Há muitos anos atrás, morávamos na mesma rua. E jogávamos à bola juntos e tudo. Inseparáveis, eu e o Mourinho. Podes apostar, puto. 
Nunca me vou esquecer dos grandes derbys: Parte de Cima da Rua contra Parte de Baixo da Rua. Eu era de cima, o Mourinho de baixo.

- Jogaste contra o Mourinho? E ganhaste, Silva? - Meio gozo, meio curioso. No ponto, portanto.

- Não miúdo, não joguei contra ele. Eu conto-te:

O tipo mandava, pois claro!, na equipa de Baixo. Acontece que, tirando ele próprio, eles eram mais novos, mais pequenos e mais fracotes. Em compensação, os de Cima eram quase todos uns Sonkaya. Autênticos perna de pau, mas latagões e abrutalhados. Tirando eu, que nem era pequeno, nem era matulão como os outros. E como em terra de cegos quem tem olho é Rei, também não era considerado nenhum perna de pau.
Ora, o esperto do Mourinho viu logo que o melhor era passar-me para a equipa dele e deixar os Sonkayas entregues à força bruta.

- O Mourinho contratou-te??!! A sério??!!

- Isso mesmo. Também não era difícil, afinal éramos os melhores amigos.

- Mas tu moravas do outro lado, não era? Podias jogar pelo Mourinho?

- Em principio não. Mas o gajo pagou-me e os outros tiveram que aceitar.

- Pagou-te muito dinheiro Silva?

- Dinheiro nenhum! Pagou-me em mangas. Uma manga, um jogo pela equipa dele.

- Mangas? Só?

- Puto, naquele tempo as mangas não vinham de avião! Deviam vir a pé, lá da América do Sul ou de África. Eram caras e não se arranjavam assim à balda. Lá em casa não se passava fome, mas também não era comum comermos mangas. Só que o Mourinho era patrocinado por uma frutaria espetacular e então conseguia...

- Uau! E esse era assim manhoso como o de agora? 

- Claro! O verdadeiro Mourinho é que ensinou todos os Mourinhos a serem Mourinhos, entendes? 

Topa só, a nossa estratégia de jogo era marcar primeiro. Quando marcávamos, desatava tudo a correr para dentro da baliza dos grandalhões e lá ficávamos que tempos a comemorar. E eles muito irritados. Quanto mais se irritavam, pior jogavam, mais depressa perdiam.

Outra: nesses tempos, ninguém se lembrava de levar água ou comida para os jogos. Ninguém, a não ser o Mourinho. Ele levava. E ao intervalo distribuía. Mas só para nós, os da equipa. Os outros ficavam a ver-nos comer grandes fatias de bolo e a beber água. E irritavam-se ainda mais e jogavam ainda pior e acertavam-nos cada vez com mais força. 

Normalmente ganhávamos. Mas vi o Mourinho bater no seu próprio guarda-redes, por ter dado um frango e se ter rido por cima. E olha que a bola era dele!

- Que grande peta Silva. - E fez um riso não muito convicto. A dúvida roía-lhe os miolos subdesenvolvidos dos 10 anos (11, Silva! Tenho 11!).

- Ena, ao tempo que não ouvia essa palavra: peta. Tu é que sabes miúdo, acreditas se quiseres.

- Sim,sim. Mas que foi um grande empurrão, lá isso foi. E ele nada, ficou-se. - Abanou a cabeça desiludido.

- Escreve aí puto, ao verdadeiro Mourinho, nenhum engomadinho dava um empurrão e se ficava a rir. - Ponto final.

Passou um bocado calado, eu aproveitei para servir finos à mesa dos adolescentes, sem me conseguir decidir: rio-me por lhe estar a vender isto ou choro de saudades de o ter vivido? Regressei para avaliar o meu estrago.

- Oh Silva, isso deve ter sido mesmo há muito tempo. Nem mangas havia! Estava a pensar, és assim tão velho, mas não pareces. - Fixou-me os olhos nas ventas. - Oh Silva, tu conheceste algum Rei?

2 comentários:

  1. Eu tb não sei... rio-me por relembrar... ou choro de saudades? :)
    Um beijão amigão.

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    1. Choramos a rir, fuck it! Temos que jantar um dia destes Mourinho ;)

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