segunda-feira, 8 de junho de 2015

Enjoy the silence.



- Que é isso, miúdo? - É certo que sei que é uma espécie de jarrão branco, com uma tampa, decorado com o que parecem ser flores azuis e uma espécie de pássaros. A pergunta é mais o que raio está o puto a fazer com isto aqui.

- É um jarrão, Silva. Quase, quase igual... Acho que nem se nota a diferença. - Responde enquanto analisa bem de perto a peça. Cheira-me a esturro.

- Ora, isso vejo eu, obrigadinho. Mas porque recarga de água andas com isso para trás e para a frente? A mãe não sabe disso, pois não?

- Claro que não! - Diz ele. E aperta o seu precioso pedaço de cerâmica contra o peito. - E não vai saber, combinado?

- Xiii, temos história. Conta lá isso...

- Oh Silva, se visses ontem... A bola vinha redondinha. Foi cá um tiraço à entrada da sala, tau! Sem deixar tocar no chão, direitinha ao ângulo da porta da varanda. Lindo! - Os olhos brilham, suspendendo a preocupação por momentos.

- Ouch! Pumbas, direitinha mas é ao jarrão chinês made in Caldas. - Sinto a palma da minha mão acertar-me na testa.

- Não pá. Isso foi o ricochete no reposteiro. Merecia ter entrado, mas esbarrou em cheio na barra...

- Na trave do reposteiro...

- Pois, mesmo na quina. E catrapumbas, ressaltou para o vaso que a avó deu... - Volta-lhe a sombra de receio.

- E ninguém deu por ela ainda?

- Não! - Alegra-se. - Apanhei os caquinhos todos. A mãe quando chegou vinha ao telefone. Devia estar a discutir com o Sonkaya da vez. Depois apareceram os avós e ela ainda estava ao telefone. A avó abanou a cabeça e disse "ai minha querida filha" e o avô disse mais alto, por causa do aparelho dos surdos que ele usa, sabes Silva?, "não fui à bola com aquele tipo. O outro, o turco, ao menos era simpático". E eu estava à espera para contar do jarrão. Mas aí a mãe desligou e disse ao avô que ele não tinha nada que fazer comentários. A avó suspirou que era melhor tratar de fazer qualquer coisa para o jantar, a mãe ficou logo cheia de dores de cabeça e o avô pegou em mim e levou-me para o treino.

- Moita carrasco sobre a jogatana dentro de casa. Muito lindo isso, meu menino.

- Oh Silva, não tive oportunidade. Quando voltei, pensei que ia ser do bom e do bonito. Mas a avó já tinha os pratos prontos. A mãe comeu pouco e disse que a chefe dela devia era casar com o novo Sonkaya, que estavam bem um para o outro. A avó repetiu "ai minha querida filha", o avô abanou a cabeça e eu comi tudo até ao fim, para não repararem em mim. A mãe deu-me um beijo porque ia descansar e que amanhã, quer dizer hoje, estás a perceber Silva?, íamos os dois ao cinema. A avó colou na novela, o avô já estava a adormecer no sofá...

- Uma sorte hein?

- Pois, acho que sim. Andava tudo aos gritos e às turras uns com os outros e nem deram por mim. Então eu pensei que hoje podia era passar na loja do Senhor Ibrahim e ver se ele tinha um igual. E tinha, Silva. Quase igual. - Admirou a coisa abraçado a ela, com um sorriso de alívio. - Acho que passa. 

- Não sei se posso compactuar com essa mentirinha, puto. - Cresço para a minha idade.

- Vá lá Silva! Gastei quase todas as moedas do meu mealheiro. Que mal tem? Fica lá o vaso, ou jarro, ou lá o que é isto, à mesma. 

- Não é lá muito honesto, pois não?

Ele pensa. Levanta a tampa e volta a pô-la no sítio. Encosta a cabeça ao jarrão. Olha-me:

- Oh Silva, estavam todos a falar ao mesmo tempo, sobre as coisas deles e os problemas e quem era bonzinho e quem era mau como às cobras. Achas que devia ter interrompido e chamado a atenção para mim? Assim eles trataram das chatices deles, eu tratei da minha. A coisa fica lá no lugar onde estava a outra, a avó não fica triste, a mãe não se arrelia e ainda vou ao cinema! Os Vingadores, espero que seja para ver os Vingadores...

Calo-me. Passo o pano no balcão, só pelo hábito. Penso na Scabia a sussurrar enjoy the silence, recito de cor take the time just to listen/ when the voices screaming are much too loud, penso que aquela criança não é minha e, por isso, posso ser sincero, já que não me pesa o fardo de ter que a educar. Ou então isto é educá-la, não sei. Digo:

- Fica entre nós puto. Quando os adversários se engalfinham uns com os outros, é inteligente estar caladinho e tratar da nossa vidinha...

...

Faz uma festa na cabeça do cachopo, estende-me um aperto de mão firme, sorridente e suado, dá uma palmada no balcão, enquanto se senta e metralha palavras, sem pausas para diferenciar assuntos:

- Venha de lá um 3 Marias estupidamente gelado que caloraça Que é isso que aí tens rapazola É engraçado a minha velhota havia de gostar de um desses Oh Silva, então e o Jesus uma confusão aquilo hein?

- Não faço ideia, amigo. 

- Você não faz ideia? Era a primeira vez! Desembuche praí que eu gosto de o ouvir. Que me diz?

- Nada. Calo-me e oiço. Shhhh...

4 comentários:


  1. Acho que quem já foi chavalo, pelo menos uma vez na vida, experienciou um desses stresses de um "quase-golão" que acabou mal. eu não tive a sorte desse puto da tua estória e, para lá do jantar (que, recordo-me muito bem, foi peixe) ainda afiambrei três lamparinas para o caminho (curto, da sala para a cozinha)

    e mais não escrevo, para não estragar o que tão bem contaste à saciedade :)

    abr@ço forte
    Miguel Lima | Tomo III

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    1. Dupla penalização! Lamparinas e peixinho. Deviam rever essas regras :) Ai ca bem dadas... ;)
      Abraço.

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  2. como eu estimo esta tasca!
    o balcão sempre higienizado e as bebidas bem servidas!
    e a bifana ? uma delícia!...

    ganda silva... (ai, ke já tou a falar como n'Amadora...)

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    1. A freguesia faz a casa. Ca clientela de truz que aqui se junta! Obrigado Reine.

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