Para se atingir o estado zen, tem que se ter método. Não é uma mera decisão da mente, é todo um trabalho continuado. Há passos imprescindíveis.
#1 Manter a rotina
A hora não é determinante, o local pode variar, mas apenas ligeiramente. O importante é manter o hábito, não se desviar da rotina matinal, sob pena de todo o dia vir a parecer um dia de outro individuo qualquer, que não o próprio. Já se sabe que viver os dias dos outros não é boa ideia.
Com o inconsciente a coordenar todas as operações - pois que estes pensamentos não se coadunam com o automatismo da Vida - desliza a longa e estranha gabardina por entre as mesas do café. A mesa é uma das duas de sempre. Não precisa de pedir café, nem o copo de água. Só tem que dizer que tipo de pão lhe devem torrar hoje.
#2 Estabelecer prioridades
Não que o pão ou o café sejam assim tão importantes. Cumprem a sua missão, está claro, mas não seriam decisivos. O que os olhos procuram é o jornal. Aqui está este homem de aspeto um tanto estranho, com a sua gabardina um tanto estranha - embora menos, nestes dias mais frios - a quem servem sem dizer palavra, enquanto roda a cabeça à cata do SEU jornal.
Oh sim, a prioridade é ler o jornal. O pequeno-almoço é por conseguinte. E mesmo sabendo que não é verdadeiramente seu, experimenta uma sensação de roubo, ao notar que alguém está a ler o jornal que procurava. Há tempo, tranquilo. Até porque o senhor já parece ir a mais de meio.
Ainda assim, não simpatiza particularmente com o homem. Desde sempre que embirrou um pouco com ele e aquele ar avermelhado, de quem passa a vida com os copos, e o sotaque carregado que o faz soar sempre boçal.
#3 Aceitar pequenas derrotas
A última vez que olhou, não há mais de dois segundos, foi quando chegou a torrada, já o primeiro café tinha ido. Esta é que era a altura exata para ler as gordas da primeira página. Por sorte, o burgesso acaba de virar para a última.
Uma dentada, uma olhadela, outra dentada, outro espianço. Apenas para perceber que o tipo voltara ao inicio. Mas como assim? Vai lê-lo outra vez do principio? Não faz sentido, mas está a acontecer diante de todos. Mantendo a calma e a compostura, percebe-se facilmente que a segunda leitura do mesmo jornal não pode ser tão demorada quanto a primeira. A novidade está dada, a surpresa estragada, tudo o que sobra é o detalhe. Quanta paciência há, hoje em dia, para o detalhe? Nenhuma.
A gabardina faz-lhe comichão. Fez sempre. A torrada despachou-se. Alguém vai reparar e trazer o segundo café. Sem uma palavra.
#4 Analisar e concluir
Quando ouve:
- Uôi, olhóPalhares. Estábábêr que numaparecias. Pega lá o jornal, pá.
Percebe que aquele segundo café não será consequência do último terço, meticuloso, do SEU jornal. O ladrão tem comparsas. O abutre tem um bando que vem também bicar a carcaça esfrangalhada. Por isso o compasso de espera, a segunda volta. Afinal, nada mais que um rapto, um quase assassinato, dada a maneira sem jeito de virar as páginas. A gordura a escorrer das margens, a mesa cheia de dedadas negras de tinta. A mulher ao lado, resignada. Amorfa da pancada que levará e do sexo de que já se esqueceu.
E o criminoso ri-se, na sua impotência de pila mole, para o Palhares. E passa-lhe a vitima: Toma, abusa-a agora tu.
Pode ser que não seja um crime de monta para a Humanidade. Mas quem define isso? Por norma, cada um por si. Já vimos bem - lá atrás, no inicio da longa historia - em que estado vai a estrutura que é suposto decidir por nós. Agregada a informação, passados a pente fino os antecedentes, estamos postos perante uma atrocidade. Praticamente, vá.
A gabardina grita-lhe na pele, apesar de toda a roupa entre uma e outra.
Nesta fase, deve o sujeito atingir o estado zen que lhe permitirá vislumbrar o caminho. Saber qual o problema e como contribuir para a sua solução. A bem de si, primeiro, e de todos.
#5 Resolver
O dinheiro fica em trocos certos sobre o balcão. Os passos de regresso à viatura são lentos, a gabardina a afagar as costas das cadeiras no seu movimento esvoaçante. Abre a porta do estabelecimento comercial quase a acariciar o puxador. Completamente. Com a cabeça diz "depois de si, caro senhor, faça o favor", ao assassino, violador. Dá-lhe um sorriso de paz, que o outro retribui com um esgar de dentes amarelos e mau hálito. Está Sol. Está frio.
As abas da gabardina voam para trás das costas, enleadas na suave e gélida brisa. A coronha cola-se-lhe à mão aberta, enquanto os canos serrados lhe dão os bons-dias. O outro mete a chave na ignição e roda-a, antes mesmo de fechar o vidro.
E nem quando os chumbos lhe estilhaçam o crânio na sua trajetória em forma de cone, o anormal entende que até as coisas mais simples, as atitudes mais insignificantes da alarvice, podem perturbar o frágil equilíbrio Cósmico dos nossos tempos.
Vai ser preciso um esfregão de palha-de-aço, para tirar tanto miolo daquele tablier.
...
Soundtrack to murder: A deceit of the eye...
Estranharão os que já por cá passaram hoje, a existência de dois novos posts, que mais não são do a divisão do anterior "Apontamentos práticos para uma atitude zen". Acontece que, desta vez, ao ler o texto (estas horas passadas), fiquei com a sensação de que vos estava a maçar por nada. Isto é, havia uma clara divisão de temas e até de abordagem. Deste modo, não me fazia muito sentido ter um post único. Ainda assim, dado o fio condutor, diria que são dois ramos da mesma árvore, pelo que fazem sentido seguidos. Mas talvez não juntos. Se alguém tiver alguma coisa contra, reclame. Eu kékásaber...
ResponderEliminarSendo que faz mais sentido ler o primeiro, primeiro. Acho eu. Whatever...
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ResponderEliminareu tenho um assassino dentro de mim, quase todos os dias, tal e qual como o homem da gabardina, lá no café perto do local de trabalho. e é por isso que atinjo o estado zen quando resolvo gastar um euro mais em comprar o pasquim ao invés de um segundo café, enquanto os palhares desta vida, alarves, me "roubam" à descarada.
abr@ço forte
Miguel | Tomo III
Eu abomino a violência e acho que este fulano deve ser encarcerado o mais rapidamente possível. É um louco perigoso. Mas lá que há gente que não merece o ar que respira, de irritantes que são, lá isso... :))
EliminarGrande abraço, meu velho ;)