sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Apontamentos práticos para uma atitude zen



Para se atingir o estado zen, tem que se ter método. Não é uma mera decisão da mente, é todo um trabalho continuado. Há passos imprescindíveis.

#1 Manter a rotina

A hora não é determinante, o local pode variar, mas apenas ligeiramente. O importante é manter o hábito, não se desviar da rotina matinal, sob pena de todo o dia vir a parecer um dia de outro individuo qualquer, que não o próprio. Já se sabe que viver os dias dos outros não é boa ideia.

Com o inconsciente a coordenar todas as operações - pois que estes pensamentos não se coadunam com o automatismo da Vida - desliza a longa e estranha gabardina por entre as mesas do café. A mesa é uma das duas de sempre. Não precisa de pedir café, nem o copo de água. Só tem que dizer que tipo de pão lhe devem torrar hoje.

#2 Estabelecer prioridades

Não que o pão ou o café sejam assim tão importantes. Cumprem a sua missão, está claro, mas não seriam decisivos. O que os olhos procuram é o jornal. Aqui está este homem de aspeto um tanto estranho, com a sua gabardina um tanto estranha - embora menos, nestes dias mais frios - a quem servem sem dizer palavra, enquanto roda a cabeça à cata do SEU jornal. 

Oh sim, a prioridade é ler o jornal. O pequeno-almoço é por conseguinte. E mesmo sabendo que não é verdadeiramente seu, experimenta uma sensação de roubo, ao notar que alguém está a ler o jornal que procurava. Há tempo, tranquilo. Até porque o senhor já parece ir a mais de meio. 

Ainda assim, não simpatiza particularmente com o homem. Desde sempre que embirrou um pouco com ele e aquele ar avermelhado, de quem passa a vida com os copos, e o sotaque carregado que o faz soar sempre boçal. 

#3 Aceitar pequenas derrotas

A última vez que olhou, não há mais de dois segundos, foi quando chegou a torrada, já o primeiro café tinha ido. Esta é que era a altura exata para ler as gordas da primeira página. Por sorte, o burgesso acaba de virar para a última.

Uma dentada, uma olhadela, outra dentada, outro espianço. Apenas para perceber que o tipo voltara ao inicio. Mas como assim? Vai lê-lo outra vez do principio? Não faz sentido, mas está a acontecer diante de todos. Mantendo a calma e a compostura, percebe-se facilmente que a segunda leitura do mesmo jornal não pode ser tão demorada quanto a primeira. A novidade está dada, a surpresa estragada, tudo o que sobra é o detalhe. Quanta paciência há, hoje em dia, para o detalhe? Nenhuma.

A gabardina faz-lhe comichão. Fez sempre. A torrada despachou-se. Alguém vai reparar e trazer o segundo café. Sem uma palavra.

#4 Analisar e concluir

Quando ouve:

- Uôi, olhóPalhares. Estábábêr que numaparecias. Pega lá o jornal, pá.

Percebe que aquele segundo café não será consequência do último terço, meticuloso, do SEU jornal. O ladrão tem comparsas. O abutre tem um bando que vem também bicar a carcaça esfrangalhada. Por isso o compasso de espera, a segunda volta. Afinal, nada mais que um rapto, um quase assassinato, dada a maneira sem jeito de virar as páginas. A gordura a escorrer das margens, a mesa cheia de dedadas negras de tinta. A mulher ao lado, resignada. Amorfa da pancada que levará e do sexo de que já se esqueceu. 

E o criminoso ri-se, na sua impotência de pila mole, para o Palhares. E passa-lhe a vitima: Toma, abusa-a agora tu.

Pode ser que não seja um crime de monta para a Humanidade. Mas quem define isso? Por norma, cada um por si. Já vimos bem - lá atrás, no inicio da longa historia - em que estado vai a estrutura que é suposto decidir por nós. Agregada a informação, passados a pente fino os antecedentes, estamos postos perante uma atrocidade. Praticamente, vá.

A gabardina grita-lhe na pele, apesar de toda a roupa entre uma e outra. 

Nesta fase, deve o sujeito atingir o estado zen que lhe permitirá vislumbrar o caminho. Saber qual o problema e como contribuir para a sua solução. A bem de si, primeiro, e de todos.

#5 Resolver

O dinheiro fica em trocos certos sobre o balcão. Os passos de regresso à viatura são lentos, a gabardina a afagar as costas das cadeiras no seu movimento esvoaçante. Abre a porta do estabelecimento comercial quase a acariciar o puxador. Completamente. Com a cabeça diz "depois de si, caro senhor, faça o favor", ao assassino, violador. Dá-lhe um sorriso de paz, que o outro retribui com um esgar de dentes amarelos e mau hálito. Está Sol. Está frio.

As abas da gabardina voam para trás das costas, enleadas na suave e gélida brisa. A coronha cola-se-lhe à mão aberta, enquanto os canos serrados lhe dão os bons-dias. O outro mete a chave na ignição e roda-a, antes mesmo de fechar o vidro.

E nem quando os chumbos lhe estilhaçam o crânio na sua trajetória em forma de cone, o anormal entende que até as coisas mais simples, as atitudes mais insignificantes da alarvice, podem perturbar o frágil equilíbrio Cósmico dos nossos tempos.

Vai ser preciso um esfregão de palha-de-aço, para tirar tanto miolo daquele tablier.

...

Soundtrack to murder: A deceit of the eye... 

4 comentários:

  1. Estranharão os que já por cá passaram hoje, a existência de dois novos posts, que mais não são do a divisão do anterior "Apontamentos práticos para uma atitude zen". Acontece que, desta vez, ao ler o texto (estas horas passadas), fiquei com a sensação de que vos estava a maçar por nada. Isto é, havia uma clara divisão de temas e até de abordagem. Deste modo, não me fazia muito sentido ter um post único. Ainda assim, dado o fio condutor, diria que são dois ramos da mesma árvore, pelo que fazem sentido seguidos. Mas talvez não juntos. Se alguém tiver alguma coisa contra, reclame. Eu kékásaber...

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    1. Sendo que faz mais sentido ler o primeiro, primeiro. Acho eu. Whatever...

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  2. eu tenho um assassino dentro de mim, quase todos os dias, tal e qual como o homem da gabardina, lá no café perto do local de trabalho. e é por isso que atinjo o estado zen quando resolvo gastar um euro mais em comprar o pasquim ao invés de um segundo café, enquanto os palhares desta vida, alarves, me "roubam" à descarada.

    abr@ço forte
    Miguel | Tomo III

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    1. Eu abomino a violência e acho que este fulano deve ser encarcerado o mais rapidamente possível. É um louco perigoso. Mas lá que há gente que não merece o ar que respira, de irritantes que são, lá isso... :))
      Grande abraço, meu velho ;)

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