quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Finos traçados



Desde que me vi perante a abusiva - muito abusiva - interpretação da dialética Marxista, resumida na máxima "para acabar com os pobres, basta acabar com os ricos", que me dá urticária esta espécie de cambalhota do correto. Felizmente, em cada ciclo da vida, um gajo encontra os escapes certos para não dar cabo das sinapses com estas questões laterais. À época, e dada a inépcia para a obtenção de gajas, havia sempre uma mão que se envolvia nestas questões filosóficas e arrumava com as duvidas. Hoje, e dada a idade que já me permite ser um quarto de senil, basta escutar o meu amigo secreto dentro da minha cabeça. Está sempre a dizer-me: Como se não fizesses o mesmo, pfff. É bom moço, mas tem uma tendência para a honestidade que o torna irritante. 

- Poich claro. É por icho que eu digo xempre ao meu amigo xecreto: Ojamigoj xão para ajócajiõej. Nada como uma mão amiga, não acha Xilva?

- Vamos deixar isso entre nós e os nossos amigos imaginários, ok Berto?

- Ah, era imachinário! Penchei que era xecreto. Xó. - E come metade de meia tosta de frango com uma dentada apenas.

Acendam-se umas velas, respire-se fundo, vamos refletir ponderadamente acerca do assunto. Imaginem que estamos no topo de uma colina, que o Sol incide nos nossos rostos, sem estar demasiado quente, que há um chilrear manso em fundo. 

- Ou também pode xer numa caja de banho pública. Não é tão acheado, xá xe xabe...

- Berto!!

- Oh, ejtá bem, não digo maich nada. - Com a boca cheia. 

Uma conversa polida e civilizada, ainda que com os ocasionais tons mais ásperos - que ninguém tem sangue de barata - é sempre uma melhor opção. Quando não é verdadeiramente possível, pois que nos exaltemos e se soltem uns berros. O que não podemos perder de vista é a força do argumento. Ok, berre-se a nossa fundamentação, mas que ela seja clara e - sempre! - o motivo do nosso grito.

O que não faz sentido é esta instituição de "tem razão quem grita mais alto". Está errado, não devia ser assim. Se todos concordamos - sim? - que ninguém está certo só porque fala mais alto, porque aceitamos o postulado? Mais que deixar que aconteça, procuramos treinar-nos no método. Pensamos: Caraças, eu havia de ser mais como o Martins, da contabilidade. Com ele ninguém brinca, que levam logo uns berros. Com isto, os Martins da vida gritam cada vez mais alto e cada vez mais frequentemente. E levam a água ao seu moinho com cada vez maior eficácia. Até ao dia em que dão de caras com... um surdo.

Tantos anos que o Universo investiu na nossa evolução, para agora não percebermos que acabar com o berreiro não se faz por nos juntarmos a ele? Que resultado obteríamos se tornássemos evidente o sucesso da calma? Do silêncio.

- Ah, mas era preciso que houvesse sucesso, meu caro.

Tem razão, como quase sempre, o senhor Monteiro da Silva. Mas esquece, convenientemente, que a questão não é essa. Inverte, de novo. Não discuto se o contexto permite que o sucesso se obtenha por outra via. Digo que o contexto está errado. E que não há como modificá-lo sendo uma peça dele. Fazendo igual, perpetuaremos.

Parecendo que é uma grande chatice, é um assunto engraçado. Porque as inversões são bastas e variadas.

- Oh Xilva, chá que fala nicho, a Jubaida não apareche cá há muito tempo, não é? - Emborca meia caneca traçada, para empurrar o resto do pão saloio.

- É outro tipo de inversão, Berto. Não se canse.

Vejamos: 

O rico não paga o imposto porque é esperto, à custa de estudar.
Quem sou eu para o repreender? Vou é deixar de pagar;
Meto baixa cheio de saúde, para não ir trabalhar.
Afinal é com o dinheiro do meu imposto que me vão remunerar;
Quero menos horas no emprego e mais férias para gozar.
Não muda é o tempo que vou, de facto, laborar;

Podia ficar nisto o dia inteiro e a noite assim virar
Que são demasiados os exemplos que tenho para dar:

A mulher caladinha, à força de lhe berrar.
Os tomates cheios, que há coisas que não se pode obrigar;
O corrupto simpático em quem vamos votar.
Para não ser outro que para lá se vá governar;
O Presidente que deve estar morto, por não gritar.
O que, evidentemente, legítima o árbitro a errar.

- Beca, beca, beca, não paras de falar. Não tenjálmoços para cozinhar?

- Raisparta, olhájoras que já são. Perco-me em parvoíces...

...

Ontem foi um dia marcado. O terror que brotou dos nossos valores Ocidentais, uma vez invertidos, não tem perdão. Assim como nenhum terror merece condescendência ou encontra explicação. Nenhum.

O rebelde não é o que faz o que fazem os outros de forma a obter os seus resultados. O que inova a bem do que está certo é que fica mais perto da Utopia. Por ele é que vale a pena torcer.

- Ingénuo! Ou só hipócrita? Provavelmente, traçado.

...

Soundtrack to pints: Cerveza.


7 comentários:

  1. Se me pedissem para me definir numa única palavra, escolheria "relativista". De acordo, portanto. Face ao contexto, naturalmente.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pois claro. Sempre face ao contexto e à necessidade, ou não, de o mudar. Sendo relativo, portanto :)

      Eliminar
  2. Recomeça....
    Se puderes
    Sem angústia
    E sem pressa.
    E os passos que deres,
    Nesse caminho duro
    Do futuro
    Dá-os em liberdade.
    Enquanto não alcances
    Não descanses.
    De nenhum fruto queiras só metade.

    E, nunca saciado,
    Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
    Sempre a sonhar e vendo
    O logro da aventura.
    És homem, não te esqueças!
    Só é tua a loucura
    Onde, com lucidez, te reconheças...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito e muito obrigado pela Sísifa gorja. Porra, estou babado por lhe trazer Torga à cabeça. E por ter tal freguesia. Já lhe agradeci?

      Eliminar
  3. Ora essa, Silva. Não tem de agradecer, homem.
    Desde que o Porto ganhe e não se fique pela metade do campeonato

    ResponderEliminar
  4. ... Até ao dia em que dão de caras com... um surdo.
    ... Fazendo igual, perpetuaremos.

    Abraço

    ResponderEliminar