Somos um País pequenino. Em muitos aspetos, é verdade, mas era mesmo do tamanho que falava. Apesar disso, somos diversos, multiculturais, de traços fisionómicos diferenciados e alimentamos umas quantas rivalidades regionais. Como é apanágio dos vizinhos. E das famílias.
Acreditem que para quem vive em Lisboa, é mais ou menos por aqui que se traça o limite. Isso do centralismo, do Império falido, do favorecimento e do desequilíbrio, não chega à vida das pessoas comuns. Isto é, soa tudo a um bairrismo um tanto datado, normalmente associado ao futebol.
Duas coisas que me parecem importantes reter. A primeira, é que não é efetivamente por soberba ou estupidez que o habitante médio da Capital - os Lisboetas já são uma minoria destes - se está bem a lixar para o choradinho do centralismo. Não é missão dele preocupar-se muito com isso, de facto. E que os líderes, anos após anos, sejam escolhidos de entre...gente da terra, não é culpa sua. O segundo facto relevante, é o futebol. Não é por sermos umas bestas atrasadas, a acordarem de 50 anos de ignorância, que isto sucede. Quer dizer, é! Mas não pelas pessoas, senão pela ordem que permanece inalterada e convenientemente inalterável.
Isto é, se é um facto que futebol é Futebol, um dos efes, não é menos certo que as poucas vezes que o poder centralista e centralizador é colocado verdadeiramente em causa, ao Futebol se deve. Clube do Porto.
Apesar disso, tudo isto são circunstâncias e contextos, mais do que cultura. Em termos culturais, mantendo a diversidade já assinalada, constituímos um todo bastante sólido. Motivo pelo qual somos independentes, contra as odds. Na minha opinião, isso não significa que os indivíduos sejam muito semelhantes. O quadro de valores e de hábitos será, mas os contextos e as circunstâncias moldaram, ao longo da História - que não tem 50 ou 100 anos de centralismo, tem 762 - diferenças importantes nos modos de ser dos habitantes das diversas regiões. Nem melhores, nem piores, meramente diferentes.
Raros são os meus ancestrais nascidos em Portugal Metrópole - Portugueses eram tanto como os outros; vivi a ainda maior parte da minha existência Lusa em Lisboa - sendo Portista; e, por coração, acabei a Norte há já uns belos anos. Estou na posição perfeita para conseguir ilustrar o que digo com um exemplo prático.
E o que digo? Que dobrada e tripas parecem a mesma coisa, mas que se servem de maneira diferente e, sobretudo, se comem de forma diversa.
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A primeira vez que me disseram:
- Oh docinho, chega-me aí uma cruzeta. Depressa, que tenho que ir pôr o testo na sertã, a ver se salteio as vagens. Anda lá homem, dá corda às sapatilhas.
Eu pensei, pumbas, já está, enganaste-te na localização e vieste hospedar-te por engano em casa de uma família Mirandesa.
Agora já somos todos híbridos. Se já falo a mesma língua, com mais sotaque algumas vezes, também ninguém cá em casa tem dúvidas sobre o que é um cabide, uma tampa, uma frigideira ou um par de ténis. Já sobre o feijão-verde, a discussão não está encerrada. Acho que lhes soa bastante estúpido, mas relevam.
Já se vê que também chamei dobrada ás tripas. Ficou toda a gente a olhar para mim como se fosse atrasado mental. E tudo o que me vinha à cabeça era: Páááááá, só porque não tem cenouras? Lá me explicaram, bastante pacientemente, que não eram a mesma víscera e blablabla e que, espanto!, até é costume levarem cenouras. Abanei muito a cabeça e fiz muito ar de ignorante, perante a complacência de uns e o divertimento de outros, e continuei a pensar: Páááááá, ponham-lhe umas cenouras...
Hoje, pensaria: Pááááá, botem-lhe umas cenouras. Parecendo que não, é uma coisa totalmente outra. Porque hoje, sei que a grande diferença entre dobrada e tripas, diga a senhora minha sogra o que quiser, é a mesma que vai entre pôr e botar.
A primeira, serve-se em pratinhos, com o molho mais liquido e muitas cenouras. A gente gosta é do feijão, não estávamos à espera de encontrar propriamente dobrada. Deixa-me cá tirar este pedaço de chóriço para o meu lado, discretamente. Como a gamar o enchido? Tásparvo ókê? Se calhar não tô a pagar como tu, késvêr?! Estes lagartos, dass. Vamos lá é aviar isto com uma carcaça e duas imperiais. Podes ir já tirando a minha bica, oh tasqueiro, que tenho que ir à minha vida.
A segunda, em travessas generosas, com as carnes a fazerem-nos ir à pesca dos feijões no molho, mais espesso. Passem o arroz ao Preto Mouro, que ele é muito arrozeiro. E a sêmea, que o pobre homem não tem pão. Olhe aqui a saladinha, se lhe apetece. Antes de rebentar, deixa-me anotar as horas do meu óbito por motivos de ser um alarve. Xinapá, quase cinco da tarde, credo. Pois claro que se abre maijuma.
Ao mesmo tempo que gosto cada vez mais de caracóis e de caracoletas, apesar do nojo com que a família me vê a despachar os bichos à tonelada; enquanto a cidade, Lisboa, me vai parecendo cada vez mais bonita; à medida que vou sentido até uma espécie de prazer e orgulho em ir mostrando a Capital, os sítios a que os turistas ainda não chegam com frequência ou aqueles sempre cheios de gente e sempre tão agradáveis; vão-me sabendo mais diferentes dobrada e tripas. Como se sentisse uma raiz a agarrar-se à terra.
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A propósito de dobradinha, parece que ontem serviram uma dose no Estádio de Oeiras que, estando na zona da Grande Lisboa, é, naturalmente, Nacional. Lá estavam na bancada o nosso Presidente, adepto do Braga, criado na Capital; o nosso Primeiro, adepto do 5LB, antigo Presidente da Câmara de Lisboa; e muitas outras distintas figuras do Estado e do Desporto, noventa e alguns por cento das quais partilham aquele traço comum: Lisboa. A maior parte deles, eleitos pelo Povo. Não me estou portanto a queixar, apenas a constatar.
Podiam ser tripas à moda do Porto? Não, não podiam. Primeiro, convencionou-se chamar dobradinha à coisa; depois, mesmo que nos danássemos para a convenção, tinha demasiada cenoura. Um gostinho diferente, percebem?
Vejamos, os da Capital chegaram àquele jogo decisivo graças a este golo. Relativamente cedo, tiveram que substituir o seu médio-defensivo que se magoou. Entrou este moço.
Poderia ter entrado outro, caso o rapaz dos socos não estivesse disponível, certo? Pois claro que sim, certo. Mas não seria bem a mesma coisa. Como dobradinha e tripas a sério.
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Soundtrack to tripas: Binhu!