Amaldiçoas-me nas horas mortas. Quando te enrolas em volta das memórias e perscrutas o horizonte da esperança, quando choras longe de todos - que não de mim - e o teu soluço me desperta. Lentamente, como a dor, sentes? Ah, sim, eu sei que te esforças por ignorar esse fio, esse frio, de navalha quando te começa a cortar a entranha. Uma qualquer. Por vezes forço uma guinada, para que saibas que estou aqui, não te abandonei. Eu sou o Eterno. O.
A maior parte do tempo doo-te, apenas muito. Sem variações, por debaixo do opiáceo ainda mais forte, eu doo-te. Tu sabes que te dói, apesar da cada vez menos frequente e mais curta nuvem de fraco descanso. Porque já nos conhecemos, já nos misturámos, as tuas mitocôndrias traçando o mapa dos meus passeios matinais. Então, sossega, não há necessidade de mentires, como aos outros, está claro que me sentes, mesmo quando, em desespero, corres para os braços de uma morfina qualquer.
Há noites em que nos aninhamos, na nossa distância inexistente, partilhando histórias - as tuas - que te provocam risos entrecortados pelas lágrimas. Oiço-te pacientemente, tecendo a tua mortalha, apagando metodicamente cada pequena luz que reste acesa na tua Alma. Não sejamos hipócritas, é preciso dizê-lo claramente: as nossas noites não nos aproximam da morte do corpo, são passos seguros para a tomada da Alma. Até que te entregues.
Eu nasci para esse momento em que julgam que morres. E morrerás, evidentemente. Todos proclamarão a minha vitória, menos tu. Tu saberás que me morro contigo. Mas no fim dos passos do sofrimento, na entrada da Luz, no estertor, no suíço segundo em que desistes e me tomas a mão, aí repousa, brilhante e definitiva, a minha coroa. Só quando, exausto e derrotado, me ofereces a Alma em busca de clemência, me completas.
E assim seremos pela Eternidade. Um. Cada partícula da tua cinza um pedaço de mim, cada recordação de ti uma evocação minha. Um.
Eu sou tu.
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